Princípio da autodeterminação coletiva

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Páginas83-102

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O direito à negociação e à norma coletiva é fundamental

O direito à convenção coletiva e ao acordo coletivo de trabalho é direito fundamental, assim previsto no art. 7º, XXVI, da Constituição. Como direito fundamental dos trabalhadores urbanos e rurais, pressupõe-se tratar necessariamente de direito assegurado à parte mais débil da relação de trabalho, ou seja, cogita-se inexoravelmente de expectativa de validade de conjuntos normativos porventura acrescidos ao direito previsto em lei, em favor do empregado. Apenas do empregado. Diz-se então, com Ferrajoli, que "os direitos fundamentais se afirmam sempre como leis do mais débil em alternativa à lei do mais forte que regia e regeria em sua ausência"135.

Frente à ordem jurídica constitucional, parece ser assistemática (ou incoerente, portanto, a ideia de que haveria direito fundamental do empregador à redução de direitos trabalhistas previstos em lei mediante negociação coletiva de trabalho. Embora assista razão a Siqueira Neto quando lembra "ser exagero imaginar que as negociações coletivas só atuam para melhorar as condições de trabalho e de vida dos trabalhadores, da mesma forma que é falacioso imaginar que a negociação só é importante para diminuir poderes trabalhistas"136, a prevalência de uma norma coletiva que aparentemente reduza a extensão de direitos assegurados em lei pode até obter conformação jurídica, mas não há como ser relacionada a qualquer direito humano ou fundamental.

Em verdade, essa confusão conceitual tem provocado uma jurisprudência que, construída nas muitas ocasiões em que se julgam recursos patronais, afirma, com base no mencionado dispositivo constitucional (art. 7º, XXVI), a validade de cláusulas normativas destinadas a ajustar preceito legal abstrato à realidade vivida por segmentos específicos de trabalhadores, como se houvesse direito fundamental titularizado por empresários ou sociedades empresárias.

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É possível ilustrar. Quando normas coletivas contemplaram regimes de doze horas de trabalho por trinta e seis horas de descanso (em aparente antinomia a limites constitucionais e legais alusivos à duração do trabalho), ou quando outras normas coletivas pareceram desconsiderar texto convencional (art. 7.g do Pacto de San Salvador) e legal (art. 73, § 1º da CLT) quanto à redução ficta da hora noturna porque trocavam essa vantagem por adicional noturno em percentual mais elevado, ou ainda quando acordos coletivos previram o acréscimo no percentual de horas extras para fazê-lo compreender o seu reflexo na remuneração dos dias de repouso, o Tribunal Superior do Trabalho admitiu recursos de revista interpostos pelas empresas por violação do art. 7º, XXVI, da Constituição e os proveu, para validar enfim tais cláusulas normativas.

Ao decidir desse modo, por muitas vezes, o TST sempre esteve a prover juízo de equidade por meio do qual reformou decisões de tribunais regionais que lhe pareceram refratárias a cláusulas justas e produzidas por consenso entre sindicatos de categorias profissionais e empregadores, por si ou por sua representação sindical. Contudo, e tendo como adequada a premissa de serem mesmo equânimes e válidas citadas cláusulas normativas, o problema reside no aspecto de considerá-las como expressão do direito fundamental, qual seja, o direito a convenções e acordos coletivos, excentricamente titularizado por empregadores.

Em pontual inflexão, o Pleno do Tribunal Superior do Trabalho adotou, como condutor em julgamento sobre a validade de cláusula que reduzia a remuneração de horas extraordinárias in itinere sem qualquer contrapartida, o voto em que ponderamos:

"O art. 7º, XXVI da Constituição contempla, entre os direitos fundamentais dos trabalhadores urbanos ou rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, o "reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho". De logo se percebem duas características relevantes no conteúdo desse direito, com ênfase, aprioristicamente, para o aspecto de ele não veicular uma regra de conduta, mas sim a garantia de autoridade do instrumento normativo com aptidão para prescrever a conduta dos sujeitos da relação laboral. Houvesse Hart de defini-lo e decerto afirmaria não ser o citado dispositivo constitucional uma regra primária, porquanto o fosse uma regra (secundária) de reconhecimento."

