Novo paradigma cultural - fio condutor das novas modalidades de trabalho informacionais

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Ocupação do AutorMinistro do Tribunal Superior do Trabalho (TST)
Páginas37-53
CAPÍTULO 2
(1) Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Mestre em Direito e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutor
em Direito das Relações Sociais pela Universidad de Castilla la Mancha, com revalidação no Brasil pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidad de Salamanca. Autor dos livros “Garantia de Indenidade no Brasil”, “Direito do
Trabalho: curso e discurso” e “Princípios de Direito do Trabalho Sob a Perspectiva dos Direitos Humanos”, todos pela Editora LTr. Professor de
graduação e mestrado no Curso de Direito do Instituto de Ensino Superior de Brasília (IESB) e de pós-doutorado em Direitos Humanos na
Universidad de Salamanca.
(2) PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.393.
(3) LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales: lineamientos para una teoría general. Tradução para o espanhol de Sílvia Pappe e Brunhilde Erker, sob a
coordenação de Javier Torres Nafarrete. Barcelona: Anthropos Editorial, 1998. p.338.
(4) Op. cit., p.337.
(5) Op. cit., p.338.
Novo Paradigma Cultural– Fio Condutor das Novas
Modalidades de Trabalho Informacionais
AUGUSTO CÉSAR LEITE DE CARVALHO
(1)
Resumo: Este ensaio trata da relação entre o Direito e outros sistemas sociais, sobretudo da influência que os novos padrões de
comportamento, sugestionados pelas novas tecnologias e novas formas de organização, têm, ou precisam ter, na construção de
uma ordem jurídica com eles sintonizada.
Palavras-chave: Paradigmas culturais. Trabalho decente. Inteligência artificial. Economia colaborativa. Plataformas digitais.
Abstract: This essay deals with the relationship between the Law and other social systems, especially on the influence that new
behavior patterns, suggested by new technologies and new forms of business organization, generate, or should generate, toward
building a new legal order.
Keywords: Cultural patterns. Decent work. Artificial intelligence. Share economy. Digital platforms.
1. INTRODUÇÃO: A CONJUNTURA SOCIAL COMO
ORIGEM DO DIREITO
O esforço de identificar o fundamento de qualquer
ordem jurídica pode nos levar a uma regressão infini-
ta (os fundamentos se sucedem, retroativamente, na
história ou na tábua de valores), salvo se admitirmos
a existência de realidades ou princípios que possamos
converter em dogmas, quiçá em axiomas éticos, ces-
sando assim esse tormentoso processo de abstração(2).
Quando nos dedicamos a essa tarefa, de funda-
mentar a norma jurídica posta, não raro estamos
contaminados pela mesma dúvida que assoma ao le-
gislador na hora de decidir, entre as possíveis opções
normativas, aquela que lhe parece adequada para
contribuir na pacificação do conflito social: a dúvida
de legitimação.
Em meio ao conflito, ou ante a possibilidade de ele
suceder, “o sistema de direito entra em função sem-
pre que se recorre ao esquema justo/injusto”(3). Como
explica Luhmann, extraem-se “dentre as expectativas
cotidianas que se formam em massa, aquelas que po-
deriam dar bom resultado frente aos conflitos”(4) e, dife-
rente do que se via nas ordens jurídicas mais antigas, “na
sociedade moderna o direito começa, por assim dizer,
a rebaixar-se a si mesmo ao considerar como possíveis
conflitos circunstâncias inéditas nas quais ninguém po-
deria pensar se não existisse o direito”(5).
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Direito Fundamental ao Trabalho Digno no Século XXI – Vol. III
Gabriela Neves Delgado
O sistema social ganha, com o Direito, um subsiste-
ma de imunidade, que visa à redução da complexidade
do ambiente ao antecipar-se a possíveis conflitos; e o
Direito produz também segurança “para as expectativas
de comportamento que não são evidentes”(6). Mas cabe
então a advertência de Guerra Filho: “Isso, porém, é feito
não pela negação dos conflitos, isto é, contra os confli-
tos, e sim com os conflitos, assim como os sistemas vivos
se imunizam das doenças com seus germes”(7).
O incremento da automação do trabalho e de no-
vas técnicas de organização e gestão empresarial tem
historicamente gerado novos padrões de comporta-
mento, com reflexos em ambientes externos ao habitat
laboral. Os vários subsistemas sociais (familiar, asso-
ciativo, político, econômico, jurídico etc.) respondem
progressivamente a novas demandas de tempo e es-
paço, também de ajustes normativos que pretendem
impedir sejam adotados avanços tecnológicos e novos
modelos produtivos em detrimento da saúde, do lazer
e de outros direitos fundamentais(8).
Tentar compreender o modo como trabalhadores,
empresários e sociedade reagiram, nos planos cogniti-
vo e atitudinal, a partir da primeira revolução industrial,
e também como reagem nesta nova quadra cibernética
e organizacional, com ações e ideias que desafiam uma
nova regulação jurídica a partir de pressupostos fáticos
mutantes e em boa parte imprevisíveis. São esses os
propósitos almejados nos capítulos que seguem.
2. CULTURA E CONTRACULTURA DO TRABALHO
OBJETIVADO
Outro dia, ao ser questionado sobre qual a natu-
reza jurídica de seu vínculo, um condutor de veículo
habilitado em plataforma de transporte surpreendeu
o grupo de mestrandos do Instituto de Ensino Supe-
rior de Brasília que pesquisa, sob nossa coordenação, a
confiabilidade(9) das plataformas digitais no Brasil. Nos-
so entrevistado foi breve e objetivo ao afirmar que não
concordaria em ser reconhecido como empregado da
empresa que gerencia a plataforma pois, se tal suce-
(6) LUHMANN, Niklas. Sistemas sociales: lineamientos para una teoría general. Tradução para o espanhol de Sílvia Pappe e Brunhilde Erker, sob a
coordenação de Javier Torres Nafarrete. Barcelona: Anthropos Editorial, 1998. p.337.
(7) GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do direito na sociedade pós-moderna. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p.63.
(8) BONFANTE, Bruna. Transformações produtivas e direitos humanos trabalhistas: os efeitos da externalização produtiva sobre os direitos à saúde
e ao lazer do trabalhador. Curitiba: Juruá, 2019. p.41.
(9) O termo “confiabilidade” está associado à expressão “Inteligência Artificial de Confiança”, adotado pela Comissão Europeia para identificar
as plataformas que atendem aos requisitos da legalidade, da eticidade e da solidez. Disponível em:
getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+REPORT+A8-2017-0195+0+DOC+XML+V0//PT#title1>. Acesso em: 7 out. 2018.
(10) BAUMAN, Zygmunt. Trabajo, consumismo y nuevos pobres. Tradução livre para o português. Barcelona: Editorial Gedisa, 2005. p.21-24.
(11) Idem, ibidem.
(12) HARARI, Yuval Noah. Sapiens– uma breve história da humanidade. Tradução de Janaína Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2018. p.315.
desse, a empresa dispensaria muitos de seus compa-
nheiros, igualmente motoristas de aplicativos.
A solidariedade chegou antes. Algum laivo de equi-
dade ou de positivismo jurídico talvez chegue mais
tarde. Talvez não. Bauman(10) nos conta que quando as
lançadeiras começaram a operar sozinhas e a indús-
tria têxtil passou a produzir em escala, inaugurando
a primeira revolução industrial, foi possível ouvir um
empresário, pequeno industrial anônimo, que assim se
expressou pelos idos de 1806:
Achei que os homens sentiam um grande des-
gosto frente a qualquer regularidade de horá-
rios ou de hábitos [...]. Estavam muito descon-
tentes porque não podiam sair e entrar como
queriam, nem ter o descanso que desejavam,
nem continuar do modo como faziam no pas-
sado; depois das horas de trabalho, ademais,
eram alvo de observações mal-intencionadas
de outros obreiros. A tal ponto chegaram a ma-
nifestar seu desacordo com o sistema que me vi
obrigado a dissolvê-lo.
É o próprio Bauman quem interpreta esse teste-
munho:
O propósito da cruzada moral era recriar, den-
tro da fábrica e sob a disciplina imposta pelos
patrões, o compromisso pleno com o trabalho
artesanal, a dedicação incondicional ao artesa-
nato e o cumprimento, no melhor nível possível,
das tarefas impostas. As mesmas atitudes que–
quando exercia o controle sobre seu próprio tra-
balho– o artesão adotava espontaneamente(11).
Outros empresários não se sensibilizaram e embar-
caram na confiança que os agentes do capital devo-
taram, e seguem devotando, ao avanço da ciência. O
historiador israelense Yuval Noah Harari, ao especular
sobre a história da economia moderna, sustenta que
para entender como “o dinheiro fundou Estados e os
arruinou, abriu novos horizontes e escravizou milhões,
impulsionou a indústria e levou centenas de espécies à
extinção”, a palavra-chave é “crescimento(12).
Novo Paradigma Cultural – Fio Condutor das Novas Modalidades de Trabalho Informacionais
Capítulo 2
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Crescimento, explica Harari, que depende de crédi-
to, ou seja, de alguém ou alguma instituição que confie
seja bom o projeto de empreendimento e o financie
com base em lastro financeiro em regra imaginário, não
necessariamente igual ao dinheiro realmente disponí-
vel. Essa confiança não era compatível com o ceticismo
da era pré-moderna: “as pessoas raramente queriam
conceder muito crédito porque não confiavam que o
futuro seria melhor do que o presente”(13). E o que as fez
mudar de ideia? Responde Harrari:
[...] vieram a Revolução Científica e a ideia de pro-
gresso. A ideia de progresso se baseia na noção
de que, se admitirmos nossa ignorância e inves-
tirmos recursos em pesquisa, as coisas podem
melhorar. A ideia logo foi traduzida em termos
econômicos. Quem acredita no progresso acre-
dita que descobertas geográficas, invenções tec-
nológicas e avanços organizacionais podem au-
mentar a soma total da produção, do comércio e
da riqueza humana(14).
