Morte digna nos Estados Unidos da América: recusa ao diagnóstico de morte encefálica - reflexões médico-jurídicas a partir do caso Jahi Mcmath

AutorMaria de Fátima Freire de Sá, Lucas Costa de Oliveira e Sarah Ananda Gomes
Ocupação do AutorDoutora em Direito pela UFMG/Doutorando em Direito pela UFMG/Graduada em Medicina pela UFMG
Páginas111-131
MORTE DIGNA
NOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA:
RECUSA AO DIAGNÓSTICO
DE MORTE ENCEFÁLICA
REFLEXÕES MÉDICO-JURÍDICAS
A PARTIR DO CASO JAHI MCMATH
Maria de Fátima Freire de Sá
Doutora em Direito pela UFMG. Mestre em Direito pela PUC Minas. Professora
do curso de graduação e do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado)
em Direito na PUC Minas. Coordenadora e pesquisadora do Centro de Estudos em
Biodireito (CEBID PUC Minas). E-mail: mfatimasa@uol.com.br.
Lucas Costa de Oliveira
Doutorando em Direito pela UFMG. Mestre em Direito Privado pela PUC Minas.
Bacharel em Direito pela UFOP. Professor de Direito Civil na UNIPAC, campus
Mariana. Pesquisador do Centro de Estudos em Biodireito (CEBID PUC Minas) e do
Grupo Persona (UFMG). E-mail: lucascoliveira01@gmail.com.
Sarah Ananda Gomes
Graduada em Medicina pela UFMG. Especialista em Clinica Médica pelo instituto
Mario Penna/Hospital Luxemburgo. Realizou curso de Medicina Paliativa para Hos-
pitalistas e Intensivistas na Havard Medical School. Cursou a Residência Médica de
Medicina Paliativa do HC-FMUSP. E-mail: sarahagomes@gmail.com
“– Acabou! – disse alguém perto dele.
Ele ouviu esta palavra e repetiu-a na sua alma.
‘Acabou a Morte’, pensou. ‘A Morte já não existe!’
Aspirou profundamente, interrompeu a respiração, inteiriçou-se e morreu”.1
Sumário: 1. Introdução – 2. O caso Jahi McMath – 3. A morte e a medicina – 3.1. A evolução
do conceito de morte na literatura médica – 3.2. A incorporação do conceito de morte ence-
fálica no Brasil – 3.3. A morte encefálica no caso Jahi McMath – 4. A morte e o direito – 4.1.
Liberdade religiosa e o diagnóstico de morte encefálica – 4.2. O status jurídico do corpo
após o diagnóstico de morte encefálica – 4.3. A vida e a morte entre paradoxos jurídicos – 5.
Considerações nais – 6. Referências.
1. TOLSTOI, Leão. A morte de Ivan Ilitch. Trad. Carlos Lacerda. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1997, p. 91.
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MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ, LUCAS COSTA DE OLIVEIRA E SARAH ANANDA GOMES
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1. INTRODUÇÃO
A apreensão do conceito “vida” pelo direito vem sendo reformulada cons-
tantemente. Nesse sentido, recorda-se dos julgamentos acerca da interrupção
gestacional de fetos anencéfalos2 e da utilização de embriões em pesquisas,3 ambos
fundamentados em proposições sobre o início da personalidade e da vida humana.
Na mesma direção, observa-se na literatura jurídica um esforço para buscar novos
aportes teóricos para debater a extensão semântica e os valores arraigados na con-
cepção de vida, entendida como um valor tutelado pelo sistema jurídico de modo
multifacetado.4 Entende-se, nessa linha argumentativa, que a vida possui múltiplas
dimensões, dentre as quais se destacam a biológica e a biográf‌ica. Viver, portanto,
seria um processo constante de construção e reconstrução biográf‌ica, em um contexto
dialógico, mediado por um suporte biológico, assim compreendido o corpo humano.5
Embora sejam conceitos intrinsecamente conectados, a morte tem sido tra-
tada como um fato puramente natural e inevitável, impassível de qualquer tipo de
contestação. Se, como nos recorda Ivan Ilitch, certos modos de vivência podem se
aproximar da mortalidade, a evolução médica e biotecnológica torna a inexorável
tensão estabelecida entre a vida e a morte mais concreta e próxima da realidade. Esse
cenário evidencia um paradigma em que artif‌icial e natural se entrelaçam, possibi-
litando uma extrema capacidade de manipulação do corpo. Assim, nascer e morrer
deixam de ser ocorrências de pura casualidade. Basta pensar no desenvolvimento das
técnicas de reprodução assistida e na possibilidade de manter pessoas conectadas a
mecanismos de suporte vital, mesmo em casos extremos. Em última instância, tais
avanços permitem a ressignif‌icação de aspectos centrais dos elementos que consti-
tuem a pessoalidade e as relações intersubjetivas.
Nesse contexto de problematização de conceitos com ampla abertura semântica
e axiológica, o presente artigo se propõe a questionar a def‌inição da morte apresen-
tada pela medicina e apropriada pelo direito. De maneira mais específ‌ica, busca-se
averiguar se haveria um direito a recusar um diagnóstico de morte encefálica, espe-
cialmente a partir de crenças e preceitos religiosos. A discussão não se origina em
hipóteses f‌ilosóf‌icas ou narrativas de f‌icção científ‌ica. Pelo contrário, a proposta surge
do estudo da situação vivenciada por Jahi McMath, caso amplamente divulgado e
debatido nos últimos anos. Em apertada síntese, houve a recusa do diagnóstico de
morte encefálica por sua mãe, fundamentado no direito fundamental à liberdade
2. Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54/DF.
Relator: Min. Marco Aurélio Mello. Brasília, 11 abr. 2012.
3. Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3510/DF. Relator: Min. Ayres
Britto. Brasília, 28 mai. 2010.
4. Cf. SÁ, Maria de Fátima Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna. Autonomia para morrer: eutanásia, suicídio
assistido, diretivas antecipadas de vontade e cuidados paliativos. 2ª ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2016.
5. Cf. STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade: ou como alguém se torna
o que quiser. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017.
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