O princípio da igualdade

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Páginas47-71

Page 47

Igualdade formal e substancial

Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Assim preconiza o art. 5º da Constituição brasileira que, logo em seu primeiro inciso, diz em reforço: homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. A igualdade formal é desse modo consagrada na ordem jurídica interna, como antes já o fora no artigo VII da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948: "Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei."

Mas tratar igualmente não significa negar a existência, no mundo real, da desigualdade material65. Cuida-se, bem se vê, da desigualdade que não se deseja preservar, pois os desiguais que então se inferiorizam têm as mesmas características daqueles com os quais gostariam de se igualar.

A conduta que desafia a igualdade formal, ou a incidência da regra jurídica-constitucional da igualdade de tratamento, é a "discriminação", ou seja, o tratamento desigual para pessoas iguais, naquilo em que se igualam66. A ordem jurídica atua de modo a distinguir, contudo, as desigualdades que abomina e, por outro lado, as diferenças cuja existência e legitimidade reconhece - pois é certo, como a certa altura observou Boaventura Souza Santos, que "temos o direito de ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza".

Tanto ao vedar a conduta discriminatória quanto ao consentir a diferença legítima, o Direito provê igualdade formal, ou seja, a igualdade perante a lei. Convém distingui-la, logo e portanto, da igualdade substancial, para que em seguida possamos ser coerentes na sistematização da matéria.

Page 48

Tratar igualmente os iguais, na medida em que se igualam, é a função da lei associada à igualdade formal. Noutra perspectiva, promover condições existenciais que provejam igualdade onde historicamente se sedimentou assimetria, disparidade ou desequilíbrio social - não justificado por diferenças legítimas - é a função da lei associada à promoção da igualdade substancial.

Sob o prisma da igualdade formal, o Direito prescreve o trato isonómico entre aqueles que reputa iguais, proscrevendo e sancionando a conduta destoante, individual ou coletiva; sob o espectro da igualdade substancial, o Direito interfere na ordem social para torná-la mais justa e paritária, contrapondo-se e impondo-se ao determinismo cultural.

Igualdade formal

A igualdade formal, ou igualdade perante a lei, apoia-se, como sustenta Pérez Luño67, em quatro eixos: a) a exigência de generalidade em relação à lei; b) a exigência de equiparação; c) a exigência de diferenciação; d) a exigência de igual procedimento.

3.2. 1 Igualdade formal como exigência de lei genérica

A exigência de generalidade pressupõe que a norma jurídica não se pode coadunar com privilégios, imunidades ou regras direcionadas, por qualquer razão, ao favorecimento ou prejuízo de pessoa ou grupo de pessoas. Nessa acepção, a igualdade formal dirige-se ao legislador e limita a discricionariedade da atividade legislativa.

Como visto, a igualdade formal está preestabelecida nos tratados de direitos humanos e nas cartas constitucionais de nosso tempo, oferecendo-se como parâmetro objetivo ao controle de convencionalidade e, antes, ao controle de constitucionalidade.

Caso sejam resgatadas as regras contidas na Medida Provisória n. 808/2017, ali se previa que, no Brasil, o trabalhador com contrato intermitente não teria direito a

Page 49

seguro-desemprego68 e, na prática, à proteção previdenciária69, o que evidentemente desafiará, sendo o caso, algum pronunciamento das cortes judiciais acerca de o legislador, a par de fazer-se indiferente a outros desígnios constitucionais70, haver violado o princípio da igualdade formal ao estabelecer tais distinções, aparentemente incompatíveis com a igualdade de condições de trabalho - a que se submeterão trabalhadores fixos e trabalhadores intermitentes, tratados desigualmente.

Quanto à observância do princípio da igualdade pelo legislador ordinário, é possível questioná-la também a partir da premissa - que temos, para efeito de argumentação, como válida - de o postulado da igualdade não permitir que seja discriminado o trabalhador pobre, em razão desses seus atributos (empregado e pobre), no que concerne ao arbitramento de valor para os danos extrapatrimoniais que o vitimem ou quanto ao seu direito de acesso à justiça e ao contraditório com os recursos a ele inerentes.

