Novo discurso proprietário

AutorDanielle Portugal de Biazi
Páginas161-176
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NOVO DISCURSO PROPRIETÁRIO
7.1 O ACESSO COMO NOVO VETOR PROPRIETÁRIO
Na década de 1950, Orlando Gomes publicou “A crise do direito”, cujo capítulo
“A evolução do direito privado e o atraso da técnica jurídica” foi republicado pela
Revista Direito GV, em 2005. Em sua crítica à insuf‌iciência dogmática no direito
civil, Orlando Gomes revela insatisfação quanto ao avanço da produção científ‌ica
frente aos desaf‌ios sociais da época em alguns setores do direito privado, entre eles
a propriedade:1
Despe-se a propriedade tradicional das cousas de suas vestes talares, que se reconhecem fora de
moda, e quando novos poderes sôbre novos bens reclamam regulamentação jurídica, retira-se do
museu a velha túnica dos romanos para recobrir os fatos novos. Como não é fértil a imaginação
dos juristas, procuram explicar as situações novas com o auxílio do velho conceito.
Esta advertência ganha ainda maior relevância na medida em que, mais de 70
anos após sua exteriorização, revela-se atual. O conceito de propriedade elaborado
pelo liberalismo francês, como símbolo da liberdade e de poder político da classe
burguesa recebeu poucas alterações, embora o mundo e as relações econômico-so-
ciais tenham se transformado de forma expressiva2.
1. GOMES, 2005, p. 129.
2. “[...] property, although it must always be an individual right, need not be conf‌ined, as liberal theory has
conf‌ined it, to a right to exclude others from the use or benef‌it of some thing, but may equally be an individual
right not to be excluded by others from the use or benef‌it of something. When property is so understood,
the problem of liberal-democratic theory is no longer a problem of putting limits on the property right,
but of supplementing the individual right to exclude others by the individual right not to be excluded by
others. The latter right may be held to be the one that is most required by the liberal-democratic ethic,
and most implied in a liberal concept of the human essence. The right not to be excluded by others may
provisionally be stated as the individual right to equal access to the means of labour and/or the means of
life”. (MacPherson, 1978, p. 201). Tradução livre: “[...] propriedade, embora normalmente seja um direito
individual, não precisa estar conf‌inada, como a teoria liberal o fez, a um direito que exclui os outros de
usarem ou se aproveitarem dos benefícios de alguma coisa, mas pode ser um direito individual de não ser
excluído pelo uso ou benefício vinculado à alguma coisa. Quando a propriedade é assim compreendida,
o problema da teoria do liberalismo democrático deixa de ser um problema relacionado a limites e se
transforma num direito individual de ser incluído ou não ser excluído pelos outros. Este direito pode se
sustentar num dos principais fundamentos da democracia liberal que é a ética, implícito no conceito libe-
ral de essência humana. O direito de não ser excluído pelos outros pode proporcionar, enquanto direito
individual, a igualdade no acesso ao trabalho ou meios de sobrevivência”.
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PROPRIEDADE: RECONSTRUÇÕES NA ERA DO ACESSO E COMPARTILHAMENTO • DANIELLE PORTUGAL DE BIAZI
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A noção funcionalizada de Léon Duguit foi a maior provocação transformadora
ao estático conceito proprietário no último século e acolhida pelas constituições
sociais ao redor do mundo. Diante disso, assim como a propriedade romana houve
por se reinventar e a propriedade medieval perdeu espaço com o passar dos séculos,
o conceito de propriedade liberal encontra-se em mutação, não está encerrado e
vem sendo provocado como nunca a adaptar-se e entregar soluções para acolher os
desaf‌ios da atualidade.
A luz que incide sobre o direito de propriedade após a Constituição Federal
de 1988 não é mais autocentrada e individualista. Assim, os instrumentos concre-
tizadores desta mudança estão enumerados na própria Constituição Federal, no
Estatuto da Cidade, no Estatuto da Terra, no Código Civil, no Código Florestal e
demais legislações que visam dar maior aplicabilidade ao preceito de que a proprie-
dade como um f‌im em si mesma deixou de ser o ponto central do ordenamento,
que agora personalizou-se e busca a tutela do indivíduo como f‌inalidade precípua.
Verif‌icou-se nos capítulos anteriores que as novas variantes, frequentemen-
te oriundas de contratos atípicos, inevitavelmente atingem a teoria do direito de
propriedade e exigem enquadramento neste contexto. Portanto, parte-se da noção
de função social da propriedade construída por Léon Duguit que, nos dizeres de
José Manoel de Arruda Alvim, assume conteúdo amplo e enquadra-se na categoria
de termo jurídico indeterminado3, porque elástica4, no sentido de impulsionar e
orientar “os valores eleitos como mais relevantes pela comunidade em seu pacto
político”.5 A função social, como provocadora de uma série de movimentações no
conceito proprietário, não esgotou o seu alcance ou as arestas a aparar. Estas, por
sua vez, residem na aquisição da titularidade por via do acesso, uma vez que é no
princípio de acesso aos bens que são criados mecanismos para o ingresso no mundo
das titularidades.6 A propriedade não se basta, tampouco tem todas as respostas no
complexo de relações atuais.
A tese aqui desenvolvida propõe-se a identif‌icar em que contexto o acesso afeta
o direito das coisas e se isso deve ser considerado como um elemento suf‌iciente a
reinterpretar a propriedade. A resposta é positiva, mas para isso é preciso dedicar
3. Ver referência a José Manoel de Arruda Alvim no capítulo 3. No mesmo sentido, Pietro Perlingieri (1972,
p. 77) e Erouths Cortiano Jr. (2002, p. 150): “A função social signif‌ica ruptura do discurso proprietário
na medida em que, enfrentando a abstração de seu modelo, remete o operador do direito para análise da
situação concreta em que se insere cada situação proprietária. A indeterminação do conceito permite,
ainda, oportuna adequação às modif‌icações sociais por que passa determinada comunidade”.
4. “l’esistenza di tale concetto elastico al livello costituzionale può importare delle differenze dalla operatività
consueta di questi concetti nell’ambito privatistico, non esaurendosi nel prof‌ilo interpretativo, mas com-
prendendo anche l’eventuale svolgimento di attività legislativa” (RODOTÀ, 2013, p. 213). Tradução livre:
“a existência de tal elasticidade no conceito constitucional pode importar em diferenças na operação destes
conceitos no âmbito privado, não se exaurindo no perf‌il interpretativo, mas eventualmente implicando na
atividade legislativa”.
5. CORTIANO JUNIOR, 2002, p. 149.
6. FACHIN, 2001, p. 50.
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