"Um segundo aspecto interessante do direito de reconhecimento das normas coletivas de trabalho é ainda mais intrigante: malgrado seja esse um direito fundamental e, portanto, titularizado apenas pela parte contratualmente débil (di-lo Luigi Ferrajoli), é ele usualmente invocado por empregadores que pretendem, por seu intermédio, desafiar regras primárias de outros direitos fundamentais. É como se nele se contivesse, por descuido do poder constituinte, um direito fundamental de patrões, talvez acumpliciados com

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sindicatos obreiros coonestados na tarefa de reduzir direitos que seriam irredutíveis por sua natureza e definição."137

É fato, inclusive, que em recente julgamento (RE 590415/SC), e após ser provocado sobre a validade de quitação de parcelas trabalhistas em decorrência de adesão a plano de dispensa incentivada, quando tal quitação está prevista em acordo coletivo, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu a tese seguinte:

"A transação extrajudicial que importa rescisão do contrato de trabalho, em razão da adesão voluntária do empregado a plano de dispensa incentivada, enseja quitação ampla e irrestrita de todas as parcelas, objeto do contrato de emprego, caso essa condição tenha constado expressamente do acordo coletivo que aprovou o plano, bem como dos demais instrumentos celebrados com o empregado".

Como ratio decidendi dessa proposição jurídica, a Suprema Corte enunciou:

"[...] 3. No âmbito do direito coletivo do trabalho não se verifica a mesma situação de assimetria de poder presente nas relações individuais de trabalho. Como consequência, a autonomia coletiva da vontade não se encontra sujeita aos mesmos limites que a autonomia individual. 4. A Constituição de 1988, em seu artigo 7º, XXVI, prestigiou a autonomia coletiva da vontade e a autocomposição dos conflitos trabalhistas, acompanhando a tendência mundial ao crescente reconhecimento dos mecanismos de negociação

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coletiva, retratada na Convenção n. 98/1949 e na Convenção n. 154/1981 da Organização Internacional do Trabalho. O reconhecimento dos acordos e convenções coletivas permite que os trabalhadores contribuam para a formulação das normas que regerão a sua própria vida."

Malgrado os fundamentos judiciosos que conduziram o Supremo Tribunal Federal a validar cláusulas de acordos coletivos por meio das quais permutavam-se direitos trabalhistas oriundos de resilição contratual com valores de alta expressão pecuniária (sem que se vislumbrasse, nesse escambo, prejuízo material para os trabalhadores, o mencionado precedente do STF gerou a falsa impressão de que toda e qualquer redução do marco legal de tutela trabalhista mediante negociação coletiva - mesmo em ambiente de crise de empregabilidade, estrutura sindical com elevados déficits de representatividade e fragilização dos sindicatos antes combativos - se ajustaria à compreensão de estar a endossá-la o direito fundamental à convenção ou acordo coletivo de trabalho.

Assim sucedeu a ponto de o legislador entusiasmar-se e inserir um terceiro parágrafo ao art. 8º da CLT para enfim dispor: "No exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil, e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva".

O citado art. 8º, § 3º, da nova CLT haverá de ser observado pela Justiça do Trabalho quando for provocada acerca da interpretação, validade e eficácia de convenções ou acordos coletivos, dado que assim está agora a exigir o art. 611-A, § 1º, da CLT, tudo a motivar a observação crítica de Maurício Delgado e Gabriela Delgado:

"A leitura gramatical e literalista dos dois preceitos conjugados lega a conclusões absurdas, naturalmente. De um lado, ter-se-ia criado um superpoder na sociedade civil brasileira, acima da Constituição da República, das normas internacionais de direitos humanos imperantes no Brasil e da própria legislação federal imperativa. De outro lado, o princípio constitucional de amplo acesso ao Poder Judiciário terá sido mutilado pelas duas novas regras da legislação trabalhista, com a vedação do conhecimento judicial acerca do conteúdo dos diplomas normativos lavrados pela negociação coletiva".138

O princípio inovador, qual seja, o da "intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva", não esconde sua base ideológica, a de imunizar a vontade coletiva,

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o mais possível, do controle judicial139. E o que destinava a inibir a ação judicial potencializou-se enquanto vigeu o § 5º do art. 611-A da CLT com a redação dada pela Medida Provisória n. 808/2017140 "Os sindicatos subscritores de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho participarão, como litisconsortes necessários, em ação coletiva que tenha como objeto a anulação de cláusulas desses instrumentos, vedada a apreciação por ação individual".

Vedada a ação individual? A única interpretação compatível com o direito de acesso à justiça seria a que concluísse vedada a ação individual com...

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