Os pilares do processo justo (giusto processo ou fair trial)

AutorMarcelo Veiga Franco
Ocupação do AutorDoutorando e Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Páginas31-97
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OS PILARES DO PROCESSO JUSTO
(
GIUSTO PROCESSO
OU
FAIR TRIAL
)
A m de compreender de que forma a teoria do processo justo – chamada na Itál ia
de giusto processo ou processo equo e no c ommon law de fair trial1 – se revela como
de fundamental i mportância para resolver o dilema entre a legitimidade do provi-
mento e a efetividade da tutela jurisdicional, é preciso, em um primeiro momento,
contextualizar o estudo tomando-se como base o movimento de constitucionaliza-
ção do Direito Processual Civil.
É a partir de sua estrutura constitucional que passa a ser possível denir os t rês
pilares que formam o processo justo e que embasam a própria ideia de devido pro-
cesso legal, quais sejam: a) a tutela do contraditório como fundamento de legitimi-
dade do procedimento de elaboração da decisão judicial; b) o respeito aos direitos e
garantias fundamentais como baliza de conformação do conteúdo da decisão judi-
cial; c) a satisfação do direito material em tempo razoável como fator de efetivação
– inclusive social – do próprio processo e da atividade jur isdicional.
4.1 A IMPORTÂNCIA DO MOVIMENTO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO
PROCESSO
Historicamente, a noção de devido processo legal – cor respondente à tradução
para o português da expressão inglesa due process of law – remonta ao Édito de
Conrado II (Decreto Feudal Alemão do ano 1037 d. C.), o qual inspirou posterior-
mente a edição da Magna Charta Libertatum de 1215 – pacto entre o Rei João Sem
Terra e os barões ingleses – e da Carta de Henrique III de 1225. A partir d a submis-
são do monarca ao law of the land passa-se g radativamente à noção de due process
of law, em que a palavra Law signica Direito, e não apenas lei posta (statute law).
1 Daniel Mitidiero observa que o direito ao fair trial “constitui a maior contribuição do Common Law
para a civilidade do Direito e hoje certamente representa o novo jus commune em matéria processual”
(MITIDIERO, Daniel. O direito fundamental ao processo justo. Disponível em: le:///C:/Users/pr095143/
Downloads/direito%20fundamental%20ao%20justo%20processoart_srt_arquivo20130419164953%20
(1).pdf. Acesso em: 23 out. 2014).
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processo justo: entre efetividade e legitimidade da jurisdição
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Processo devido, portanto, é aquele em conformidade com o Direito, e não apenas
em consonância com a lei.2
Com o desenrolar da histór ia, o conteúdo do devido processo legal sofreu profun-
das modicações, pois os conceitos de devido, de processo e de legal são situados
temporal e espacialmente. Nesse contexto, o movimento de constitucionalização
do Direito Processual Civil, vericado a parti r da Segunda Guerra Mundial (1939-
1945), é de suma importância para lançar as bases para uma concepção de devido
processo legal condizente com o regime jurídico instaurado pelo Estado Democrá-
tico de Direito.
A necessidade de tutela e concreti zação de uma vasta gama de direitos e garant ias
fundamentais de natureza processual inaugurou uma perspectiva eminentemente
constitucional do processo. A idealização de um modelo constitucional de devido
processo legal torna-se essencial pa ra a construção da noção de processo ju sto como
o ponto de equilíbrio entr e a legitimidade do provimento jurisdicional e a efetividade
da jurisdição.
A tutela constitucional do processo pressupõe, para a sua efetivação, o princípio
da supremacia da Constituição sobre as demais normas do ordenamento jurídico –
inclusive as processuais –, de modo que haja um “impér io das previsões constitucio-
nais, que têm como suporte as garantias”.3 Sob a perspectiva da constitucionalização
do Direito Processual Civil, o devido proce sso legal – como um direito fundamental
– visa a resguardar o exercício de todas as garantias fundamentais do processo.
O due process of law, consagrado no art. 5º, LIV, da CRFB, coordena e orienta a
aplicação dos princípios processuais, e possui uma importância basilar dentro do
quadro das garantias constitucionais.4
Nessa toada, a compreensão do pr ocesso sob o prisma da constitucionalização do
Direito Processual Civil possibilita q ue sejam asseguradas aos cidadãos as múltiplas
garantias constitucionais de caráter processual. Trata-se de uma proteção consti-
tucional do processo que tem por nalidade conformar a aplicação dos institutos
2 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhe-
cimento. 12. ed., Salvador: Jus Podium, 2010. v. 1, p. 41-43; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do
processo: primeiros estudos. 10. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 42-43.
