Morte digna na Bélgica: análise do exercício da autonomia para morrer por pessoas com transtornos mentais

AutorFábio Lopes Rocha, Maria de Fátima Freire de Sá e Diogo Luna Moureira
Ocupação do AutorDoutor em Ciências da Saúde pela UNB e mestre em Saúde Pública pela UFMG/Doutora em Direito pela UFMG e mestre em Direito pela PUC Minas/Doutor e mestre em Direito pela PUC Minas
Páginas49-73
MORTE DIGNA NA BÉLGICA:
ANÁLISE DO EXERCÍCIO DA AUTONOMIA PARA MORRER
POR PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS
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Fábio Lopes Rocha
Doutor em Ciências da Saúde pela UNB e mestre em Saúde Pública pela UFMG.
Membro Titular da Academia Mineira de Medicina.
Maria de Fátima Freire de Sá
Doutora em Direito pela UFMG e mestre em Direito pela PUC Minas. Professora da
graduação e do programa de pós-graduação em Direito da PUC Minas. Pesquisadora
do CEBID.
Diogo Luna Moureira
Doutor e mestre em Direito pela PUC Minas. Professor da UEMG e da FUNCESI.
Pesquisador do CEBID.
Sumário: 1. Introdução – 2. O direito belga e o exercício da autonomia para morrer por pessoas
com transtornos mentais – 3. O direito brasileiro e a autonomia para morrer por pessoas com
transtornos mentais – 4. O suicídio geral ou não assistido e o suicídio assistido ou eutanásia:
4.1. Suicídio não assistido e os transtornos mentais; 4.2 Fatores de risco para o suicídio não
assistido e a importância do fator contágio; 4.3 O impacto do suicídio assistido ou eutanásia
sobre o suicídio não assistido – 5. Suicídio assistido ou eutanásia e depressão: 5.1 Transtornos
psiquiátricos; 5.2 Depressão; 5.3 Depressões que não respondem ao tratamento; 5.4 Sintomas
depressivos e o suicídio assistido ou eutanásia – 6. Transtornos mentais e reconhecimento:
desaos para um direito democrático – 7. Conclusão – 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Em cada momento da história, especif‌icamente a ocidental, o indivíduo hu-
mano teve ou lhe foi imposta concepções de moralidade que se entrelaçam em
uma continuidade espacial e temporal, a constituir o multifacetado e controverso
entendimento acerca do termo autonomia.
1. Por pessoas com transtorno mental compreendem-se aquelas com sofrimento psíquico, nomenclatura dada
pela Lei belga, bem como pessoas com def‌iciências mentais abarcadas pela Lei brasileira n. 13.146/15. A
Lei belga utiliza o termo sofrimento mental. Este termo engloba sintomas e experiências da vida interior de
caráter desagradável como angústia, tormento, desgosto, ansiedade, desesperança e impotência. A pessoa
pode estar em sofrimento mental, mas não necessariamente ser portadora de transtorno mental. O termo
transtorno mental refere-se a condições psiquiátricas específ‌icas. Abarca as pessoas com def‌iciência mental
ou intelectual de que trata a Lei brasileira n. 13.146/15.
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No medievo, o esforço do cristianismo em proporcionar a interiorização do
indivíduo humano, implicou no reconhecimento de uma substância humana que
vai além daquilo que se apresenta para o exterior, mas que alcança potencialidades
que permitem contato com o sagrado: “para lá do olho exterior e do ouvido exte-
rior há o olho interior e o ouvido interior”, que são capazes de perceberem “a visão
divina, a palavra e o rumor do mundo mais real: o das verdades eternas.”2 Sob esta
perspectiva, a igreja católica assumiu uma posição de domínio na condução da vida
social3, já que a todos impôs, através da sua autoridade, um conceito de moralidade
pautado em um modelo de vida boa por ela f‌irmemente def‌inido. Ao mesmo tempo
em que abria as possibilidades para o reconhecimento da interioridade, ainda que
para o pecado, fechava todas essas possibilidades pela obediência devida a Deus e
às suas leis, graças à moralidade conduzida pela obediência4.
Com o declínio do domínio moral da igreja, ou o seu esfacelamento no contexto
político e social, tornou-se possível ao indivíduo humano assumir uma postura de
autodeterminação que dispensa interferências exteriores, inclusive para assumir
conf‌igurações de uma vida que lhe é própria, pois “no reino espiritual, cada pessoa
deve ser salva como um indivíduo. Nenhuma mediação meramente humana pode
ser um substituto para a aceitação direta de Deus.”5 Para Charles Taylor, é a impor-
tância atribuída ao f‌iel que possibilita esta nova forma de encarar a religiosidade,
haja vista que “a pessoa já não pertencia ao círculo dos eleitos, ao povo de Deus, por
sua ligação a uma ordem mais abrangente que sustentava a vida sacramental, mas
por sua adesão pessoal irrestrita.”6
Se a concepção medieval de autonomia apontava para a moralidade pautada na
obediência, a moralidade moderna desponta reconhecendo a liberdade de pessoas
iguais, capazes de enxergarem por si mesmas o que a moralidade requer, ademais,
as pessoas são “em princípio igualmente capazes de [...] mover para agir de maneira
adequada, independente das ameaças ou recompensas dos outros.”7 Acentuada a
ideia de liberdade, a independência da pessoa e a sua capacidade racional acirram o
seu desenvolvimento enquanto ser capaz de tomar, sozinho, as suas próprias decisões
e posicionar-se no mundo social, a partir de si mesmo.
A concepção da moralidade como autogoverno pressupunha a existência de uma
ordem moral gerada a partir do indivíduo humano em seu espaço de convivência
2. LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa: Estampa, 1994, p. 17.
3. Segundo Jacques Le Goff a Idade Média conheceu um cristianismo dominador “que é simultaneamente
uma religião e uma ideologia e que mantém, portanto, uma relação muito complexa com o mundo feudal
contestando-o e justif‌icando-o ao mesmo tempo.” (LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Lisboa:
Estampa, 1994, p. 38).
4. SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 30.
5. SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 55.
6. TAYLOR, Charles. As fontes do Self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Edições Loyola,
1997, p. 281.
7. SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 30.
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