O crescimento econômico ocorreu, e está ocorrer,
sem embargo de o industrial arrependido, citado por
Bauman (ver citação supra), haver desistido de seu em-
preendimento porque isso significaria, para ele, mudar
horários e hábitos dos trabalhadores. A indiferença a tal
lamento se dá porque, no plano teórico, o compromis-
so da Economia com a Ética é não raro poroso, havendo
ideólogos que não toleram a proposição de dividir o
bolo antes de o bolo estufar. Como anota Amartya Sen,
é como se não pudesse ser consentida qualquer frouxi-
dão em meio ao progresso da economia:
Uma visão considera o desenvolvimento um
processo ‘feroz’, com muito ‘sangue, suor e lágri-
mas’– um mundo no qual sabedoria requer du-
reza. Requer, em particular, que calculadamente
se negligenciem várias preocupações que são
vistas como ‘frouxas’ (mesmo que, em geral, os
críticos sejam demasiado polidos para qualificá-
-las com esse adjetivo). Dependendo de qual
seja o veneno favorito do autor, as tentações a
que se deve resistir podem incluir a existência de
redes de segurança social para proteger os mais
(13) Op. cit., p.318.
(14) Op. cit., p.320.
(15) SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Editora Companhia do Bolso, 2010. Livro eletrô-
nico. Capítulo 2, p.1.
(16) Op. cit., cap. 3, p.13.
(17) Op. cit., cap. 3, p.13.
(18) Op. cit., cap. 3, p.14.
pobres, o fornecimento de serviços sociais para
a população, o afastamento de diretrizes insti-
tucionais inflexíveis em resposta a dificuldades
identificadas e o favorecimento– ‘cedo demais’–
de direitos políticos e civis e o ‘luxo’ da demo-
cracia. Essas coisas, adverte-se com pose auste-
ra, podem vir a ser favorecidas posteriormente,
quando o processo de desenvolvimento houver
produzido frutos suficientes: o necessário aqui e
agora é ‘dureza e disciplina’.(15)
Essa linha de pensamento criticada por Sen, cla-
ramente insensível à desigualdade social, alçou pres-
tígio e aceitação nas sociedades contemporâneas. Ou
melhor: para que a humanidade aceitasse o progresso
econômico sem política distributiva, era necessário que
alguma ideologia obtivesse força hegemônica suficien-
te para gerar a resignação das vítimas desse processo.
É relevante afastar o pressuposto de que alguma
corrente de pensamento, seja na Economia ou no Direi-
to, padeceria de neutralidade ideológica. Como admite
o próprio Sen, “o utilitarismo tem sido a teoria ética do-
minante– e, inter alia, a teoria da justiça mais influen-
te– há bem mais de um século”(16). Ele adverte que há
três características da avaliação utilitarista importantes
para que compreendamos, dizemos nós, essa base su-
postamente ética para o funcionamento de uma eco-
nomia aparentemente ascética:
a) O consequencialismo, segundo o qual “todas
as escolhas (de ações, regras, instituições etc.)
devem ser julgadas por suas consequências, ou
seja, pelos resultados que geram”(17), devendo
estar assentado que na forma clássica do utili-
tarismo, sob a influência de Jeremy Bentham, a
maior utilidade (ou maior justiça) remeteria ao
efeito de proporcionar maior prazer ou felicida-
de (ou a maior realização de desejos, conforme
correntes mais modernas), para o maior número
de pessoas;
b) O welfarismo, que restringe os juízos sobre a
utilidade aos respectivos estados de coisas “sem
atentar diretamente para coisas como a fruição
ou a violação de direitos, deveres etc.(18);
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Direito Fundamental ao Trabalho Digno no Século XXI – Vol. III
Gabriela Neves Delgado
c) O ranking pela soma em razão do qual “se re-
quer que as utilidades de diferentes pessoas se-
jam simplesmente somadas conjuntamente para
se obter seu mérito agregado, sem atentar para a
distribuição desse total pelos indivíduos (ou seja,
a soma das utilidades deve ser maximizada sem
levar em consideração o grau de desigualdade
na distribuição das utilidades)”(19).
Entre outras, algumas desvantagens da abordagem
utilitarista são quase intuitivas: indiferença distributiva
(“o cálculo utilitarista tende a não levar em conside-
ração desigualdades na distribuição da felicidade”(20)),
descaso com os direitos, liberdades e outras considerações
desvinculadas da utilidade (os direitos e liberdades “são
valorizados apenas indiretamente e somente no grau
em que influenciam as utilidades”(21)); adaptação e con-
dicionamento mental (“nem mesmo a visão que a abor-
dagem utilitarista tem do bem-estar individual é muito
sólida, pois ela pode facilmente ser influenciada por
condicionamento mental e atitudes adaptativas”(22)).
De outro ângulo, é importante consignar que a
mudança de paradigmas (valores intelectuais, morais,
espirituais, culturais enfim) perceptível entre os atores
sociais envolvidos diretamente com a atividade indus-
trial (empresários e trabalhadores) também se notou,
e é inevitável que ainda se note, na relação logicamen-
te subsequente, a de comércio de mercadorias que se
desdobra a partir da indústria e a viabiliza. Quando in-
voca esse tema, Amartya Sen remete a fragmento per-
tinente da obra “A Riqueza das Nações” de Adam Smith:
Artigos de necessidade são, no meu entender,
não só os bens indispensavelmente necessá-
rios para o sustento da vida, mas tudo o que os
costumes do país consideram indecente uma
pessoa respeitável, mesmo a mais humilde, não
possuir. Uma camisa de linho, por exemplo, não
é, rigorosamente falando, uma necessidade de
vida. Os gregos e os romanos, suponho, viviam
confortavelmente mesmo sem ter linho. Porém,
nos tempos presentes, na maior parte da Euro-
pa um trabalhador diarista respeitável sentiria
(19) SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Editora Companhia do Bolso, 2010. Livro eletrô-
nico. Capítulo 2, p.1. p.15.
(20) Op. cit., cap. 3, p.21.
(21) Op. cit., cap. 3, p.22.
(22) Op. cit., cap. 3, p.22.
(23) Apud Sen, Op. cit., cap. 3, p.52.
(24) MARX, Karl. O Capital. Tradução de J. Teixeira Martins e Vital Moreira. Coimbra: Centelha, 1974. Transcrição em HTML por José Braz para Mar-
xists Internet Archive, 2005. Disponível em: . Acesso
em: 1º dez. 2019.
vergonha de aparecer em público sem uma ca-
misa de linho, supondo-se que não a ter denota
o desonroso grau de pobreza ao qual, presume-
-se, ninguém pode sucumbir sem má conduta
extrema. O costume, da mesma maneira, tornou
os sapatos de couro uma necessidade da vida na
Inglaterra. A mais pobre das pessoas respeitáveis
de qualquer dos sexos se envergonharia de apa-
recer em público sem eles(23).
Logo, a exploração do trabalho humano, na socie-
dade capitalista, não habita (ou não habita apenas) o
reino da necessidade. Nem se desenvolveu sem que
houvesse de enfrentar o antagonismo de vertentes
ideológicas que, contrapondo-se ao utilitarismo e a ou-
tras variações da ideologia libertária, revelaram-se mais
atentas ao escopo de o direito ao trabalho não poder
contrastar com o postulado da existência digna.
Foram muitos os movimentos com essa índole dis-
ruptiva, ou contracultural. Se pretendermos adotar, por
exemplo, expressões caras ao ideário de Karl Marx(24), é
possível dizer que se urdiram novas mercadorias para
atender a novas utilidades (valores de uso), agregando-
-lhes valor resultante do tempo socialmente necessário
de trabalho (valor de troca) em proveito de lucro que, ao
sobejar o valor do salário (mais-valia), garantiriam a so-
brevivência da nova forma de organização produtiva.
Para que esse novo modelo– em que o trabalhador
servia em labor braçal e repetitivo (trabalho morto ou
trabalho objetivado) sem ver-se projetado no resultado
de seu trabalho (mediações de segunda ordem)– evo-
luísse foi forçoso que uma nova forma de pensar os pa-
drões de comportamento se disseminasse, com êxito,
entre os interlocutores sociais.
3. CULTURA E CONTRACULTURA DO TRABALHO
INFORMACIONAL
3.1. A perspectiva do empresário
Uma nova forma de pensar o mundo, e de pensar-se
no mundo: foi tal a exigência que o sistema produtivo
iniciado a partir da primeira revolução industrial impôs
Novo Paradigma Cultural – Fio Condutor das Novas Modalidades de Trabalho Informacionais
Capítulo 2
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aos trabalhadores, aos empresários, aos seus hábitos
ou costumes, à economia política e, como estaremos a
sustentar adiante, também ao Direito.
Mas há agora uma nova realidade, ungida por pla-
taformas digitais em boa parte regidas por inteligência
artificial, sendo necessário dimensioná-la para poder
compreendê-la em sua real extensão e, ademais, tentar
entender quais os paradigmas culturais que se modi-
ficam, ou precisam modificar-se, para que se legitime,
no plano das ideias, esse progresso tecnológico. Reto-
mamos, neste tópico e com esse objetivo, trecho da
argumentação que desenvolvemos em outros escritos,
tendo como ponto de partida a perspectiva do empre-
sário(25).
No modelo econômico que predomina em nos-
sos dias, o modelo de produção capitalista, a informa-
ção sobre as variáveis do mercado– relacionadas, por
exemplo, à oferta de insumos, tecnologias disponíveis,
técnicas de divisão do trabalho e variações de deman-
da– é uma vantagem comparativa que gera competi-
tividade e remete tradicionalmente ao direito de pro-
priedade: a informação é adquirida com expectativa de
ser explorada, e explorada de forma monopolista.