3 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral do Processo Constitucional. Revista de Direito
Comparado, Belo Horizonte: UFMG, v. 4, p. 49, 2000. Para que haja a tutela do processo através do
princípio da supremacia da Constituição, são necessárias algumas premissas, a saber: a) a Constituição
pressupõe a existência do processo como garantia da pessoa humana; b) a lei deve instituir esse pro-
cesso; c) a lei não pode conceber formas que tornem ilusória a concepção de processo consagrada na
Constituição; d) a lei não pode privar o indivíduo da razoável oportunidade de fazer valer o seu direito;
e) devem estar em jogo os meios de impugnação que a lei institui para fazer efetivo o controle de consti-
tucionalidade das leis (BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Processo constitucional. Revista Forense,
v. 337, ano 93, p. 105, fev./mar. 1997).
4 THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo justo e contraditório dinâmico. Disponível em:
revistas.unisinos.br/index.php/RECHTD/article/view/4776>. Acesso em: 20 ago. 2014.
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processuais de acordo com a Constituição.5 O devido processo legal, no Estado
Democrático de Direito, é concebido como um dir eito fundament al de proteção e de
concreção das garantias constitucionais do processo, cuja nalidade é viabilizar a
tutela e o exercício dos direitos fundamentais.6
Com o movimento de constitucionalização do processo, “os institutos processuais
passam (...) a ser entendidos e lidos sempre a parti r da perspectiva da estrutu ra cons-
titucional do processo, ou seja, das garantias constitucionais mínimas do processo”.
Verica-se uma verdadeira “mudança metodológica”, pois a compreensão do pro-
cesso se dá a partir das normas constitucionais, e não mais através da legislação
ordinária. Há a formação de uma “principiologia constitucional do processo” que
formata um “modelo processual encampado nas garantias processuais acolhidas na
Cons ti tuiçã o”.7
Com isso, a constitucionalização do Di reito Processual se revela em duas dimen-
sões básicas, isto é, tanto na incor poração, aos textos constitucionais, de normas
processuais com o status de di reitos fundamentais, como na aplicação das normas
processuais infraconstitucionais com o m de concretizar as disposições constitu-
cionais. Mediante a intensicação do diálogo entre processualismo e constituciona-
lismo, a Constituição “passa a ser examinada como o mais impor tante capítulo do
Direito Processual”.8 Fala-se em um Direito Processual na Constituição, o qual ex ige
uma leitura constit ucional da processualística.9
A ideia do modelo constitucional do processo – também denominado de devido
processo constitucional10 – su rgiu do próprio movimento de constitucionalização
dos princípios do Direito Processual, e foi concebido especialmente por meio dos
estudos desenvolvidos por autores como Ítalo Andolina, Giuseppe Vignera, Nicolò
Trocker e Luigi Paolo Comoglio (Itália), Hector Fix-Zamudio (México), José Alfredo
de Oliveira Baracho (Brasil) e Eduardo Cout ure (Uruguai).
Como ensina Nicolò Trocker, as Constituições europeias do século XIX e do
início do século XX não tiveram a necessidade de incluir garantias especícas de
conteúdo processual no catálogo dos direitos fundamentais, ao lado da garantia
5 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 2. ed., São Paulo: Malheiros, 1996, p. 18.
6 A ideia do processo como unicador de uma série de garantias constitucionais é denominada por alguns
de garantismo processual (LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de
direito. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 139-140).
7 ANDRADE, Érico. O Mandado de Segurança: a busca da verdadeira especialidade (proposta de relei-
tura à luz da efetividade do processo). Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 53-54.
8 DIDIER JR., Fredie. Sobre a Teoria Geral do Processo, essa desconhecida. Salvador: Jus Podivm,
2012, p. 149-152, destaque no original.
9 LLOBREGAT, José Garberí. Constitución y Derecho Procesal: los fundamentos constitucionales del
Derecho Procesal. Pamplona: Thommson Reuters, 2009, p. 35.
10 PASSOS, José Joaquim Calmon de. Instrumentalidade e Devido Processo Legal. Revista Síntese de
Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre: Síntese, v. 1, n. 1, p. 8-9, set./out. 1999.
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