Religião e política: legitimação e hegemonia do estado moderno

AutorMarco Aurélio Lagreca Casamasso
Páginas21-51
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CAPÍTULO 1
RELIGIÃO E POLÍTICA: LEGITIMAÇÃO E
HEGEMONIA DO ESTADO MODERNO
Religião: duas referências conceituais
A religião ocupa um lugar especial quando se trata de
analisar a problemática da legitimidade do Estado e do direito. Com
efeito, na maior parte da história, as crenças e práticas religiosas
foram elementos decisivos na justificação dos ciclos de surgimento,
permanência e perecimento das sociedades políticas e dos seus
respectivos sistemas jurídicos. Peter Berger não só reconhece a força
determinante que esses fatores exerceram sobre as relações de poder,
como chega a considerar a religião o “instrumento mais amplo e
efetivo de legitimação”1 da história. Pode-se explicar, assim, o
porquê de o tema teológico-político ter sido, ao longo da trajetória
do pensamento Ocidental, um dos temas que mais atraíram a atenção
dos filósofos e juristas.2
Para que possamos compreender o potencial legitimador das
crenças e das práticas religiosas quando postas em contato com a
esfera política, faz-se necessário adotar, de início, um referencial
conceitual que possibilite a identificação do fenômeno religioso e a
individuação de características distintivas, o que permitirá a sua
diferenciação em relação aos fenômenos político e ideológico.3 No
1 BERGER, Peter. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da
religião. 4.ed. São Paulo: Paulus, 2003, p. 45.
2 Compartilhamos, com Diego Valadés, o juízo de que “pode assinalar-se que ao
largo da história nenhum outro mereceu tamanha atenção”. VALADÉS, Diego.
Apresentação. In: SERRANO SALDAÑA, Javier; ORREGO SANCHEZ,
Cristobal. Poder estatal y libertad religiosa. México DF: Universidad Nacional de
México, 2001, p. 15.
3 Como afirma Lincoln Allison, “não há definição precisa e aceita de religião”. Não
obstante, ressalva o autor, “se os limites da crença são difíceis de descrever, o seu
território principal é fácil de caracterizar”. ALLISON, Lincon. Religion and
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clássico conceito proposto por Durkheim, a religião é um “sistema
solidário de crenças e de práticas relativas às coisas sagradas, isto é,
separadas, interditas, crenças e práticas que unem em uma mesma
comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas
aderem”.4 Sobressaem no conceito do sociólogo francês quatro
aspectos principais. Pode-se destacar, primeiramente, o fato de a
religião confundir-se com crenças, ou, se se preferir, com uma
crença , isto é, com o forte engajamento por parte dos indivíduos em
uma ideia ou estado de coisas, cuja validade e solidez prescindem
de qualquer tipo de comprovação fática ou empírica.5 Como observa
Ferrater Mora, hodiernamente é mais comum utilizar-se o termo ,
para efeito de distinção da crença religiosa em face de outras
crenças.6
Destaca-se, também, o caráter solidário do sistema de
crenças e de práticas sagradas. A solidariedade, neste caso, revela a
capacidade integradora da religião, que, ao engendrar e promover
laços de sentimento, congrega e une os crentes em uma mesma
comunidade, chamada por Durkheim de igreja.
O terceiro aspecto implica reconhecer a relação essencial
que há entre a religião e as coisas sagradas, que, encontrando-se
apartadas daquelas não-sagradas, não podem e não devem ser
impunemente tocadas. Este reconhecimento indica a dicotomia
politics. In: MCLEAN Iain (ed.), Oxford concise dictionary of politics. Oxford:
Oxford University Press, 1996, p. 426. Não é nosso objetivo, neste trabalho, exibir
o fecundo debate acerca do conceito de religião, promovido pela teologia e pela
sociologia da religião. No âmbito de nossa proposta, mais importante do que a
exposição do debate, é estar consciente de que o problema conceitual da religião é
insolúvel, e que a adoção de um ou outro conceito deverá se basear nos objetivos
a serem alcançados pelo pesquisador. Para uma apresentação do problema
conceitual da religião, veja-se, por exemplo, BECKFORD, James. Religião. In:
OUTHAWAITE, William; e BOTTOMORE, Tom, (eds.). Dicionário do
pensamento social do século XX, Rio de Janeiro: Zahar, 1996, p. 659 e ss.
4 DURKHEIM, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: Le Livre
de Poche, 1991, p. 109.
5 Para uma apresentação detalhada do conceito de crença, veja-se FERRATER
MORA, José. Crença. In: Dicionário de Filosofia. Tomo I. São Paulo: Loyola, p.
603 e ss., e FOESSEL, Michaël. La religion, Paris: Flamarion, 2000, p. 217 e 218.
6 FERRATER MORA, José. Crença. Op. cit., p. 604.

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