Por sua vez, a exclusividade na produção de bens
ou serviços é outro traço diferencial visado pelo titu-
lar da empresa, pois a ação econômica se torna exitosa
em proporção igual à da escassez do produto que ela
oferece ao mercado. Informação e exclusividade são,
portanto, variáveis muito significativas no regime de
concorrência empresarial.
Sucede, porém, de a tecnologia da informação e co-
municação (TIC) estar agora a permitir que a produção
e utilização de bens ou serviços sejam compartilhadas
por meio de plataformas controladas por algoritmos
cuja operação dispensa, parcial ou totalmente, a inter-
ferência do homem. Em rigor, esse compartilhamento
(25) CARVALHO, Augusto César Leite de. Direito do trabalho: curso e discurso. São Paulo: LTr, 2019. CARVALHO, Augusto César Leite de. Trabalho
4.0 e a Velha Regulação do Trabalho: a perplexidade frente à inteligência artificial que gerencia ou executa o novo trabalho. In: O direito em
transformação. Adélia Moreira Pessoa, Carlos Augusto Alcântara Machado, José Eduardo de Santana Macêdo (organizadores). Produção da
Academia Sergipana de Letras Jurídicas. Aracaju: Evocati, 2019. p.45-62.
(26) OITAVEN, Juliana Carreiro Corbal. Empresas de transporte, plataformas digitais e a relação de emprego: um estudo do trabalho subordinado sob
aplicativos/Juliana Carreiro Corbal Oitaven, Rodrigo de Lacerda Carelli, Cássio Luís Casagrande. Brasília: Ministério Público do Trabalho, 2018.
p.15. Os autores esclarecem: “O crowdwork refere-se a atividades que envolvem a realização de tarefas por meio de plataformas on-line que
colocam em contato diversas organizações e indivíduos com outras organizações e indivíduos por meio da internet, permitindo a aproxi-
mação entre consumidores e trabalhadores de todo o mundo. Há oferta e demanda de produtos e serviços específicos para o atendimento
de necessidades de clientes que pagam pela execução das tarefas realizadas. No crowdwork, na maioria das vezes, são feitas micro tarefas
extremamente fragmentadas, que normalmente não demandam muita qualificação e são monótonas, mas inexequíveis por computadores
ou sistemas automatizados, como, por exemplo, responder pesquisas, avaliar elementos de texto e transcrever áudios. Existem casos em
que uma grande atividade é dividida em micro tarefas independentes que, agrupadas, produzem um resultado específico. Ainda, há a pos-
sibilidade do crowdwork envolver macro tarefas (menos automatizadas e que demandam melhor capacidade de análise), projetos simples
(não automatizados e que exigem investimentos do trabalhador) e projetos complexos, que são mais incomuns. Nesses casos, pode ocorrer
a criação de logomarcas, o desenvolvimento de sítios eletrônicos, a elaboração inicial de campanhas de marketing ou a concepção de design
de interiores”. Os autores citam o MTurk, plataforma gerida pela Amazon, como exemplo de crowdwork.
realiza-se entre pares (peer to peer) ou mediante a inter-
face de empresas que aproximam, no ambiente digital,
as duas pontas do negócio.
Os exemplos já são muitos: as pessoas comparti-
lham suas casas ou os cômodos que têm porventura
ociosos, também os seus equipamentos de ginástica
ou aparelhos esportivos subutilizados, os veículos em
que viajam com assentos sem uso, livros já lidos ou as
roupas e adereços que acaso lhes sobrem– há plata-
formas especializadas para cada uma dessas utilidades,
além de outras tantas.
Os limites de tempo ou espaço se relativizam na in-
ternet das coisas, em que computadores pessoais são
suficientes para acessar, em tempo presente ou diferi-
do, utilidades escassamente disponíveis na própria re-
gião de consumo ou em qualquer região do planeta, o
bastante para exigir que os atores empresariais reconfi-
gurem seus fluxos de informação e o escopo de mono-
pólio na produção de bens ou serviços.
No setor de comércio, por exemplo, há sistemas al-
tamente sofisticados (deep learning) que, com relativa
ou absoluta autonomia quanto à intermediação huma-
na, controlam estoque, oscilação de demanda e preço
segundo as intercorrências de mercado, mensurando a
qualidade dos serviços por meio da satisfação do con-
sumidor.
O setor de serviços é igualmente afetado. No for-
mato crowdwork, plataformas on-line põem em contato
organizações e indivíduos de modo a aproximar consu-
midores e trabalhadores de todo o planeta. Como ob-
servam os procuradores do trabalho Juliana Oitaven,
Rodrigo Carelli e Cássio Casagrande, “há oferta e de-
manda de produtos e serviços específicos para o aten-
dimento de necessidades de clientes que pagam pela
execução das tarefas realizadas”(26). Solicitantes devida-
mente cadastrados na plataforma apresentam a tarefa
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Direito Fundamental ao Trabalho Digno no Século XXI – Vol. III
Gabriela Neves Delgado
a ser realizada (enquetes, análise de textos, transcrição
de áudios até projetos de execução mais complexa) e o
preço correspondente, variáveis essas que podem ser
acatadas ou não pelos fornecedores, igualmente cadas-
trados. Os solicitantes avaliam os fornecedores e isso in-
fluencia na solicitação de novas demandas, por outros
solicitantes.
Alguns agentes econômicos tradicionais perce-
bem-se desafiados e usam os mesmos avanços tecno-
lógicos para reagir, reorientando-se no mercado e aco-
modando-se a um novo modelo em que “a acumulação
(de capital) é cada vez mais baseada na captura do
produto da cooperação social, como resultado do in-
cremento da socialização da produção, principalmente
pela atividade produzida por meio das redes sociais”(27).
Todo esse novo panorama gera maior complexi-
dade na interação entre a economia e outros sistemas
sociais, inclusive o direito privado(28), pois os negócios
jurídicos até então regulados o eram na expectativa de
existirem pessoas de carne e osso nos dois polos vo-
litivos, com possibilidade recíproca de imputação de
obrigações e direitos. Voltaremos a esse tema.
3.2. A perspectiva do trabalhador
A primeira impressão do trabalhador, frente à digi-
talização de suas rotinas, é a de não se sentir tão produ-
tivo quanto antes. É a de não estar mais o seu trabalho
a agregar valor, como outrora, a mercadorias e servi-
ços, porquanto cederia agora espaço, em escala geo-
métrica, à contribuição dos algoritmos na satisfação de
todas, ou quase todas, as utilidades. Seria um mundo
em que não mais caberia, por exemplo, a inclusão do
trabalho, por Hannah Arendt, como uma das atividades
a que “corresponde uma das condições básicas sob as
quais a vida foi dada ao homem na Terra”, dado que:
[...] o trabalho é a atividade que corresponde ao
processo biológico do corpo humano, cujos cresci-
mento espontâneo, metabolismo e resultante de-
clínio estão ligados às necessidades vitais produzi-
das e fornecidas ao processo vital pelo trabalho. A
condição humana do trabalho é a própria vida.(29)
(27) CHAVES JUNIOR, José Eduardo de Resende. Desafio do Direito do trabalho é limitar o poder do empregador-nuvem. 2017. Disponível em:
ps://www.conjur.com.br/2017-fev-16/desafio-direito-trabalho-limitar-poder-empregador-nuvem>. Acesso em: 14 out. 2018.
(28) Sobre os sistemas inteligentes (deep learning) que controlam as lojas virtuais e sua atuação concorrencial, ver: LIMA, João Mateus Thomé de
Sousa. “Inteligência Artificial na Competição: uma abordagem inicial sobre atos de concentração de mercado por programas de computador”.
In: Revista de Defesa da Concorrência (CADE) v.5 n. 2 (2017). Disponível em: v.br/index.php/revistadedefesadaconcor-
rencia/article/view/328>. Acesso em: 29 jan. 2018.
(29) ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. p.8.
(30) ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018. p.27.
O trabalho estaria deixando de ser um valor social?
Em obra recente, Ricardo Antunes enfrenta a questão,
formulando-a assim:
Se parece evidente que a produção de mercado-
rias, em sentido amplo, vem se metamorfoseando
significativamente a partir da introdução do uni-
verso informacional-digital, seria plausível, então,
conceber a possibilidade concreta de um capita-
lismo sem trabalho humano, desprovido de tra-
balho vivo? E, mais, seria ainda possível equalizar
países com realidades tão díspares, borrando as
mais diferenciadas formas pelas quais se apresen-
ta a divisão internacional do trabalho, com agudas
consequências na nova morfologia do trabalho?(30)
Ao menos quatro constatações, porém, estariam
a contrariar essa expectativa de que afinal o homem
estaria a libertar-se do trabalho, ou dele descolar-se,
deixando a ideólogos e gestores do sistema capitalista
de produção a tarefa de descobrir algum outro modo
de garantir a sobrevida do sistema capitalista sem que
se apresente, como fator essencial à configuração do
lucro (ou, antes, da mais-valia), o interesse ou a partici-
pação, como consumidor, do trabalhador assalariado.
Conjecturemos, pois, sobre as quatro prometidas
evidências de a contemporaneidade ainda depender
do trabalho humano (ou seja, do trabalhador-assalaria-
do-consumidor) e de que algum modelo de capitalismo
alternativo ainda não se faz presente:
a) a expansão das cadeias produtivas globais
com adoção de trabalho braçal (trabalho morto)
em mineração, atividade agrícola ou industrial
que atuam na provisão de insumos para as em-
presas de tecnologia;
b) o surgimento, em escala expressiva, do traba-
lho muitas vezes precário de empregados espe-
cialistas em tecnologia da informação e compu-
tação (novo proletariado da era digital);
c) o modo de realizar serviços remunerados com
apoio de plataformas digitais, ainda sem a con-
solidação de qual regulação ou proteção jurídica
seria adequada;
Novo Paradigma Cultural – Fio Condutor das Novas Modalidades de Trabalho Informacionais
Capítulo 2
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d) o modo de realizar serviço gratuito de provisão
de dados em ambiente virtual, na rede mundial de
computadores ou dispositivos digitais (internet).
