Poluição labor-ambiental. Aportes jurídicos gerais

AutorNey Stany Morais Maranhão
Páginas249-258

Page 249

*

Ney Stany Morais Maranhão **

“O medo, seja proveniente de ritmos de trabalho ou de riscos originários das más condições de trabalho, destrói a saúde mental dos trabalhadores de modo progressivo e inelutável, como o carvão que asfixia os pulmões do mineiro com silicose .”

Christophe Dejours1

Introdução

O que há de comum entre uma sequência de edifícios pichados, o odor fétido exalado do leito de um rio, queixas da vizinhança a respeito de uma barulhenta boate e o suicídio de um colega de trabalho vítima de assédio moral por parte de seu superior hierárquico? Por mais heterogêneas que possam parecer tais circunstâncias, todas retratam, juridicamente, à sua maneira, possíveis cenários de poluição.

Page 250

Essa estonteante variedade fenomênica quanto a modalidades de degradação ambiental não é fruto de ginástica semântica ou invencionice acadêmica. Trata-se, bem ao contrário, da mais lídima aplicação do texto de nossa Constituição Federal, que afiança, expressamente, a existência de pelo menos quatro dimensões ambientais: o meio ambiente natural, o meio ambiente artificial, o meio ambiente cultural e o meio ambiente laboral (basicamente, arts. 182, 200, VIII, 216 e 225).

Ora, ao fortalecer o reconhecimento de componentes estritamente humanos (ou socioculturais) na estrutura ambiental, nossa Carta Magna não apenas amadureceu, como também alargou o já imenso campo de reflexão jusambiental outrora fomentado pela Lei n. 6.938/1981, dando ensejo à consideração de interações ambientais outras, próprias à intrincada vivência humana, que vão bem além daqueles clássicos agentes físicos, químicos e biológicos, atingindo também as peculiaridades ínsitas a especialíssimas condicionantes socioculturais e mesmo laborais que afetam o ser humano.

Por corolário, alargou-se sobremaneira o conteúdo jurídico do que se deve entender por degradação ambiental. Assim, convictos de que a poluição comporta legítimo exame por diversos ângulos2, bem como escudados na inabalável premissa de que o meio ambiente do trabalho integra o meio ambiente humano, para todos os efeitos jurídicos (CF, art. 200, VIII), qual seria, afinal, o alcance de uma abordagem da poluição sob o específico ângulo do labor-ambiente? Qual seria, enfim, o conceito jurídico de uma chamada poluição labor-ambiental?

Estruturamos este artigo em uma escalada conceitual materializada na prévia investigação dos sentidos de “meio ambiente”, “meio ambiente do trabalho” e “poluição”, locuções cujos horizontes jurídicos decerto condicionam o alcance semântico do que se deve ter por poluição do meio ambiente do trabalho.

Meio ambiente: compreensão geral

De início, cumpre logo destacar que a temática ambiental é, intrinsecamente, uma temática humana3. E o Direito, justamente por ser objeto cultural, tende a ser construído à luz da constelação de fatores presente em seu tempo. Por isso, o conceito jurídico de meio ambiente também é, iniludivelmente, uma construção cultural, porque sensível às necessidades, percepções e perspectivas materiais e imateriais vivenciadas em sociedade4. Assim, o meio ambiente e sua proteção, segundo Paulo de Bessa Antunes, devem ser “compreendidos concretamente e dentro das condições específicas de cada sociedade, com os seus próprios olhos”5.

Por força dessa pontuação crítica e à vista do crescente acirramento da questão ambiental, havendo de exigir cada vez mais reflexões e análises diferenciadas e abrangentes, a tendência hodierna tem seguido pelo reconhecimento de que o bem ambiental, juridicamente, é figura complexa, integrada por componentes naturais e culturais, com múltiplos fatores em intensa e mútua interação.

Disso advém repercussão jurídica deveras importante. Veja-se que reconhecer a existência de componentes estritamente humanos ou sociais na complexa estrutura ambiental significa admitir fatores de interação outros, próprios à intrincada realidade humana, em que, com efeito, vicejam larga capacidade intelectiva, rica exteriorização psicossensorial e intensa habilidade técnica, tudo à luz de um incomparável poder de autodeterminar a sua própria história segundo condicionantes várias, tais como as filosóficas, políticas, sociais, históricas, psíquicas, científicas, culturais e econômicas.

Eis, então, o ponto: todo esse denso caldo psicossocial e sociocultural, que configura o que se pode chamar de sociosfera, necessita ser reconhecido como efetivamente integrado à vivência jurídico-ambiental. É que existem não apenas condicionantes naturais, mas também condicionantes sociais e culturais para o desenvolvimento humano.

