Monoparentalidade feminina e vulnerabilidade

AutorAna Beatriz Rutowitsch Bicalho
Páginas355-373
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Capítulo 14
MONOPARENTALIDADE FEMININA E VULNERABILIDADE
Ana Beatriz Rutowitsch Bicalho1
1. Introdução
A Constituição Federal de 1988 trouxe inovações profundas para
o tratamento jurídico da família no ordenamento brasileiro na medida que,
atento às transformações sociais e pautado nos valores da igualdade,
democracia e pluralidade, o legislador constituinte a reconheceu como
instrumento do desenvolvimento da pessoa humana, quebrando o
paradigma essencialmente patrimonialista vigente até então.
O reconhecimento do papel fundamental da família e do Estado na
promoção e proteção dos interesses individuais de cada membro familiar
demonstrou, ainda, a intenção do legislador em valorizar a autonomia
privada2 neste âmbito e, portanto, os múltiplos modelos fundados na
afetividade e solidariedade, devendo o poder público garantir a
concretização dos direitos fundamentais dos seus integrantes,
especialmente os mais vulneráveis3.
1 Advogada especializada em Direito das Famílias. Mestranda em Direitos Fundamentais.
Presidente da Comissão de Gênero e Vio lências do IBDFAM-RJ; Gabriela A. P. Vieira
Bonder. Advogada especializada em Direito das Famílias e Psicologia Sistêmica. Membro
da Comissão de Gênero e Violências do IBDFAM-RJ.
2 A autonomia privada constitui-se como um poder que o particular tem de se autorregular,
pelo exercício d a própria vontade, nas relações de que participa, estabelecendo-lhes a
respectiva disciplina jurídica.
3 Vulnerabilidade social é um conceito multidimensional que se refere à condição de
indivíduos ou grupos em situação de fragilidade, que estão expostos a riscos e a níveis
significativos de desagregação social. Relaciona-se a vulnerabilidade ao processo
acentuado de exclusão, discriminação ou enfraquecimento de indivíduos ou grupos,
provocado por fatores, tais como pobreza, crises econômicas, nível educacional deficiente,
localização geográfica precária e baixos níveis de capital social, humano, ou cultural.
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Dentre as diversas composições familiares reconhecidas pela
legislação e jurisprudência4, destaca-se a família monoparental ou também
chamada de uniparental, cujo núcleo constitui-se por uma mãe ou um pai
que vive com filhos dependentes, sem a presença do outro genitor ou de
alguém que o substitua. Aponte-se que fatores diversos podem dar origem
a tal formato familiar, dentre eles o divórcio ou dissolução da união estável,
a adoção ou fertilização medicamente assistida de pessoa solteira, a viuvez
e mesmo a maternidade e paternidade sem casamento ou união estável.
Em que pesem as variadas formas de constituição da família
monoparental, no presente trabalho trataremos daquela decorrente do
abandono à prole ao fim do relacionamento afetivo, ou antes mesmo, pelo
não reconhecimento da paternidade, um fenômeno vivido em sua maioria
esmagadora, por mulheres, denunciando uma cultura androcêntrica que
anui com o assujeitamento feminino e infantil. Nesse contexto, se analisará
a contribuição do silêncio de legislação ordinária específica, da ausência
de políticas públicas efetivas, de instituições sociais e até mesmo do
direito, para a manutenção da fragilidade desse modelo familiar.
2. A constitucionalização do direito de família
Inspirado na ideologia individualista-liberal predominante na
Europa no final do século XIX, o Código Civil de 1916 foi editado na então
sociedade brasileira primordialmente ruralista, individualista e classista,
traduzindo a supremacia das relações patrimoniais sobre as pessoais,
inclusive na família.
O modelo familiar do antigo código pautou-se em valores
matrimoniais, patriarcais5 e patrimonialistas traduzidos, entre outros
exemplos, pela incapacidade relativa conferida à mulher casada,
assujeitada e submetida à vontade do marido6 que, naquele momento
4 O casamento homoafetivo no Brasil ainda não é garantido por lei, embora seja assegurado
por decisão do Supremo Tribunal Federal (ADI 4277 e ADPF 132, Ministro Ayres Britto).
5 Artigo 233, Código Civil de 1916: “O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que
exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos.”
6 FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Dir eito de Família. Rio de Janeiro:
Renovar,1999, p. 308.

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