O trabalhador pode enquadrar-se em qualquer des-
sas quatro categorias, ilustrativamente enumeradas, e
se sentir engajado numa cultura digital que haveria,
supostamente, de libertá-lo de todo trabalho que não
o conduzisse ao prazer ou à realização pessoal(31). Mas a
era digital não cumpre o que promete.
Sentir-se-á esse trabalhador, talvez, como aqueles
intelectuais, mencionados por Hannah Arendt, que ao
início da era tecnológica desejavam ser considerados
membros da população operária “uma vez que, nas
condições modernas, toda ocupação deveria demons-
trar sua utilidade para a sociedade em geral” e “a uti-
lidade das operações intelectuais se tornara mais que
duvidosa, dada a moderna glorificação do trabalho”(32).
Vamos por partes.
Sobre as cadeias globais de produção, Antunes
expressa ter reserva quanto ao argumento de ser hoje
predominante o trabalho não manual ou imaterial, vin-
culado às tecnologias da informação e comunicação
(TIC’s), “uma vez que não se destaca (ou não se consi-
dera com o peso que merece) que as chamadas ativida-
des ‘virtuais’ são dependentes e têm conexões fortes com
o mundo da materialidade(33).
Antunes sustenta que essa percepção de o trabalho
manual estar em progressiva dizimação tem a ver com
uma visão eurocêntrica da realidade pois as atividades
não manuais “não poderiam existir sem a existência de
infindáveis mercadorias produzidas em áreas e espaços
com menor visibilidade, como nas minas da África ou
da América Latina, nas sweatshops da China ou em ou-
tros países localizados no Sul do mundo”(34).
Valendo-se dos estudos e pesquisas desenvolvidos
por Ursula Huws, arremata Ricardo Antunes:
[...] sem a produção de energia, de cabos, de com-
putadores, de celulares e de uma infinidade de
produtos materiais, sem o fornecimento das ma-
(31) Sobre a possibilidade de o trabalho dever ter essa aptidão emancipatória: WANDELLI, Leonardo Vieira. O direito humano e fundamental ao
trabalho. São Paulo: LTr, 2012. Pondera Wandelli (p. 163): “[...] considera-se mais profícuo enveredar por uma perspectiva não exclusivamente
instrumentalista das relações econômicas, de modo que, a par das considerações de ordem material e de maximização do autointeresse,
sem dúvida presentes, são essenciais às relações de trabalho outras dimensões, morais, simbólicas, comunicacionais e normativas, que cons-
tituem as condutas sociais, as quais se revelam, muitas vezes, em desacordo com a rigidez de um determinismo puramente econômico [...]”.
(32) Op. cit., p.113.
(33) Op. cit., p.50.
(34) Idem.
(35) Op. cit., p.50.
(36) Bonfante, Op. cit., p.24.
térias-primas para a produção das mercadorias,
sem o lançamento de satélites ao espaço para
carregar seus sinais, sem a construção de edifí-
cios onde tudo isso é produzido e vendido, sem
a produção e a condução de veículos que viabili-
zem sua distribuição, sem toda essa infraestrutu-
ra material, a internet não poderia ser sequer co-
nectada. Por conta desse elemento vital, [...] são
ainda poucos os trabalhos que não demandam
alguma forma de atividade física, mesmo que
seja apenas a de utilizar um teclado(35).
Em suma, o modelo fordista tem dado lugar a um
modelo de acumulação flexível em que as empresas
atuam em rede, estimulando a adoção de meios de in-
tegração econômica que permitem a horizontalização
da produção e, assim, “a possibilidade de os empregos
se deslocarem para outros locais– em especial, países
periféricos, com menor custo da mão de obra– acabou
gerando empregos de menor duração, mais inseguros,
com menos garantias, com mais rotatividade”(36).
Nos dias que correm, a acumulação de capital
ajusta-se a novos modelos de produção menos hie-
rarquizados, nos quais se ambienta confortavelmente
a subcontratação de serviços, ou seja, a denominada
terceirização. Para além das fontes históricas ou nor-
mativas dessa triangulação da atividade econômica–
que ocorre apenas no tocante ao fator de produção
que corresponde ao trabalho humano (não se onera,
com igual entusiasmo, o provimento de capital e de
matéria-prima com subcontratos)–, interessa-nos aqui
destacar como se modifica o modo de o trabalhador se
reconhecer no mundo do trabalho a partir de quando
ele se percebe terceirizado.
É disso emblemático o distanciamento, mais per-
ceptível na terceirização da atividade-fim, entre os ob-
jetivos institucionais que atraem o esperado compro-
misso de empregados e empregadores com o sucesso
empresarial e, do lado do trabalhador, o anseio natural
de pertencer ao grupo social (ou categoria profissional)
que terá logrado ganhos históricos pela coparticipação
44
Direito Fundamental ao Trabalho Digno no Século XXI – Vol. III
Gabriela Neves Delgado
nessa conquista de espaço entre players, no mercado
de bens ou serviços.
O bancário quer naturalmente integrar a categoria
dos que atuam em instituições financeiras, o mesmo se
aplicando a metalúrgicos, operários da construção ci-
vil, trabalhadores em hospitais e clínicas, a eletricistas, a
comerciários, a empregados do agronegócio e a tantos
outros. É de manifesta pertinência, por isso, a observa-
ção de Gabriela Delgado e Helder Amorim:
A fragmentação do núcleo organizacional da em-
presa, onde se situam suas atividades finalísticas,
[...] constitui o mais perverso mecanismo de de-
sarticulação da organização coletiva do trabalho
e, portanto, de esvaziamento da eficácia dos ins-
trumentos coletivos de promoção do valor social
do trabalho– o que compromete sobremaneira
a possibilidade de emancipação coletiva do tra-
balhador terceirizado(37).
A terceirização de serviços na atividade-fim (ou na
core activity), para os mencionados autores, tem apti-
dão para gerar emprego rarefeito, vale dizer: “aquele
que, apesar da roupagem formal, mediante registro e
observância esquemática de direitos trabalhistas, pa-
dece de déficit de efetividade normativa, por uma in-
tensidade e por uma qualidade protetiva muito inferior
ao padrão constitucionalmente assegurado às relações
de emprego diretas”(38). É inquietante constatar que as
cadeias globais de produção adotam a terceirização
como método, abundantemente(39).
Sobre o trabalho digital em condições precárias (se-
gunda evidência de que subsiste o trabalho humano),
cabe ver que as tecnologias da informação e da comu-
nicação permitem que se desenvolva, cada vez mais,
o trabalho à distância, o teletrabalho ou o trabalho
intermitente, ou ainda a mescla entre esses modelos,
de modo a subtrair do trabalhador a certeza de que
haveria um tempo predefinido de disponibilização de
sua energia laboral em troca de salário que, sendo pre-
visível, financiaria seu tempo de otium, ou tempo sem
trabalho. O fato de conhecer-se como trabalhador infor-
macional não faz esse trabalhador sentir-se, necessaria-
mente, integrante da categoria dos trabalhadores que
se libertaram da subalternidade.
(37) DELGADO, Gabriela Neves. Os limites constitucionais da terceirização. São Paulo: LTr, 2014. p.102.
(38) Op. cit., p.106.
(39) ANTUNES, Op. cit., p.171-177.
(40) ANTUNES, Op. cit., p.77.
(41) ANTUNES, Op. cit., p.66.
(42) FELICIANO, Guilherme Guimarães. Curso crítico de direito do trabalho: teoria geral do direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2013. p.33.
Em outras palavras, trabalhos mais qualificados
para um contingente reduzido– de que são exem-
plo os trabalhadores das indústrias de software e
das TICs– e, no outro polo do pêndulo, modalida-
des de trabalho cada vez instáveis para um uni-
verso crescente de trabalhadores e trabalhadoras.
No topo da pirâmide social do mundo do tra-
balho, em sua nova morfologia, encontramos,
então, os trabalhos ultraqualificados que atuam
no âmbito informacional e cognitivo. Na base,
ampliam-se a informalidade, a precarização e o
desemprego, todos estruturais; e, no meio, en-
contramos a hibridez, o trabalho qualificado que
pode desaparecer ou erodir, em decorrência das
alterações temporais e espaciais que atingem as
plantas produtivas ou de serviços em todas as
partes do mundo.(40)
Essa nova realidade tem ao menos duas consequên-
cias atávicas no processo civilizatório, sentidas respecti-
vamente por aqueles que executam o trabalho digital e
pelos que se mantêm nas formas tradicionais de traba-
lho: a) o surgimento do infoproletariado; b) a expectativa
de desregulação progressiva do trabalho tradicional.
Os infoproletários participam de um mundo em
que a automação promove maior produtividade com
novos “mecanismos geradores de trabalho exceden-
te, ao mesmo tempo que expulsam da produção uma
infinidade de trabalhadores, que se tornam sobrantes,
descartáveis, desempregados”. Por via reflexa, a menor
empregabilidade “reduz ainda mais a remuneração da
força de trabalho em amplitude global, por meio da re-
tração salarial daqueles assalariados que se encontram
empregados”(41).
Em paralelo, na perspectiva dos que não estão in-
seridos na tecnologia da informação, “o trabalho mate-
rial– que produz coisas e não ideias– perderá seu valor
social e, portanto, seu imperativo de tutela jurídica”. É o
que prediz Guilherme Feliciano, para em seguida arre-
matar: “a mecanização e a informatização responderão
per se ao propósito de acumulação do capital e torna-
rão cada vez menos necessária a figura do trabalho es-
tável, passando a predominar as atividades laborais de
curta ou curtíssima duração”(42).
Novo Paradigma Cultural – Fio Condutor das Novas Modalidades de Trabalho Informacionais
Capítulo 2
45
Sobre a prestação de trabalho que se realiza por
meio de plataformas digitais, ou outros sistemas que
utilizem inteligência artificial (terceira evidência de que
subsiste o trabalho humano), é possível perceber que
organismos internacionais estão atentos à iterativa re-
clamação de alguns trabalhadores quanto à ausência
de tutela jurídica. Por exemplo, a Comissão Europeia di-
vulgou, em abril de 2019, estudo acerca dos requisitos
indispensáveis para que possa conceber um sistema
como movido por inteligência artificial de confiança(43).
Assim problematizou:
A IA pode trazer benefícios para uma grande va-
riedade de sectores, como os cuidados de saúde,
o consumo de energia, a segurança dos veículos
automóveis, a agricultura, as alterações climáti-
cas e a gestão dos riscos financeiros. Pode igual-
mente ajudar a detectar as fraudes e ameaças
no domínio da cibersegurança e permitir que
as autoridades policiais possam combater mais
eficazmente a criminalidade. No entanto, a IA
coloca também novos desafios para o futuro do
trabalho e levanta questões de ordem jurídica e
ética.(44)
Fazendo repercutir essa sensação latente de ano-
mia jurídica, os peritos independentes que partici-
param desse estudo anotaram que “os sistemas de IA
têm de estar centrados no ser humano e assentar no
compromisso de serem utilizados ao serviço da huma-
nidade e do bem comum, com o objetivo de melhorar
o bem-estar e a liberdade dos seres humanos”.
Com esse desiderato, concluíram que o sistema
provido de inteligência artificial de confiança haverá de
atender a três componentes que devem ser observadas
ao longo de todo o ciclo de vida do sistema:
a) “deve ser Legal, garantindo o respeito de toda a
legislação e regulamentação aplicáveis”;
b) “deve ser Ética, garantindo a observância de
princípios e valores éticos”;
c) “deve ser Sólida, tanto do ponto de vista técni-
co como do ponto de vista social, uma vez que,
mesmo com boas intenções, os sistemas de IA
podem causar danos não intencionais.
(43) Disponível em: .europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+REPORT+A8-2017-0195+0+DOC+XML+V0//PT#
title1>. Acesso em: 7 out. 2018.
(44) Disponível em: abalhos_sobre_as_orienta__
es_deontol_gicas.pdf>. Acesso em: 6/dez. 2019.
(45) OIT (ILO). Work for a brighter future: global comission on the future of work. p.42. Disponível em:
KeA40fX29ohyMHDs2EeWdH_B_TA/view>. Acesso em: 15 dez. 2019.
Acolhendo tais recomendações, e para dar curso à
regulação da inteligência artificial na União Europeia,
o Parlamento Europeu, no que toca aos impactos no
mercado de trabalho e nos direitos dos trabalhadores,
apresenta proposta de resolução na qual realça, entre
outros destaques:
[...] a importância fundamental de proteger os
direitos dos trabalhadores nos serviços colabo-
rativos– em primeiro lugar, o direito de os traba-
lhadores se organizarem e o direito à negociação
e ação coletivas, em conformidade com o direito
e a prática nacionais; recorda que todos os tra-
balhadores da economia colaborativa são quer
trabalhadores por conta de outrem quer traba-
lhadores por conta própria, consoante a primazia
dos factos, e devem ser classificados nestes ter-
mos; apela aos Estados Membros e à Comissão
para que, nos respetivos domínios de competên-
cia, garantam condições de trabalho equitativas
e uma proteção jurídica e social adequada para
todos os trabalhadores na economia colaborati-
va, independentemente do seu estatuto.
No âmbito da OIT, a orientação que tem prevale-
cido também não é cética, ou cética somente, quanto
ao trabalho do futuro. Ainda em 2019, e ao comemorar
seu centenário, a Organização Internacional do Traba-
lho fez publicar relatório sobre o futuro do trabalho(45)
no qual salienta, de início, ser relevante a constatação
de estarem as novas tecnologias a criar ou destruir pos-
tos de trabalho, ou de estarem a exigir para eles nova
qualificação. Mas tão ou mais importante, consigna a
OIT, é a atenção que se deve dar para o papel impor-
tante que o avanço tecnológico pode ter na promoção
de trabalho decente.
A OIT sublinha que a tecnologia pode livrar os tra-
balhadores do labor penoso, insalubre, perigoso ou de-
gradante. E que os robots e os cobots podem reduzir o
estresse laboral e as doenças relacionadas ao trabalho,
tudo a depender fundamentalmente das escolhas que
se fizer acerca dos novos projetos de trabalho.
Mundo afora, a ordem jurídica tem sido demanda-
da para prevenir ou solucionar conflitos metaindivi-
duais relacionados aos costumes que derivam do uso
46
Direito Fundamental ao Trabalho Digno no Século XXI – Vol. III
Gabriela Neves Delgado
de novas tecnologias. No próximo e último capítulo,
haveremos inclusive de perscrutar acerca do modo
como o Direito tem incorporado esses novos hábitos
e costumes do mundo informacional, quando então
poderemos apontar algumas incursões jurídicas que
visam acomodar alguma inquietação dos trabalhado-
res envolvidos nessas organizações produtivas.
Das quatro evidências de que o trabalho huma-
no resiste à alta tecnologia da era contemporânea,
falta ver, porém, a que diz sobre o trabalho– gratui-
to– de prover dados para empresas de tecnologia. E
aqui há sentido em recordar reportagem da revista
The Economist, de 11 de janeiro de 2018, que veicula-
ra interessante tese dos pesquisadores Arrieta Ibarra,
Jiménez Hernándes Lanier e Weyl(46) segundo a qual
os algoritmos que alimentam a inteligência artificial
precisam usar uma imensa quantidade de dados, dis-
poníveis sem custo para as empresas de tecnologia,
com objetivos os mais variados– por exemplo, os de
definir estratégias e operações de mercado, expandir
elementos de cultura artística ou bibliográfica, disse-
minar teorias políticas, econômicas e outros saberes,
autonomizar a direção de um carro ou o reconheci-
mento facial.
As empresas de internet juntam esses dados dos
usuários a todo momento, captando-os quando eles
buscam algo no Google ou usam o comando de voz do
telefone. Os mencionados pesquisadores ponderaram
que para a economia funcionar de forma adequada no
futuro e para evitar uma crise de desemprego tecno-
lógico, devemos levar em conta esses fatos e mudar
o relacionamento entre grandes grupos de internet e
seus usuários.
Parece razoável concluir que a reificação inocente(47)
do trabalhador, a sua conversão em objeto não perso-
nificado do processo produtivo, encontra assim o seu
ponto culminante. Na fórmula tradicional, retratada ge-
nialmente em Tempos Modernos de Chaplin, o trabalha-
dor não se sentia projetado na utilidade que produzia
mas, diferente de agora, ele sempre estava consciente
de que algo era produzido ao final da esteira e, se lhe
aguçasse a curiosidade, saberia o que, com sua ação
objetivada, teria ajudado a produzir. Na fórmula pós-
(46) Matéria jornalística sobre a conversão do “trabalho de dados” em objeto de contrato de trabalho. Disponível em:
com/2018/01/16/monetizacao-dos-direitos-de-personalidade-dados-como -capital-o-trabalho-de-dados-ou- o-proletariado-de-dados-
-uma-breve-analise-de-tese-interessante-reportagem/>. Acesso em: 29 jan. 2018.
(47) ANTUNES, Op. cit., p.108, secundando a expressão de Luckács.
(48) GOLDIN, Ian. La búsqueda del desarrollo: el crecimiento económico, los cambios sociales y algunas ideas. Madrid: Tell Editorial, 2016. p.128.
Tradução livre para o português.
(49) Fragmento da “Política” lembrado por Hannah Arendt (Op. cit., p.99).
-moderna, a energia humana é ingenuamente despen-
dida e adiciona valor a atividades empresariais ignora-
das, incompreendidas, nunca antes tão rentáveis.
3.3. A perspectiva da sociedade
Trabalhadores ludistas de York, na Inglaterra do iní-
cio do século XIX, queimaram e quebraram máquinas
para pressionarem seus empregadores, indiferentes às
sequelas sociais promovidas pela automação de ser-
viços. O progresso tecnológico não cessou, malgrado
a movimentação obreira tenha provocado retaliação
patronal e repressão do Estado inglês, inclusive com
condenações à morte. Na ocasião, como agora, a tec-
nologia não foi ou vai ao banco dos réus, importando
embora o uso que dela se faz. Diz-nos Ian Goldin:
O progresso tecnológico expressa novas ideias
e se combina amiúde com uma ampla gama de
mudanças relacionadas com as habilidades, os
processos, as infraestruturas e a cultura. Separar
o papel específico da tecnologia como condutora
do desenvolvimento em algumas ocasiões pode
exagerar seu papel. A roda, a pólvora, a impres-
sora, a máquina a vapor, o telégrafo, a penicilina
e a Internet têm proporcionado um impacto pro-
fundo sobre o desenvolvimento. Sem embargo,
suas implicações são muito desiguais. Nenhuma
tecnologia é uma panaceia e a adoção, adapta-
ção e disseminação das mudanças tecnológicas
têm que ser vistas desde um âmbito institucio-
nal, econômico e social mais amplo(48).
O modo de valorar o trabalho humano, tendo como
referência a atividade intelectual, modificou-se acen-
tuadamente na história da civilização. É comum se di-
zer, exemplificativamente, que Aristóteles sustentava o
tratamento igual entre os que se dedicavam à arte e
à filosofia, havendo de ser desigualmente tratados os
escravos, pois “escravos e animais domésticos atendem
com seus corpos às necessidades da vida”(49).
Mas Arendt obtempera que os antigos não desde-
nhavam propriamente do trabalho, pois em verdade
“achavam necessário ter escravos em virtude da natu-
Novo Paradigma Cultural – Fio Condutor das Novas Modalidades de Trabalho Informacionais
Capítulo 2
47
reza servil de todas as ocupações que fornecessem o
necessário para a manutenção da vida”. E arremata:
Trabalhar significava ser escravizado pela neces-
sidade, e essa escravização era inerente às condi-
ções da vida humana. Pelo fato de serem domi-
nados pelas necessidades da vida, os homens só
podiam conquistar a liberdade dominando ou-
tros que eles, à força, sujeitavam à necessidade. A
degradação do escravo era um golpe do destino
e um destino pior que a morte, pois implicava a
metamorfose de homem em algo semelhante a
um animal doméstico(50).
Na era moderna, Adam Smith toma de empréstimo
as ideias dos fisiocratas e enaltece o trabalho produti-
vo, em postura crítica aos criados domésticos, tidos por
“homens preguiçosos” que nada produziam: “nada dei-
xam atrás de si em troca do que consomem”(51).
O conceito trabalho produtivo é retomado por Karl
Marx, que nessa categoria inclui a atividade de trans-
porte (porque quanto menor o tempo de transporte
maior a capacidade de o trabalho produzir valor e pro-
mover sua circulação(52)), mas não inclui a atividade de
comércio porque esta “se apropria de parte do mais-
-valor gerado na produção industrial e por isso não é
responsável pela sua criação”.
É interessante notar como Hannah Arendt pondera
sobre ser valiosa, mas preconceituosa, essa distinção
(trabalho produtivo vs trabalho improdutivo), dado
que, com maior proveito, haver-se-ia de distinguir obra
e trabalho, nem sempre este a resultar naquela. É como
dizer:
Realmente, é típico de todo trabalho nada deixar
atrás de si, que o resultado do seu esforço seja
consumido quase tão depressa quanto o esforço
é despendido. E, no entanto, a despeito de sua
futilidade, decorre de uma enorme premência
(50) Hannah Arendt, Op. cit., p.103.
(51) Fragmento de “A Riqueza das Nações” lembrado por Hannah Arendt (Op. cit., p.107).
(52) ANTUNES, Op. cit., p.43. O “tempo de circulação” do capital pode aumentar ou diminuir o “tempo de rotação”, segundo a fórmula marxiana,
reproduzida por Antunes: tempo de rotação = tempo de produção + tempo de circulação. Ricardo Antunes explica a tese de Marx: “[...] como
o tempo de rotação do capital é igual ao tempo de produção (que inclui o tempo de trabalho) mais o tempo de circulação, quanto mais próximo
de zero se torna o tempo de circulação do capital, tanto maiores se tornam a produtividade e a produção de mais-valor, uma vez que o tempo
de circulação do capital pode limitar ou agilizar o tempo de produção e, portanto, aumentar ou diminuir o processo de produção do mais-
-valor”.
(53) Hannah Arendt, Op. cit., p.107.
(54) Op. cit., p.108.
(55) Cfr. ANTUNES, Op. cit., p.47.
(56) LEME, Ana Carolina Reis Paes. Da máquina à nuvem: caminhos para o acesso à justiça pela via de direitos dos motoristas da Uber. São Paulo:
LTr, 2019. p.35-37.
e é motivado por um impulso mais poderoso
que qualquer outro, pois a própria vida depende
dele”(53)
Com respaldo em escritos do próprio Marx, sub-
linha Hannah Arendt que Engels teria razão quando
enleva, como momento culminante da obra marxiana,
aquele em que Marx defendeu a característica de que
se reveste a “força humana”, qual seja a força de per se
gerar produtividade, pois “o seu vigor não se esgota
depois que ela produz os meios de sua subsistência e
sobrevivência, mas é capaz de produzir um ‘excedente’,
isto é, mais que o necessário à sua reprodução”(54).
Caberia acrescer que, nos dias atuais, a distinção
de Marx (trabalho produtivo no transporte vs trabalho
improdutivo no comércio) talvez não faça inteiro sen-
tido, pois todo o setor de serviços– inclusive os atos
de mercancia– está inter-relacionado ao participar das
cadeias produtivas de valor e, portanto, da lógica do
capital(55).
A propósito da inserção do trabalho na era digi-
tal, seria então de se perguntar: como a sociedade vê
o trabalho que se desenvolve na fabricação dos novos
dispositivos de alta tecnologia? e como enxerga o tra-
balho que se realiza com a interface das plataformas
digitais? qual a possível influência da mídia eletrônica
ou digital na formulação dos padrões ideológicos que
dariam suporte a essa nova realidade?
Em sua tese de doutoramento intitulada “Da Má-
quina à Nuvem”, Ana Carolina Reis Paes Leme(56) enume-
ra estratégias de marketing que a empresa Uber, titular
de plataforma digital que oferece transporte, entregas
de alimentos e outros serviços, adotou ao ingressar no
mercado. Em 2016, a empresa mostrou ao mundo seu
plano de “colocar mais pessoas em menos carros”, com
proveito para a redução de congestionamentos, me-
lhoria da qualidade do meio ambiente, além de maior
espaço em estacionamentos veiculares, inclusive com
48
Direito Fundamental ao Trabalho Digno no Século XXI – Vol. III
Gabriela Neves Delgado
a possibilidade de compartilhamento de um só moto-
rista (ride share).
No Uber World, estacionamentos seriam transfor-
mados em parques e pessoas de todas as idades e gê-
neros poderiam ser seus próprios chefes, dirigindo com
autonomia seus carros quando os carros não fossem,
eles próprios, autônomos, dispensando a presença e o
custo de motoristas. Leme observa que “o resultado foi
bastante positivo na Europa, sendo que, em Portugal,
foi feito inclusive um manifesto com assinaturas tanto
de personalidades como de uma gama de portugueses
que assinaram a petição Queremos a Uber em Portugal”.
Mas a imagem social de que traria vantagem a to-
dos o novo mundo das plataformas digitais de trans-
porte tem sofrido algum embaçamento. A inferência
de que o trabalho no âmbito das plataformas digitais
pode, em desalinho com o que inicialmente se apre-
goou, proporcionar baixo salário e jornada excessiva
tem respaldo na experiência acumulada em países nos
quais os aplicativos de transporte fazem parte, há mais
tempo, da realidade que vivenciam.
Ao fim de 2015, por exemplo, os motoristas de apli-
cativos de transporte que atuam na França interrom-
peram as principais vias de seu país, comprometendo
inclusive o acesso a aeroportos, em protesto contra a
redução de tarifas promovida, sobretudo pelo aplica-
tivo Uber, com vistas à ampliação de sua clientela. Os
motoristas queixaram-se de que essa redução estaria
a gerar uma diminuição insuportável em seu ganho re-
muneratório(57).
Em março de 2018, a imprensa noticiou que pesqui-
sadores do MIT (Massachusetts Institute of Technology)
e do Centro de Trabalho Futuro do Instituto de Pesqui-
sas da Austrália concluíram ser menor que o salário mí-
nimo o ganho de 30% dos motoristas que operam na
plataforma Uber nos Estados Unidos, à semelhança do
que se constatara na Austrália. Cerca de um mês antes,
a mesma empresa, provedora de aplicativo de trans-
porte, havia firmado compromisso, nos Estados Unidos,
(57) Notícia acessível em: .rfi.fr/br/franca/20151218-greve-do-uber-na-franca-complica-acesso-aos-aeroportos-de-par is>. Acesso
em: 15 dez. 2019.
(58) Notícia acessível em: cado/2018/02/uber-nos-eua-determina-descanso-para-o-motorista-apos-12h.
shtml>. Acesso em: 7 out. 2018.
(59) Notícia acessível em: .abril.com.br/mundo/greve-de-taxistas-contra-uber-e-cabify-gera-caos-em- cidades-na-espanha/>.
Acesso em: 15 dez. 2019.
(60) Notícia acessível em: .abril.com.br/mundo/motoristas-de-aplicativos-protestam-em-madri-contra-regulamentacao-do-se-
tor/>. Acesso em: 15 dez. 2019.
(61) Notícia acessível em: .uol.com.br/nova-york-salario-minimo-uber-apps/>. Acesso em: 15 dez. 2019.
(62) Notícia acessível em: .correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/05/08/internas_economia,753843/paralisacao-
-de-motoristas-da-uber-aumenta-preco-das-viagens-no-df.shtml>. Acesso em: 15 dez. 2019.
(63) Notícia acessível em: .uol.com.br/plano-greve-uber-reino-unido/>. Acesso em: 15 dez. 2019.
de não permitir que os motoristas trabalhassem mais
de doze horas por dia, com intervalo interjornada míni-
mo de seis horas(58).
Ao final de julho de 2018, uma paralisação dos mo-
toristas de táxi contra as condições desfavoráveis em
que concorriam com motoristas de aplicativos gerou
caos em várias cidades da Espanha(59). Do outro lado,
motoristas dos aplicativos Uber e Cabify se concentra-
ram nas principais vias de Madri, ao final de setembro
de 2018, para protestar contra a regulamentação de
seu setor de trabalho– na ocasião, reclamaram porque
tal regulação ocorria sem que eles fossem ouvidos e
participasse do processo de elaboração das regras que
estariam por vir. O líder da agremiação sindical UGT
sustentou que os motoristas de aplicativos estavam
“em risco de exclusão social, têm mais de 45 ou 50 anos,
estão sem emprego e encontraram um trabalho neste
setor”(60).
A Comissão de Táxis e Limousines de Nova York
(sigla em inglês: TLC), em dezembro de 2018, aprovou
medidas para estabelecer o piso salarial bruto de US$
26,51 por hora para motoristas de aplicativos (Uber,
Lyft, Juno etc.) após “evidências crescentes de queda
nos pagamentos aos motoristas”(61).