Page 251

A respeito, ressoam importantes as lições de Elida Séguin, in verbis:

Meio Ambiente ecologicamente equilibrado representa uma abrangência conceitual de significado utópico. A determinação dos parâmetros de uma sadia qualidade de vida dependerá de paradigmas socioculturais e do avanço do conhecimento científico-tecnológico. O Meio Ambiente interfere e condiciona o ser humano, que vive dentro de uma teia de relações, a que Ruy Jornada Krebs, sob a ótica dos ensinamentos de Bronfen-brenner, denomina de desenvolvimento contextualizado, afirmando que qualquer hipótese de mudança ou integração introduzida nas pessoas, por ambientes ora receptivos ou adversos, está embasada no cotidiano. O desenvolvimento humano está diretamente ligado ao ambiente. Essas interações se processam em dois níveis: o da biosfera e o da sociosfera. No primeiro aspecto, tem-se a prevalência dos condicionantes naturais sobre o desenvolvimento humano. A sociosfera ou meio social, caracterizada pelos valores e normas ligados ao grupo e ao tempo, possui um apelo cultural.6

Indiscutivelmente, nossa Constituição Federal optou por um conceito amplo de meio ambiente, reconhecendo a integração entre elementos naturais e socioculturais (ou artificiais). Noutras palavras: admitiu como integrantes do bem jurídico-ambiental aspectos tanto da biosfera quanto da sociosfera, sempre intrinsecamente considerados. Nessa linha de ideias, o meio ambiente guarda estrutura multifacetada, constituindo-se ente complexo portador de dimensões que, embora identificáveis, são indissociáveis.

Deveras, na esteira do ordenamento jurídico-constitucional pátrio, a categoria meio ambiente — sempre humano7 —, a par de suas características gerais, comporta mesmo alguma visualização de dimensões ambientais, cada qual com uma compreensão jurídica relativamente própria. Isso quer dizer que, juridicamente, o bem ambiental permite contemplação de facetas levemente passíveis de diferenciação uma da outra — tudo sem prejuízo, claro, da sempre necessária assimilação gestáltica e incontornável perspectiva sistêmica do ente jurídico meio ambiente como um todo.

Em termos gerais, há um meio ambiente natural e um meio ambiente artificial. Com efeito, o meio ambiente natural é integrado pelos bens e recursos disponíveis na natureza. O foco, aqui, está no que foi originalmente “recebido” pelo homem. O equilíbrio ambiental, nessa dimensão, aponta para o combate à violação do padrão ecológico ínsito aos fatores naturais presentes na biosfera. Almeja-se, em essência, a manutenção de um equilíbrio ecossistêmico. A preocupação, neste campo, bem se vê, é essencialmente ecológica.

De sua parte, o meio ambiente artificial ou cultural (ou humano, stricto sensu) é integrado por fatores humanos propriamente ditos, produto direto de seu atávico poder sensível, criativo e de autodeterminação. Em suma, aquilo que é expressão material ou imaterial do homem. O equilíbrio ambiental, nessa dimensão, aponta para o combate à violação de um padrão normativo conferido aos constructos humanos conducentes à sociosfera. Almeja-se, em essência, a promoção de um equilíbrio socioambiental. A preocupação, neste campo, decerto é essencialmente sociocultural.

Assim, malgrado a já evocada indissociabilidade do todo ambiental, nosso ordenamento constitucional, buscando um trato jurídico integrativo do assunto, revelou, claramente, pelo menos quatro dimensões ambientais. Não são zonas estanques e autônomas, pois isso não se compatibilizaria com as já reportadas assimilação gestáltica e perspectiva sistêmica inerentes ao ente ambiental. São apenas destaques da mesma realidade, integrados, inter-relacionados e facilitadores da identificação do ponto crítico afetador do equilíbrio do meio ambiente. Com efeito, como já destacamos na introdução, segundo a Constituição Federal e não sem uma boa dose de polêmica, temos a revelação das seguintes dimensões ambientais: meio ambiente natural, meio ambiente artificial, meio ambiente cultural e meio ambiente laboral — sendo o primeiro afeito à biosfera e os restantes mais inclinados à sociosfera.

Meio ambiente, em nossa perspectiva, portanto, revelar-se-ia como a resultante da interação sistêmica de fatores naturais, artificiais, culturais e laborais que influencia as condições de vida, em todas as suas formas.

Page 252

Meio ambiente do trabalho: compreensão geral

O que é meio ambiente do trabalho? Qual o seu alcance jurídico? Para se ter uma ligeira noção da perturbadora complexidade do assunto, basta lembrar que, desde a década de 1970, o então cientista soviético A. V. Roshchin já ponderava ser o meio ambiente do trabalho a “resultante de uma combinação complexa de fatores tais como o progresso tecnológico, equipamento e processos industriais, a organização do trabalho e o design e o layout das dependências industriais”8.

Em tempos mais recentes, destacaríamos a formulação de Raimundo Simão de Melo, para quem o meio ambiente do trabalho, para além do estrito local de trabalho, abrangeria, igualmente, os instrumentos de trabalho, o modo de execução das tarefas, bem assim a própria “maneira como o...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT