Política e religião na modernidade

AutorMarco Aurélio Lagreca Casamasso
Páginas53-95
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CAPÍTULO 2
POLÍTICA E RELIGIÃO NA MODERNIDADE
Modernidade como separação
A modernidade identifica-se com o período durante o qual
desenvolveu-se um longo processo em que sucessivos fenômenos
provocaram a erosão da ordem cristã medieval,72 que se inicia no
século XVI, na Europa, e se estende até as revoluções liberais do
século XVIII. Os principais efeitos do processo de modernização
sobre a política, a religião, a economia, as ciências e, em termos
gerais, sobre a sociedade, podem ser elucidados tomando-se como
referência movimentos de ruptura e separação. Pierre Manent os
identifica a partir de seis “categorias amplas de separação”,73 que
engendram, lastreiam e determinam toda a modernidade: 1-a
separação das profissões, ou divisão do trabalho; 2- a separação dos
poderes; 3- a separação entre a Igreja e o Estado; 4- a separação entre
a sociedade civil e o Estado; 5- a separação entre o representado e
72 Carlos Altamirano enumera, em resumo, os fenômenos que engendraram e
caracterizaram a modernidade: as viagens de descobrimento, a formação de um
mercado mundial; com o incremento da produção para o comércio; a aparição das
novas ciências da natureza, com a guinada copernicana, o discurso filosófico
marcado pela guinada antropocêntrica; a formação dos primeiros Estados
nacionais europeus, e; a proliferação das formas capitalistas de produção.
ALTAMIRANO, Carlos. Modernidad. In: DI TELLA, Tocurato et. al. Diccionario
de ciencias sociales y políticas, Buenos Aires: Emecé, 2001, 468.
73O autor afirma elencar “ao menos seis” categorias de separação, o que indica que
a relação não tem um caráter exaustivo. MANENT, Pierre. Curso de Filosofía
Política. Op. cit., p. 22. O autor refere tais “categorias amplas de separação” tendo
em vista a formação da democracia moderna. Entendemos, todavia, que tais
categorias devam ser estimadas em um contexto mais amplo do que o da
democracia moderna, o que significa elas podem, e devem, ser estimadas como
formadora da modernidade em sentido amplo. Este entendimento, aliás, está
respaldado pela própria análise do autor, pois nela se encontra subentendido.
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o representante, e; 6- a separação entre fatos e valores, ou entre a
ciência e a vida.74
Tais separações, explica Manent, não são estanques, pois, na
realidade, não se delinearam suas trajetórias sobrepondo-se
parcialmente umas às outras.75 Para o autor, um caso típico de
sobreposição é aquele que ocorre entre a separação da sociedade
civil e do Estado, de um lado, e a separação da Igreja e do Estado,
de outro. Neste caso, esta seria uma espécie da primeira. Além das
justaposições, vale lembrar o fato de que o desenvolvimento dos seis
tipos de separação não ocorreu sincronicamente. O movimento de
secessão entre Igreja e Estado, por exemplo, iniciou-se, ainda que
timidamente, bem antes do movimento filosófico que culminou na
separação entre fatos e valores.
Para a temática do presente estudo, a temática da
modernidade assume uma importância decisiva, na medida em que
é portadora de uma proposta de solução para a milenar e intricada
questão teológico-política, a qual, sob alguns aspectos, permanece
insolúvel e paradigmática nos dias atuais. Trata-se da proposta de
separação entre o Estado e a Igreja. Ao desenvolvê-la sob a forma
de contraste em face da estrutura político-institucional da ordem
cristã medieval, o processo de modernização promoveu,
simultaneamente, a supremacia da política e o recuo da religião. Essa
dupla atuação realiza-se por intermédio de três fenômenos
interligados, sejam o Estado Moderno, a Reforma e do
Protestantismo e secularização.
O Estado Moderno
O Estado Moderno representa a supremacia da política no
contexto da sociedade humana.76 Resultado da concentração do
74 Idem, ibidem. A enumeração é nossa, e não indica nenhum tipo de ordem
hierárquica ou cronológica.
75 Idem, ibidem.
76 O Estado Moderno representa o modelo de instituição política que mais sucesso
alcançou na concretização das características do poder político, entendido como o
monopólio do uso da força física nos limites de um território determinado. Uma
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poder político nas mãos do monarca absolutista em detrimento do
sistema poliárquico medieval, ele surgirá na Europa Ocidental em
fins da Idade Média e início da modernidade77 como instituição
política modelar, que, nos séculos seguintes, se irradiará para outros
continentes. Dotado do monopólio do uso da força física e de um
poder soberano, o Estado Moderno assume a condição de autoridade
em última instância, impondo-se como o poder acima de todos os
outros poderes situados em um território determinado. Em termos
pragmáticos, a soberania lhe permitirá não apenas estabelecer e
proteger as suas fronteiras, mas também controlar, por intermédio
do monopólio da força física e da produção do direito, todas as
atividades religiosas, políticas, econômicas, científicas, culturais
etc. praticadas pelos indivíduos e grupos que atuam no perímetro
do seu espaço territorial.
No que se refere ao relacionamento com a religião, e, em
particular, com a Igreja, o Estado Moderno procurará romper os
laços que o condicionavam ou subordinavam, e ao controle das
autoridades eclesiásticas. Esse rompimento é conexo ao imperativo
de se fundar e legitimar a coesão dos seus membros – os cidadãos –
não nas crenças e valores religiosos, mas na razão de ser do próprio
Estado, isto é, no fato de que a existência do poder estatal impõe-se
como conditio sine qua non para a garantia da segurança, da paz e
da prosperidade econômica.78 Produz-se, assim, um novo arranjo no
forma de constatarmos esse sucesso é contrastarmos o modelo estatal que emerge
da Modernidade detentor de um amplo e efetivo controle sobre os mais variados
setores da sociedade graças à sua unidade político-jurídica lastreada no monopólio
da força física com o sistema político medieval, cuja feudalização e poliarquia
impediram o desenvolvimento de um controle pleno e uniforme sobre a totalidade
dos indivíduos situados sobre o seu território. Para o aprofundamento deste
contraste, veja-se, por exemplo, a análise dos pressupostos históricos do Estado
atual, apresentada por HELLER, Hermann. Teoría del Estado, México DF: Fondo
de Cultura Económica, 1992, pp. 141-154.
77 Cf. SCHIERA, Pierangelo. Estado Moderno In: BOBBIO, Norberto;
MATTEUCCI; Nicola e PASQUINO, Gianfranco (Orgs.). Dicionário de Política.
v. 2. 4.ed. Brasília: Edunb, 1992, p. 425-431.
78 Joseph Strayer descreve a novidade contrastando com o sistema político
medieval e a importância do Estado Moderno nos seguintes termos: “Um homem

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