Ao legislador infraconstitucional seria vedado, portanto, distinguir o trabalhador que recebe salário menor para assegurar-lhe direito de reparação por dano extrapatrimonial em valor menor (como estava na nova CLT até o advento da MP 808/201771 ) ou para impedir que ele obtenha acesso à instância extraordinária pela singela razão de o seu crédito trabalhista, sendo menos elevado porque menor é o seu salário, não se revestir de transcendência económica. A decisão denegatória de recurso de revista interposto por trabalhador pobre, ao aplicar o art. 896-A, § 1º, I da CLT (que emerge da Lei n. 13.467/2017 e prevê a admissibilidade somente dos recursos que tenham transcendência económica72 ), há de submeter-se aos mencionados crivos de convencionalidade e de constitucionalidade.

Page 50

Também se oferece à crítica o novo parágrafo único do art. 444 da CLT, ao dispor que, nos temas reservados à prevalência das convenções e acordos coletivos de trabalho (enumerados no também novo art. 611-A da CLT, o contrato individual terá "a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social".

Tal novidade somente se legitimará na hipótese de se assentir, como razoável, a premissa de a debilidade contratual ser mero corolário do baixo padrão salarial e da pouca educação formal atribuível à maior parte dos trabalhadores brasileiros. Reginaldo Melhado traz a debate o aspecto de a relação de subordinação jurídica, ou estado de sujeição, derivar de causas sociais e históricas, como o desemprego estrutural e outras formas de reduzir as expectativas de trabalho e salário, ou seja, de variáveis sociais que atingem também, e acentuadamente, os candidatos a emprego mais capacitados:

"A sujeição do trabalho ao capital não é decorrência de um contrato e tampouco fenómeno sobrenatural. Não resulta de um déficit intelectual. Não é algo próprio da natureza humana e nem uma deficiência de classe. Ela resulta de fatores diversos, que se combinam, com alguns exsurgindo com maior ou menor importância de acordo com circunstâncias históricas ou conjunturais e específicas de relações de trabalho coletivas e individuais"73

Interessante constatar que a adoção do padrão salarial como discrímen, pelo legislador, pode fazê-lo incorrer em vulneração do princípio da igualdade tanto em relação ao empregado de salário inferior, que não poderia ver a lei a potencializar o seu estado de debilidade socioeconómica, quanto em relação ao empregado com título superior e salário mais elevado que a remuneração média, dado que não haveria correlação lógica entre esses atributos e seu resiliente estado de sujeição.

Page 51

Quando a lei trata desigualmente trabalhadores que prestam serviço em iguais condições, discriminando-os por motivos alheios ao conteúdo sinalagmático do contrato de trabalho, submete-se, uma vez mais, ao crivo de convencionalidade e de constitucionalidade relacionado à preeminência do princípio isonómico. Assim sucedeu, em exemplo mais remoto, quando a Lei n. 9.601/1998 previu que empregados contratados por tempo determinado para a realização dos mesmos serviços realizados pelos empregados contratados por tempo indefinido teriam temporariamente um crédito menor a título de FGTS.

No âmbito da jurisdição exercida pelas cortes internacionais, são igualmente conhecidos os casos em que o Tribunal de Justiça da União Europeia afirma inconstitucionais leis nacionais que asseguram direitos apenas a trabalhadores fixos, ou contratados sem tempo definido, valendo por todas a Sentença de 14/set/201674, amplamente noticiada75, por meio da qual a Corte Europeia negou validade a lei espanhola que previa indenizações somente para empregados fixos, não as estendendo a empregados contratados por tempo determinado.

Em suma, o legislador desatende ao princípio da igualdade formal quando "introduz uma disparidade de trato, sem que prima facie se justifique sua necessidade. Entende-se que nesses casos se dá um excesso de poder por parte do legislador, por haver ultrapassado os limites de suas faculdades discricionárias"76.

Page 52

3.2. 2 Igualdade formal como exigência de equiparação

Enquanto a expectativa de generalidade (da lei supõe, abstratamente, a existência ou a superveniência de situações iguais a serem reguladas, a exigência de equiparação volta-se a situações concretas nas quais se cogita de desigualdades não condizentes com o princípio da razoabilidade - não raro geradas por motivos irrelevantes para o exercício de direitos ou a aplicação de normas jurídicas pertinentes. Assim é para Pérez Luño, que arremata: "enquanto a generalidade entranha o trato igual do igual, a equiparação supõe o trato igual do que não o é no plano factual, mas juridicamente se estima que deve sê-lo"77.

Se é induvidoso que a discriminação, entre...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT