A que(m) serve o direito?

AutorLuis Manuel Fonseca Pires
Páginas139-171
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Capítulo IV
A QUE(M) SERVE O DIREITO?
Retomo, para poder prosseguir, ideias apresentadas nos capítulos
anteriores. Os estados de exceção contemporâneos são (i) fantasmagóricos,
porque raramente assumem sua tirania, (ii) dissimulados, porque a pos-
tura antidemocrática é levada a termo com o uso frequente, quase obs-
tinado, da palavra “democracia” enquanto promovem investidas suces-
sivas contra os significados da democracia (liberdade de imprensa, plu-
ralismo, diversidade, transparência, independência dos Poderes etc), (iii)
fragmentados porque se apresentam em alguns campos (educação, saúde),
noutros não, depois se alternam, e lançam-se para depois se recolherem,
mas não dominam integral e simultaneamente as instituições públicas e
todos os âmbitos da vida privada. Por isso, denomino este fenômeno
político-jurídico de estados de exceção (no plural) que conduzem à
consolidação de um regime autoritário, não necessariamente totalitário.
A soberania popular é cerceada – sufocada, depois deixada respi-
rar, novamente esganada. O espaço da soberania é gradualmente redu-
zido. A vontade política deita sua sombra. A soberania usurpada nos
estados de exceção pode ser (i) compartilhada entre diversos atores de um
trágico regime autoritário em burlesca encenação de democracia; pode
ser (ii) volátil, porque quem encarna a liderança eventualmente é subs-
tituído, não é preciso coincidir o regime autoritário com a figura espe-
cífica de um líder.
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LUIS MANUEL FONSECA PIRES
Talvez se pudesse considerar que antecedente aos estados de ex-
ceção houvesse uma crise constitucional ou pequenos abusos constantes
na interpretação da Constituição. O jurista Oscar Vilhena, em referên-
cia a Sanford Levinson e Jack Balkin, destaca que o tipo mais comum
de crise constitucional acontece quando autoridades constituídas “(...)
estão convencidas que para solucionar um grave problema devem recorrer a “meios
excepcionais” e não observar as regras e procedimentos afirmados na Constituição”,
e também quando há uma disputa entre os Poderes e “(...) cada qual
reivindicando ser o melhor intérprete da constituição”.218
Mas o que trato neste estudo vai além: estados de exceção são
gerados por forte mobilização do medo e outros afetos políticos que se
impõem e contam com a espontânea e valorosa colaboração do Direito
contra os seus próprios paradigmas jurídicos. A intensa amplitude da
circulação de afetos constitui a primeira identidade da formação de es-
tados de exceção. Especialmente o medo, um afeto central à formação
da organização política. Afetos que largamente orbitam em torno de
vontades políticas, vocalizadas a determinados fins que precisam passar
sobre o Direito para estabelecerem o seu domínio. Afetos políticos ob-
tém a adesão social – fazem acreditar ser necessário ceder direitos, em
particular os que qualificam a condição de humanidade, para suposta-
mente dar vazão a angústias, sentimentos recalcados, frustrações pessoais.
Afetos são mobilizados, nos estados de exceção, contra algum inimigo.
A construção social de apoio ao regime autoritário tem por meta – a
força gravitacional dos afetos – um inimigo comum. Mas é preciso en-
fatizar: a volatilidade que caracteriza a soberania usurpada também é
marca dos inimigos a serem combatidos – podem ser reais ou imaginá-
rios, estrangeiros ou nacionais, vivos ou mortos, pessoas ou ideias, podem
ser alternados, descartados por novos, resgatados do passado, tanto faz.
O consenso é que existam inimigos.
Estados de exceção alteram-se em graus, formas e aparências. São
resilientes. Mudam de cor como um camaleão, camuflam-se no medo e
no Direito, miram inimigos. Os mais desavisados não enxergam a presença
218 VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos Poderes: da transição democrática ao mal-estar
constitucional. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p. 40
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CAPÍTULO IV - A QUE(M) SERVE O DIREITO?
dos estados de exceção – ou não querem vislumbrar porque algo lhes
convém (economia, promessas de ascensão social, eliminação dos
inimigos reais ou imaginários como imigrantes, negros, pobres, mulheres
na disputa por igualdade em espaços de trabalho). Mas em geral há maior
probabilidade de surgirem os estados de exceção em países com frágil
tradição democrática, o que acontece se não existe (i) razoável grau de
responsabilização dos agentes públicos que abusaram do poder no curso da
história e (ii) registros históricos e a valorização da memória dos regimes
autoritários por meio da educação e da cultura com o propósito de
conscientização da sociedade dos momentos que o poder lhe foi subtraído,
por quais meios, e as consequências da opressão. Pode-se imaginar que
seria mais difícil a ascensão política de um candidato à presidência da
república se houvesse a efetiva conscientização do povo do que foi a
ditadura militar no Brasil de 1964 a 1985 e quem foi o “herói” por ele
proclamado, coronel Brilhante Ustra, contra quem pesam dezenas de
relatos de ter sido um torturador, que ainda gozava da crueldade de trazer
os filhos das mulheres que seviciava para assistirem às sessões.219 Quanto
menor a tradição democrática de um país mais fácil incitar afetos para
congregar apoio a vontades políticas que rompem com a solidariedade,
distanciam-se da capacidade de empatia, anunciam-se contra mínimos
padrões civilizatórios.
O que pretendo tratar neste capítulo é da relação entre a vontade
política e o Direito nos estados de exceção. Como se opera, na
contemporaneidade, o vínculo entre a política e o Direito em regimes
autoritários? Em passagens anteriores neste estudo, disse que esta conexão
é diferente da que se estabeleceu em modelos autoritários históricos,
Estados totalitários da Europa e ditaduras da América Latina no curso
do século XX, porque neste milênio é necessário, espera-se, maior
envolvimento do Direito com a causa política autoritária porque é mais
alto o nível de exigência da legitimidade da ação política. Isto decorre
219 CAVICCHIOLI, Giorgia. “‘Fui testemunha viva da brutalidade do Ustra’, diz
vereador torturado na Ditadura”, R7, 2016. Disponível em: https://noticias.r7.com/
sao-paulo/fui-testemunha-viva-da-brutalidade-do-ustra-diz-vereador-torturado-na-
ditadura-02052016. Acesso em: 15.01.2021.

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