Em 8 de maio de 2019, dia em que a Uber abriu seu
capital na bolsa de valores de Nova York, motoristas
que operam esse aplicativo em vários países, inclusive
no Brasil, organizaram um bem-sucedido movimento
de paralisação com vistas à elevação do valor das cor-
ridas e, consequentemente, de sua remuneração(62). No
Reino Unido, o protesto foi planejado para concentrar-
-se em Londres, Nottingham, Glasgow e Birmingham(63).
Há sempre a possibilidade de o cadinho cultural,
forjado gradualmente até garantir hegemonia a algu-
ma força socioeconômica, romper-se à mercê da expe-
riência. Quando a autonomia é desvelada e então se
enxerga o rosto angustiado– nem sempre resignado–
da dependência, dão-se os rearranjos jurídicos, nou-
tras vezes as revoluções. Em meio a essas mutações de
Novo Paradigma Cultural – Fio Condutor das Novas Modalidades de Trabalho Informacionais
Capítulo 2
49
costumes, é sobre a função do Direito, como elemento
igualmente da cultura, que estaremos, em seguida, a
tratar.
4. A INFLUÊNCIA DO DIREITO COMO ELEMENTO
CULTURAL DE IMUNIZAÇÃO E SEGURANÇA
Há pouco sustentamos, com base em Luhmann,
que o sistema do direito interfere na relação de con-
flito para imunizar uma possível escolha decisória, que
é então convertida em norma. E vimos que a decisão
normativa promove segurança, ou mais precisamente
segurança jurídica, sendo também esse o seu escopo.
Sendo o Direito uma construção cultural que re-
troalimenta o sistema social, com influência em valo-
res e costumes, cabe investigar em que medida as suas
incursões têm sinalizado para a resolução dos atuais
conflitos cibernéticos com respaldo no direito huma-
no e fundamental ao trabalho digno– ou ao trabalho
decente, como de plano prescreve o art.7º do Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, com o endosso do art.1º, III e do art.170 da
Constituição. Também interessa pesquisar, no mesmo
tema, o grau de segurança que a atividade legislativa e
a judicial têm proporcionado.
Por que insistimos em tratar de segurança? É que
o significado de segurança jurídica, tradicionalmente
associado aos direitos civis e políticos(64), foi estendido
pela comunidade internacional ao plano dos direitos
sociais, econômicos, culturais e ambientais, incluídos
os direitos relacionados ao trabalho, em especial quan-
do o “Informe do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento” (PNUD) trouxe, em 1994, a seguinte
proclamação:
La seguridad se ha relacionado más con el Esta-
do-nación que con la gente [...]. El concepto de
seguridad debe cambiar así en forma urgente en
dos sentidos fundamentales: del acento exclusi-
vo en la seguridad territorial a un acento mucho
mayor en la seguridad de la población. De la se-
guridad mediante los armamentos a la seguridad
mediante el desarrollo humano sostenible.
(64) Sobre o direito à segurança jurídica: MARTÍNEZ QUINTEIRO, María Esther. La expansividad del discurso sobre el “derecho humano de seguridad”,
un “derecho síntesis”. Concreciones y etiologia. Disponível em: .
(65) WANDELLI, Leonardo Vieira. O direito humano e fundamental ao trabalho. São Paulo: LTr, 2012. p.300.
(66) MASCARO, Alysson Leandro. Capitalismo e direitos sociais. In: Democracia e neoliberalismo: o legado da Constituição em tempos de crise.
(Coords.) Adriane Reis de Araújo, Marcelo José Ferlin D’Ambroso. Salvador: Editora JusForum, 2019. p.189-196.
(67) Apud PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Dimensiones de la igualdad. Madrid: Editorial Dikinson, 2007, p.42. A obra que o autor cita de Milton e
Rose Friedman: Libertad de elegir. Hacia un nuevo liberalismo económico.
Então é importante regular as novas modalidades
de trabalho para que os potenciais trabalhadores pos-
sam estar seguros de que o mercado somente haverá
de legitimamente lhe oferecer trabalho que assegure
“salário equitativo”, “remuneração igual por trabalho de
igual valor”, “existência decente para eles e suas famí-
lias”, também “o descanso, o lazer, a limitação razoável
das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas,
assim como a remuneração dos feriados”, dado que
é essa a baliza normativa estabelecida pelo art.7º do
e Culturais.
Também no plano normativo interno “é nítida a
associação entre formalização dos objetivos constitu-
cionais de valorização do trabalho e redução das desi-
gualdades”. Assim diz Wandelli, para em seguida con-
cluir: “Imperioso, portanto, que todo dever de proteção
relacionado ao direito ao trabalho impõe ao Estado a
obrigação de coibir quaisquer práticas empresariais
potencialmente fraudadoras da incidência desse plexo
jurídico de proteção ao emprego”(65).
De par com a segurança, a ordem jurídica pode con-
tribuir para que não se acomodem os espíritos de modo
a progressivamente tolerarem a reificação inocente do
trabalhador envolvido com tecnologias da informação
e comunicação. Há, inclusive, quem argumente que o
Direito não tem cumprido esse papel civilizatório. Com
argumentos ponderáveis, Alysson Mascaro afirma que
o Direito tem conspirado, no bojo das relações capita-
listas, para a constituição da rede de extração de mais-
-valor que se realiza mediante a exploração do trabalho
assalariado: “Assim, de início, já se desmonta o pretenso
papel ‘humanista’ ou salvador de qualquer ramo do di-
reito. Não é para frear a exploração do trabalho, mas
para constituí-la, que o direito existe”(66).
Doutro lado, há quem sustente, como o fazem Mil-
ton Friedman e Rosa Friedman, ícones do pensamento
liberal, que “uma sociedade que anteponha à liberdade
a igualdade– no sentido dos resultados– acabará sem
uma nem outra. O uso da força para lograr a igualdade
destruirá a liberdade, e a força, introduzida com boas
intenções, acabará em mãos de pessoas que a empre-
garão em prol de seus próprios interesses”(67).
50
Direito Fundamental ao Trabalho Digno no Século XXI – Vol. III
Gabriela Neves Delgado
Também relativizando a visão humanista, mas com
enfoque mais associado à econometria, Cecília Macha-
do(68) argumenta que a regulação do trabalho “tanto
pode aumentar a eficiência da economia, ao corrigir
distorções geradas por imperfeições do mercado”,
quanto “é possível argumentar que regras excessivas
prejudicam o livre funcionamento do mercado de tra-
balho, gerando efeitos indesejáveis que vão na direção
oposta ao imaginado pelo trabalhador”.
Parece-nos ter razão Ana Frazão, porém, quando
contrapõe que, “na verdade, nunca ocorreu propria-
mente o lassez-faire, mas sim uma regulação jurídica
sob medida em favor da classe dominante”(69). E há vá-
rios sintomas, no corpo social, de esgotamento do atual
estágio de pouca ou nenhuma regulação jurídica espe-
cífica para as novas modalidades de trabalho.
Por exemplo, a natureza jurídica do vínculo entre
as plataformas digitais e os trabalhadores que delas
se servem para oferecerem serviços de transporte ou
entrega de alimentos (delivery) tem sido questionada
em vários países, multiplicando-se ações legislativas e
precedentes judiciais que frustram a expectativa– for-
temente alimentada pelos gestores de citadas plata-
formas– de que haveria necessariamente uma relação
jurídica diferente da relação de emprego, ou seja, sem
a subordinação, a pessoalidade, a onerosidade e a não
eventualidade do serviço que atraem a tutela tradicio-
nal do Direito do Trabalho.
Em setembro de 2019, o Estado da Califórnia, que
tem a maior participação no Produto Interno Bruto dos
Estados Unidos, sancionou lei que obriga as platafor-
mas digitais de transporte a contratarem como empre-
gados, a partir de janeiro de 2020, os motoristas cujo
desempenho seja por elas controlado(70).
Em novembro de 2019, o governo italiano sancio-
nou a Lei n. 128, de 2 de novembro de 2019(71), em que
se opta por assegurar à prestação de trabalho no marco
das plataformas digitais a tutela assegurada ao traba-
(68) MACHADO, Cecilia. A regulação do mercado de trabalho no Brasil. In: Direito e economia: diálogos. (Coords.) Armando Castelar Pinheiro, An-
tônio J. Maristrello Porto, Patrícia Regina Pinheiro Sampaio. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019. p.411-440.
(69) FRAZÃO, Ana. Direito da concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017.
(70) Notícia disponível em: .abril.com.br/negocios/california-sanciona-lei-que-considera-motorista-de-uber-como-funciona-
rio/>. Acesso em: 7 dez. 2019.
(71) Disponível em: .infoparlamento.it/Pdf/ShowPdf/6067>. Acesso em: 7 dez. 2019.
(72) Artigo jornalístico subscrito pelo Professor Antonio Baylos Grau, da Universidad de Castilla la Mancha. Disponível em:
pot.com/2019/11/de-nuevo-sobre-los-trabajadores-de.html>. Acesso em: 7 dez. 2019.
(73) Notícia disponível em: .com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/19/justica-reafirma-vinculo-trabalhista-entre-uber-
-e-motoristas-no-reino-unido.ghtml>. Acesso em: 7 dez. 2019. Comentários da Professora Ana Frazão (UnB) sobre a primeira decisão do
Tribunal de Apelações do Reino Unido, em 2016. Disponível em:
-mercado/decisao-reino-unido-sobre-os-motoristas-da-uber-o-que -temos-aprender-com-ela-01112016>. Acesso em: 7 dez. 2019.
(74) Notícia disponível em: onews.com/2019/07/23/la-historica-sentencia-contra-deliveroo-en-espana-establece-que-hay-rela-
cion-laboral>. Acesso em: 7 dez. 2019.
lho subordinado por tempo indefinido, sempre que o
contrato formal contenha informação de que se trata
de trabalho autônomo, mas se apresentem as caracte-
rísticas da relação de emprego.
