Legitimidade democrática do provimento jurisdicional

AutorMarcelo Veiga Franco
Ocupação do AutorDoutorando e Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Páginas5-22
2
LEGITIMIDADE DEMOCRÁTICA DO
PROVIMENTO JUR ISDICIONAL
2.1 A LEGITIMIDADE DA FUNÇÃO JURISDICIONAL A PARTIR DO DEVIDO
PROCESSO LEGAL
Tradicionalmente, a jur isdição é denida como a função do juiz de dizer o direito
(juris dicere), resultante do poder do Estado de resolver, com fundamento no Direito,
os conitos de interesses1 que lhe são submetidos.2 É a função juri sdicional que possi-
bilita ao Estado, quando provocado e por meio do processo, cor rigir o descumprimento
de normas jurídicas at ravés de pronunciamento decisório imperativo, com aptidão para
a formação de coisa julgada mater ial, e proferido por um juízo natural3 e imparcial.
Como “função esse ncial própria à administração da justiça”, a jurisdição, em seu
conceito clássico-formal, expressa “o poder de atuar a vontade da lei no caso con-
cr et o”.4 A atividade jurisdicional, de natureza indelegável, visa a tutelar, declarar,
1 Francesco Carnelutti ensina que o conceito de interesse, fundamental para o estudo da teoria do pro-
cesso, signica “a posição favorável à satisfação de uma necessidade”, a qual se verica em relação a
um bem. Nesse sentido, o conito de interesses surge quando “a situação favorável à satisfação de uma
necessidade excluir a situação favorável à satisfação de uma necessidade distinta” (CARNELUTTI,
Francesco. Sistema de Direito Processual Civil. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. São Paulo:
Classic Book, 2000. v. 1, p. 55-61).
2 LLOBREGAT, José Garberí. Constitución y Derecho Procesal: los fundamentos constitucionales del
Derecho Procesal. Pamplona: Thommson Reuters, 2009, p. 40.
3 Prefere-se, tecnicamente, a terminologia juízo natural ao invés de juiz natural. É que “a expressão juízo
revela designação jurídica mais qualicada tecnicamente do órgão estatal incumbido de exercer a fun-
ção jurisdicional (por isso, nomenclatura constitucional), enquanto o termo juiz indica o agente público
investido pelo Estado do poder de julgar (por exemplo, enunciados do artigo 93, incisos I e VII, e do
artigo 95 da Constituição Federal)”. Já o termo natural, que qualica o juízo, atua “como indicativo da
coexistência de Estado e jurisdição”, isto é, demonstra que a jurisdição é função essencial e natural-
mente inerente à criação jurídica do Estado de Direito (DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo
Constitucional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 112-113, destaques
no original).
4 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Tradução de J. Guimarães Menegale.
São Paulo: Saraiva, 1942. v. 1, p. 73-74.
PROCESSO JUSTO.indb 5 08/06/2016 17:40:45
processo justo: entre efetividade e legitimidade da jurisdição
marcelo veiga franco
6
reconhecer ou efetivar esferas jurídicas ameaçadas ou lesionadas em determinada
situação concreta, e é exercida por alg uém investido na autoridade de juiz.5
Para Elio Fazzalari, a jurisdição apresenta as seguintes características: a) tem
como pressuposto o ilícito, “mais precisamente a (perpetrada ou atualmente amea-
çada) violação de um dever substancial, já imposto pela lei substancial”; b) a impar-
cialidade do juízo, decorrente da “posição de ‘estraneidade do juiz’ em relação à
situação substancial dedu zida na lide, vale dizer a sua posição de ‘terceiro’ (a terzie-
)”;6 c) o fato de que a coordenação do processo jur isdicional provém de “iniciativa
de sujeito diverso do órgão judicante (nemo iudex sine actore)”; d) a autoridade da
coisa julgada, “entendida como incontestabilidade (por obra das partes) e intoca-
bilidade (por obra do juiz), portanto como irretratabilidade em sede judiciária do
provimento jurisdicional e dos seus efeitos”.7
Em um Estado Democrático de Direito, contudo, a função jurisdicional assume
uma nova feição e gradativamente passa a ostentar um “papel central na a rquitetura
constitucional”8 e o Judiciá rio, de “poder quase ‘nulo’”, se vê “alçado a uma posição
muito mais importante no desenho institucional do Estado contemporâneo”.9 É pos-
sível dizer que, atualmente, há uma tendência de deslocamento do centro de decisões
para o Judiciário,10 que tem como consequências a “revalorização do momento juris-
5 Como bem salienta Piero Calamandrei, o conceito de jurisdição guarda “relatividade histórica”, de
modo que “Não se pode dar uma denição do conceito de jurisdição absoluta, válida para todos os
tempos e para todos os povos”. Contudo, ainda que seja um conceito contingencial e relativo a certo
momento histórico, é certo que a jurisdição é manifestação da soberania estatal e se revela quando o
Estado intervém para pacicar e manter a convivência social ameaçada por um conito de interesses
(CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil: estudos sobre o Processo Civil. Tradução de Luiz
Abezia e Sandra Drina Fernandez Barbery. Campinas: Bookseller, 1999. v. 1, p. 96-97 e 150-155).
6 No ponto, é importante a advertência do próprio Elio Fazzalari: “A estranheza (ou ‘terceiridade’) do juiz
não signica imparcialidade do provimento jurisdicional: ele é por excelência parcial, é todo a favor de
quem tem razão, já que, uma vez estabelecida a existência dos pressupostos, isto é, o certo e o errado,
o juiz invoca medidas a cargo de quem está errado”. Portanto, “o momento do ‘julgamento’ é o cume
do qual se colhe a ‘imparcialidade’ do juiz”; porém, acertados os fundamentos fáticos e jurídicos, o
juiz profere o comando jurisdicional de forma “parcial”, uma vez que se coloca em posição “favorável
a quem ele haja dado razão, que o tutela contra o autor do ilícito” (FAZZALARI, Elio. Instituições de
Direito Processual. Tradução de Elaine Nassif. Bookseller: Campinas, 2006, p. 489; 560).
7 FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Tradução de Elaine Nassif. Bookseller: Campi-
nas, 2006, p. 560-561, destaques no original.
8 CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do
Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte, v. 3, p. 474-475, 1999.
9 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: NOVELINO,
Marcelo (Org.). Leituras complementares de Direito Constitucional: Teoria da Constituição. Salvador:
Jus Podivm, 2009, p. 37. A ideia do Judiciário como “poder quase nulo” remonta à época do liberalismo
político do século XVIII, quando o juiz era visto apenas como a “boca que pronuncia as palavras da
lei” (bouche de la loi), ou seja, nada mais do que “seres inanimados que não podem moderar nem sua
força, nem seu rigor” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Tradução de Cristina
Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 175).
10 STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 8. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 37-38.
PROCESSO JUSTO.indb 6 08/06/2016 17:40:45

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT