A obra de Augusto Teixeira de Freitas e a conformação de um direito civil tipicamente brasileiro: sua genialidade compreendida como conciliação entre inovação sistemática e acuidade histórica

AutorEstevan Lo Ré Pousada
Ocupação do AutorBacharel, Mestre (2006) e Doutor ('summa cum laude') em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2010)
Páginas17-27

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Nota prévia: o presente artigo foi publicado originalmente a pretexto da coletânea organizada pelo prof. Jean-François Gerkens, da Universidade de Liège (Bélgica), publicada na RIDA 2004 com as seguintes referências respectivas: L’opera di Augusto Teixeira de Freitas e la conformazione di un diritto tipicamente brasiliano: il suo genio inteso come conciliazione tra innovazione sistematica e acuità storica in Revue Internationale des Droits de l’Antiquitè 51 (2004), pp. 187-196. Trata-se de estudo publicado por ocasião do início de uma pesquisa que redundou em nossa dissertação de mestrado. Assim, trata-se de trabalho sintético cuja finalidade foi simplesmente a de proporcionar a divulgação de nossa pesquisa no âmbito acadêmico. Pela coletânea dos resultados obtidos ao longo do desenvolvimento de nossos estudos, cf. POUSADA, Estevan Lo Ré, Preservação da Tradição Jurídica Luso-Brasileira: Teixeira de Freitas e a Introdução à Consolidação das Leis Civis, São Paulo, Universidade de São Paulo (Dissertação de Mestrado), 2006

Primeiro desafio àquele que pretende estudar algum dos meandros da obra de qualquer autor corresponde à delimitação do enfoque por meio do qual o trabalho haverá de ser conduzido. Em verdade, nosso principal objetivo é o de discutir a infiuência da obra de Augusto Teixeira de Freitas na formação do moderno direito privado brasileiro. Só que o modo segundo o qual tal objetivo há de ser atingido deve ser esclarecido de antemão.

Sem qualquer sombra de dúvida, para muitos o presente tema corresponderia a um mote de estudo extremamente feliz. Isso, de fato, se nos pareceu da mesma forma, em um primeiro momento. Apenas em um primeiro momento.

A obra de Augusto Teixeira de Freitas corresponde a um terreno verdadeiramente desconhecido à maioria dos juristas brasileiros1. Seja em virtude da não obrigatoriedade do estudo da História do Direito junto aos cursos de graduação brasileiros, seja mesmo face ao completo desapego

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manifestado ao longo dos tempos pelo brasileiro em relação à sua história, uma plêiade de fatores acaba por acarretar um completo desapreço pelos estudos históricos na área jurídica.

A atestar a ignorância da maior parte de nossos juristas acerca da obra de Augusto Teixeira de Freitas, José Gomes Bezerra Câmara enuncia – a pretexto do comentário à Tábua Sintética aprovada por Zacarias de Góes e Vasconcelos em 23 de julho de 1864:

(n)essa Tábua Sintética mantém ele a genérica divisão dos direitos em pessoais e reais, entre êstes incluindo a posse. Contudo, nas suas linhas gerais, não se afasta das idéias mestras já anteriormente consagradas na Introdução, de que, aliás, nunca se afastou. Isso vem confirmar a maturidade, a meditação, o estudo profundo dos quais resultou aquela classificação genial, infelizmente ignorada ainda tantos anos decorridos.2A despeito de tal estado de coisas, quem já se debruçou sobre a imensa obra de Augusto Teixeira de Freitas – imensidão não tanto devida à extensão, mas principalmente à densidade de seus estudos – pode seguramente asseverar a amplitude exagerada da pretensão acima formulada. Postas tais considerações, há que se mencionar – de passagem, ao menos por enquanto – o espírito dicotômico3que perpassa a obra de Augusto Teixeira de Freitas. Diria o autor – como de fato o fez em 1867 – que “sem definir, sem distinguir, sem dividir, nunca me foi possível formular a parte imperativa das matérias; e sempre, ante mim erguido, o aforismo do perigo das definições acusava-me de uma falta, e com ele o preceito dos mestres, preceito, que infelizmente ainda ninguém soube guardar!”4.

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A respeito da importância das divisões e classificações no delineamento do pensamento jurídico de Teixeira de Freitas, oportuna a lembrança de Nelson Saldanha:

(a) famosa frase sobre o

> das definições, que aliás teve em conta expressamente mais de uma vez, jamais inibiu o autor da Consolidação de definir; como jamais o inibiu de classificar. Definir e classificar, formas dominantes do racionalismo ocidental clássico (desde Descartes e Domat, desde Spinoza e Cuvier), eram ainda para Freitas o modus operandi por excelência do saber jurídico.5Ou, nas palavras do próprio autor, contidas na sua Nova Apostila:

sem divisões e classificações não há sistema de conhecimentos. Em dividir está o grande recurso de nossa débil inteligência, sem o qual a observação e a comparação seriam impossíveis e a memória sucumbiria ao peso de um prodigioso número de idéias.”6Ao que acrescentaríamos, sem qualquer receio – em relação a sua obra em particular – que sem “bipartir”, nenhum conhecimento poderá ser haurido da mesma. Isto posto, natural seria o desenvolvimento de um esforço pela diagnose de alguma das dicotomias discutidas pelo autor em texto, e decerto já se teria aí um belíssimo trabalho encampado. “Direito civil e direito comercial sob a perspectiva de Teixeira de Freitas”; ou mesmo “direito material e direito processual face aos comentários sobre o Código Seabra”; ou ainda, o mais pretensioso de todos os estudos, “direitos pessoais e direitos reais em Teixeira de Freitas”. Podemos asseverar, com a mais absoluta certeza, que até o presente momento, todos os temas acima referidos não se encontram nem de longe exauridos. No entanto, queremos menos ... e muito mais!

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Queremos menos, pois não pretendemos, em uma simples comunicação de poucos minutos, a originalidade que se hauriria de um estudo de tamanha envergadura. Nossa pretensão é bastante mais modesta: apenas a de chamar a atenção para o fio condutor que perpassa dois momentos específicos da obra de Augusto Teixeira de Freitas: a Introdução à Consolidação das Leis Civis e a carta dirigida ao Ministro da Justiça Conselheiro Martim Francisco Ribeiro de Andrada, de 20 de setembro de 1867.

Queremos mais, conforme dito. Aquele que já se debruçou sobre a obra de Teixeira de Freitas sabe que neste simples diagnóstico se encontra um dos mais preciosos tesouros até o presente momento guardados pela historiografia jurídica brasileira.

Nossa pretensão já seria bastante grande em tencionar a delimitação desse “simples” fio condutor. Mas cremos indispensável contextualizá-lo7, sob pena de percebermos tão somente uma análise comparativa completamente desprovida de significação histórica. Isto porque nos parece extremamente importante esclarecer em que contexto histórico tal objeto de estudo se insere.

Com efeito, a Consolidação das Leis Civis deve ser tomada no seu imprescindível contexto histórico-jurídico, qual seja, o de instrumento apto a intermediar a transição da disciplina civil decorrente do Livro IV das Ordenações Filipinas (1603) e a promulgação do Código Civil Brasileiro – o que só se daria em 1916. De fato, antes mesmo da outorga da Constituição Imperial (1824) – a qual por meio de seu artigo 179, XVIII determinava fosse promulgado em breve um código penal e um código civil, fundados ambos nas sólidas bases da justiça e da equidade – a lei de 20 de outubro de 1823 já estabeleceu o regime de transição da disciplina civil com a Proclamação da Independência (1822): as Ordenações, Leis, Regimentos, Alvarás, Decretos e Resoluções promulgados pelos reis de Portugal até 25 de abril de 1821 permaneceriam em vigor

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no Brasil, sendo que, a partir daquela data, somente vigorariam no ordenamento...

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