Para os trabalhadores realmente autônomos a nova
lei italiana também fixou algumas regras que o prote-
gem nesse admirável mundo algorítmico, a exemplo
da proibição de discriminação, tutela da liberdade e da
dignidade humana, além da proibição de serem excluí-
dos da plataforma ou punidos por se negarem a realizar
algum serviço, além do direito desses trabalhadores à
informação sobre as condições essenciais da relação de
trabalho e à remuneração prevista em normas coleti-
vas, ou em tabela salarial correspondente a convenção
coletiva de setores afins ou equivalentes(72).
É tal a incerteza quanto às expectativas geradas
pelo mundo digital que se criou um Observatório, na
Itália, com o objetivo de acompanhar o cumprimento
da lei e propor eventuais decisões acerca da evolução
do mercado informacional de trabalho.
No âmbito judicial, há ainda indefinição sobre a na-
tureza da relação laboral, sobretudo se há autonomia
ou subordinação dos trabalhadores. Mas é possível ci-
tar ao menos dois precedentes de cortes europeias que
ganharam enorme projeção.
Na Grã-Bretanha, o Tribunal de Apelações do Rei-
no Unido manteve, em dezembro de 2018, decisão por
meio da qual reconhecera vínculo de emprego entre
motorista e plataforma digital de transporte, inclusive
com direito a remuneração mínima das horas de traba-
lho e férias remuneradas(73).
Em julho de 2019, a Justiça da Espanha (Juzgado
de lo Social n. 19 da Madrid), em ação coletiva, fixou
que são empregados os riders (ciclistas etc.) que fazem
entrega de refeições em domicílio, tutelados portanto
pelo Estatuto dos Trabalhadores e pelo Regime Geral
de Seguridade Social(74).
Novo Paradigma Cultural – Fio Condutor das Novas Modalidades de Trabalho Informacionais
Capítulo 2
51
Não obstante toda a inquietação social acerca das
vantagens do novo mundo cibernético em que esta-
mos mergulhados, com claros espasmos regulatórios
em tantos países, a ordem jurídica haverá de estar aten-
ta ao aspecto de a mesma alta tecnologia que promove
avanços civilizatórios nas ciências, na comunicação, em
nossos hábitos e costumes ser capaz, por exemplo, de
“potencializar a desigualdade, já que grandes grupos
de indivíduos podem não estar conectados por proble-
mas de analfabetismo ou ausência de banda larga, por-
que se encontram em situação de desemprego e suas
habilidades já não são relevantes, ou os excluem dos
benefícios trazidos com essas mudanças”(75).
Entre os dezessete objetivos consagrados na “Agen-
da 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”(76), so-
bressaem, pela pertinência com o que estamos a sus-
tentar neste escrito, os de “pôr fim à pobreza em todas
as suas formas e em todos os lugares do mundo”, de
“promover o desenvolvimento sustentável e inclusivo,
o emprego e o trabalho digno para todos”, de “reduzir
a igualdade dentro de e entre os países”, de “promover
uma sociedade justa, pacífica e inclusiva” e de “revitali-
zar a associação mundial para o desenvolvimento sus-
tentável”.
O sentido é o da progressividade na idealização
e concretização desses direitos humanos, perfilados
na dimensão da solidariedade, e também de políticas
públicas necessariamente correlacionadas, tendo-se
sempre em conta os interesses da atual e das futuras
gerações. Nessa evolução, as Nações Unidas e os orga-
nismos internacionais, em cooperação, impulsionam a
vedação ao retrocesso, via regulação jurídica, dado que
há “a crescente preocupação com a relação entre as de-
cisões atuais e as consequências futuras, tanto para as
pessoas como para os sistemas ecológicos e de recur-
sos naturais”. É o que anota Ian Goldin, para em seguida
explicar o motivo de políticos e acadêmicos assim se
posicionarem:
Junto com o crescente reconhecimento de que a
economia sozinha não pode proporcionar pers-
pectivas adequadas de desenvolvimento encon-
tramos o reconhecimento de que as ferramentas
econômicas não são capazes de resolver de uma
forma aceitável a ampla gama de questões vitais
sobre a perspectiva de futuro(77).
(75) Goldin, Op. cit., p.130.
(76) Disponível em: .org/pos2015/agenda2030/>. Acesso em: 15 dez. 2019.
(77) Op. cit., p.115.
(78) D’AMBROSO, Marcelo José Ferlin. Direitos humanos e direito do trabalho: uma conexão para a dignidade. Belo Horizonte: Editora RTM, 2019.
p.32.
É como se, frustrada a libertação do trabalho, hou-
vesse de prevalecer uma “libertação dogmática e cen-
trada numa leitura holística da dignidade humana, que
contemple, prioritariamente, a efetivação concreta de
todos os DDHH, mas com um destaque especial aos di-
reitos sociais”(78).
5. CONCLUSÃO
O ordenamento jurídico, para legitimar-se, deve re-
fletir os padrões de comportamento que forjam a cultu-
ra social, amoldando-os aos valores éticos consagrados
pela ordem normativa de todas as gentes, os Direitos
Humanos. A premissa fundamental é a de experiência
civilizatória, inclusive no que toca ao trabalho, aliar-se
ao desígnio de promover existência digna, com base
nos ditames da justiça social.
O sistema social ganha, com o Direito, um subsiste-
ma de imunidade e de segurança, compreendida esta
(a segurança jurídica) também como a certeza de que
se revestem de efetividade não apenas os direitos ci-
vis e políticos, mas todos os direitos humanos e funda-
mentais, interdependentes e inter-relacionados.
O incremento da automação do trabalho e de novas
técnicas de organização e gestão empresarial tem his-
toricamente gerado novos padrões de comportamento,
com reflexos em ambientes externos ao habitat laboral.
Esse problema, antes de ser reservado à Economia, deve
sê-lo ao Direito, aquela e este sintonizados com a Ética.
No curso da história contemporânea, para que a
humanidade aceitasse o progresso econômico sem po-
lítica distributiva, era necessário que alguma ideologia
obtivesse força hegemônica suficiente para gerar a re-
signação das vítimas desse processo. Quando e onde
assim se deu, o utilitarismo terá sido a inspiração ideo-
lógica dominante.
Também na história do trabalho humano subordina-
do, novos costumes se alinharam com ajustes na ordem
jurídica. E é importante registrar que a mudança de para-
digmas culturais perceptível entre os atores sociais envol-
vidos diretamente com a atividade produtiva igualmente
se notou, e é inevitável que ainda se note, na relação lo-
gicamente subsequente, a de comércio de mercadorias.
Para a ordem social progressivamente revisada, houve
invariavelmente o surgimento de novos direitos.
52
Direito Fundamental ao Trabalho Digno no Século XXI – Vol. III
Gabriela Neves Delgado
O que está a gerar perplexidade é a contingência
de a tecnologia da informação e comunicação (TIC) es-
tar agora a permitir que a produção e a utilização de
bens ou serviços sejam compartilhadas por meio de
plataformas controladas por algoritmos cuja opera-
ção dispensa, parcial ou totalmente, a interferência do
homem, seja no compartilhamento entre pares (peer
to peer) seja com a interface de empresas que aproxi-
mam, no ambiente digital, as pontas do negócio. Agen-
tes econômicos, tradicionais e novos, ajustam-se a esse
novo modelo de interação econômica.
A OIT, ao completar o seu primeiro centenário, vem
de enfatizar que novos projetos de trabalho sejam
concebidos com recursos tecnológicos que promo-
vam condições de trabalho mais saudáveis, vale dizer:
menos penosas, insalubres ou de algum modo degra-
dantes. O modo de o empregador divisar a sua função
social será decisivo nessa evolução de hábitos e valores
éticos correlacionados.
Na perspectiva do trabalhador, há, contudo, e não
raro, a sensação de o mundo digital estar em seu entor-
no e não o absorver, excluindo-o da pós-modernidade.
Surge, para ele, um modelo de acumulação flexível em
que empresas atuam em rede, estimulando a adoção
de meios de integração econômica que permitem a
horizontalização da produção. Percebe o trabalhador
que há então o deslocamento de seu emprego para
outras plagas, ou a oferta de subemprego, ou ainda a
subcontratação que faz esse trabalhador, alternativa-
mente, sentir-se estranho na empresa de cujo sucesso
participa.
O trabalho informacional pode concorrer, por igual,
para duas consequências deletérias para a civilização
humana, sentidas respectivamente por aqueles que
executam o trabalho digital e pelos que se mantêm
nas formas tradicionais de trabalho: a) o surgimento do
infoproletariado; b) a expectativa de desregulação pro-
gressiva do trabalho tradicional.
Em verdade, a imagem social de que o novo mun-
do das plataformas digitais traria apenas vantagem não
se consolida inteiramente. Os motoristas de aplicativos
têm se rebelado em diversas cidades da Europa e das
Américas. É possível exemplificar as experiências nas
quais se constata que estão tais plataformas a propor-
cionar baixo salário e jornada excessiva, com algum
comportamento reativo de parlamentos e cortes judi-
ciais, em vários países.
A ordem jurídica pode contribuir, nesse processo
evolutivo, para que não se acomodem os espíritos de
modo a progressivamente tolerarem a reificação ino-
cente do trabalhador envolvido com tecnologias da in-
formação e comunicação. Há, todavia, quem argumente
que o Direito não tem cumprido esse papel civilizatório.
Entre os dezessete objetivos consagrados na Agen-
da 2030 Para o Desenvolvimento Sustentável, sobres-
saem alguns que guardam estreita pertinência com a
necessidade de regulação do uso das tecnologias da
informação e comunicação. O sentido é o da progressi-
vidade na idealização e concretização desses objetivos
e também de políticas públicas necessariamente corre-
lacionadas, tendo-se em conta os interesses da atual e
das futuras gerações.
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