Normas constitucionais com relevância para o processo civil

AutorCleyson de Moraes Mello
Páginas21-55
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Capítulo 1
NORMAS CONSTITUCIONAIS COM RELEVÂNCIA
PARA O PROCESSO CIVIL
O processo civil busca a pacificação dos conflitos com justiça. Ele
é ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas
fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do
Brasil (artigo 1º, CPC). Dessa maneira, as normas processuais estão
subordinadas à Constituição da República.
1.1 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
A análise da construção histórica da dignidade humana se impõe
como necessário, pois existe uma distinção entre dignidade (a dignitas
romana ou expressões gregas) como valor, honra e apreço e a expressão
dignidade da pessoa humana como inerente à própria condição humana.
Aquela é condicional, transitória, inigualitária e contingente; esta é
universal e incondicional. A dignidade como valor, honra e apreço se
refere a uma postura pessoal objetivamente apreciada pela sociedade; já a
dignidade referida a condição humana possui caráter polissêmico e aberto
encontrando-se em estado permanente de mutação e desenvolvimento ao
longo do tempo e do espaço que está em constante concretização e
delimitação pela práxis constitucional.1 Daí a importância da distinção,
pois ambas andam de mãos dadas nos dias atuais: ora a expressão
dignidade pode ser utilizada como qualidade, apreço ou status social; ora
pode ser entendida como ideia de igual dignidade inerente a todo e
qualquer ser humano, especialmente, incorporada nos diplomas jurídico-
constitucionais do segundo pós-guerra.
1 ROCHA, Cármen Lúcia Antu nes. O pr incípio da dignid ade da pessoa humana e a
exclusão social. In: Revista interesse público. Belo Horizonte. n. 4. 1999. p. 24.
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Na Roma antiga, a expressão dignitas estava relacionada ao status
social do indivíduo na sociedade, tais como honra, respeito, deferência e
consideração social até mesmo pela função pública que o sujeito exercia
na comunidade. Era uma espécie de status privilegiado particular que o
indivíduo ostentava no seio da sua comunidade.
De acordo com Ingo Sarlet, “no pensamento filosófico e político
da antiguidade clássica, verificava-se que a dignidade (dignitas) da pessoa
humana dizia, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo e o
seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, daí
poder falar-se em uma quantificação e modulação da dignidade, no sentido
de se admitir a existência pessoas mais dignas ou menos dignas. Por outro
lado, já no pensamento estóico, a dignidade era tida como a qualidade que,
por ser inerente ao ser humano, o distinguia das demais criaturas, no
sentido de que todos os seres humanos são dotados da mesma dignidade,
noção esta que se encontra, por sua vez, intimamente ligada à noção de
liberdade pessoal de cada indivíduo (o homem como ser livre e
responsável por seus atos e seu destino), bem como a ideia de que todos os
seres humanos, no que diz com a sua natureza, são iguais em dignidade.
Com efeito, de acordo com o jurisconsulto político e filósofo romano
Marco Túlio Cícero, é a natureza quem descreve que o homem deve levar
em conta os interesses de seus semelhantes, pelo simples fato de também
serem homens, razão pela qual todos estão sujeitos às mesmas leis
naturais, de acordo com as quais é proibido que uns prejudiquem aos
outros, passagem na qual (como, de resto, encontrada em outros autores da
época) se percebe a vinculação da noção de dignidade com a pretensão de
respeito e consideração a que faz jus todo ser humano. Assim,
especialmente em relação a Roma notadamente a partir das formulações
de Cícero, que desenvolveu um compreensão da dignidade desvinculada
do cargo ou posição social é possível reconhecer a coexistência de um
sentido moral (seja no que diz às virtudes pessoais do mérito, integridade,
lealdade, entre outras, seja na acepção estóica referida) e o sociopolítico de
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dignidade (aqui no sentido da posição social e política ocupada pelo
indivíduo).”2
Dessa maneira, é possível afirmar que os primórdios da dignidade
da pessoa humana encontram-se na antiguidade clássica e o seu sentido e
alcance estava relacionado à posição que cada indivíduo ocupava na
sociedade. Como dito acima, a palavra dignidade provém do latim dignus
que representa aquela pessoa que merece estima e honra, ou seja, aquela
pessoa que é importante em um grupo social.
No período medieval, a dignidade da pessoa humana passou a
entrelaçar-se aos valores inerentes à filosofia cristã. Melhor dizendo: a
ideia de dignidade passa a ficar vinculada a cada indivíduo, lastreada no
pensamento cristão em que o homem é criação de Deus sendo salvo de sua
natureza originária por Ele e possuindo livre arbítrio para a tomada de suas
decisões. Severino Boécio (480-524) é o divisor de águas de dois tempos:
a antiguidade e o medievo. Boécio é, pois, o precursor da definição
filosófica de pessoa (humana), embora seu desenvolvimento pleno tenha
se dado na metade do século XIII. O seu contributo foi situar a pessoa
humana no horizonte da racionalidade a partir de sua condição de
singularidade. A partir de Boécio, a noção de pessoa como substância
individual e racional elevou o ser humano a uma nova esfera de dignidade
e responsabilidade, implicando em nova perspectiva de ser e estar no
mundo.
De acordo com Savian Filho3 e Ricardo Antonio Rodrigues4,
“Boécio elabora no capítulo III, do texto Contra Eutychen et Nestorium a
definição de Persona que se tornará clássica no pensamento medieval e
moderno. presente no contexto das controvérsias teológicas dos
primeiros séculos, em oposição com natura (physis) e essentia (ousia),
persona torno-se palavra central também para a antropologia filosófica e
2 SAR LET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos dir eitos fundamentais: uma teor ia gera l dos
direitos fundamentais na perspectiva constitu cional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria dos
Advogados; 2011, p. 34-36.
3 BOÉCIO. Escritos (OPUSCULA SACRA). Tradução, introdução, estudos introdutórios
e notas Juvenal Savian Filho. Prefácio de Marilena Chauí. São Paulo: Martins Fontes,
2005, p.225-227.
4 RODRIGUES, Ricardo Antonio. Severino Boécio e a Invenção Filosófica da Dignidade
Humana. In: Seara Filosófica. N. 5, Verão, 2012, p. 3-20.

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