Princípio da operabilidade (ou da efetividade)

AutorAugusto César Leite de Carvalho
Páginas103-119

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Ao anunciar o Código Civil brasileiro editado em 2002, o jusfilósofo Miguel Reale - que colaborara em sua elaboração - afirmou que aquele novo digesto deixava-se ungir por três princípios: o da socialidade, o da eticidade e o da operabilidade.

Reale esclareceu que a socialidade corresponde à prevalência dos "valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana"162. É o que nos remete, como se nota, a tudo quanto pode ser dito atualmente sobre a transversalidade, para influenciar inclusive o Direito do Trabalho, do princípio da sustentabilidade.

A seu turno, o princípio da eticidade provocou a imposição, por meio do código, da observância de postulados éticos como os da boa-fé objetiva, da função social da propriedade e dos contratos, porque, como explicou Reale:

"Não acreditamos na geral plenitude da norma jurídica positiva, sendo preferível, em certos casos, prever o recurso a critérios ético-jurídicos que permita chegar-se à "concreção jurídica", conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou equitativa."

"O novo Código, por conseguinte, confere ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto."

"Como se vê, ao elaborar o projeto, não nos apegamos ao rigorismo normativo, pretendendo tudo prever detalhada e obrigatoriamente, como se na experiência jurídica imperasse o princípio de causalidade próprio das ciências naturais, nas quais, aliás, se reconhece cada vez mais o valor do problemático e do conjetural."

O que importa numa codificação é o seu espírito; é um conjunto de idéias fundamentais em torno das quais as normas se entrelaçam, se ordenam e se sistematizam."

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"Em nosso projeto não prevalece a crença na plenitude hermética do Direito Positivo, sendo reconhecida a imprescindível eticidade do ordenamento." 163

O princípio da operabilidade se manifesta, enfim, por meio de duas técnicas que concorrem para a efetividade da norma jurídica: a clareza de seu preceito e o recurso a normas abertas que permitam ao juiz aplicar os referenciais éticos a casos concretos. Sobre a primeira dessas técnicas, Reale enfatiza a preocupação, por exemplo, de o código distinguir mais claramente as hipóteses de decadência daquelas outras em que se aplicam prazos de prescrição. Quanto à textura aberta de normas, Miguel Reale mostra-se atento à incompletude da ordem jurídica e à necessidade de ela contingencialmente ajustar-se a novos quadros fenomênicos:

"[...] o princípio da operabilidade leva, também, a redigir certas normas abertas, e não normas cerradas, para que a atividade social mesma, na sua evolução, venha a alterar-lhe o conteúdo através daquilo que denomino estrutura hermenêutica. Porque, no meu modo de entender, a estrutura hermenêutica é um complemento natural da estrutura normativa. E é por isso que a doutrina é fundamental, porque ela é aquele modelo dogmático, aquele modelo teórico que diz o que os demais modelos jurídicos significam"164.

Os princípios da socialidade, da eticidade e da operabilidade conotam, portanto, a preeminência que o ordenamento jurídico deve emprestar à dimensão existencial e coexistencial da experiência humana e, por outro lado, a confiança em um Poder Judiciário que responda à expectativa de traduzir em atos decisórios os postulados éticos consagrados no direito positivo. Como acentua Perelman:

"O fato de o juiz submeter-se à lei ressalta a primazia concedida ao poder legislativo na elaboração das regras de direito. Mas disso não resulta, de modo algum, um monopólio do legislativo na formação do direito. O juiz possui, a este respeito, um poder complementar indispensável que lhe permitirá adaptar a lei aos casos específicos. Se não lhe reconhecessem tal poder, ele não poderia, sem recorrer a ficções, desempenhar sua missão, que consiste no solucionamento dos conflitos: a natureza das coisas obriga a conceder-lhe um poder criativo e normativo no domínio do direito"

"Esta visão das relações entre o legislativo e o judiciário supõe que, em um Estado de direito, o poder judiciário nunca fique dentro de um vazio normativo, e que os textos validamente promulgados permaneçam válidos

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até o momento em que, de modo implícito ou explícito, tiverem sido ab-rogados".165

É possível afirmar que o Direito do Trabalho, no Brasil, carece de normas jurídicas específicas as quais, inspiradas no princípio da operabilidade, traduzam-se em postulados éticos autoaplicáveis que preencham as lacunas das leis e orientem os atores sociais ou, se desavindos estes, orientem os juízes na concreção de direitos laborais. A carência de operabilidade, ou efetividade, revela-se por três vias:

  1. na ausência de normas concebidas para a relação de emprego que atendam à expectativa de sua normalização no plano existencial (ou não estritamente patrimonial;

  2. na presença de normas recentes, introduzidas pelas últimas reformas legislativas, que invadem domínios da experiência ou da realidade não susceptíveis de regulação por lei;

  3. na tentativa de inibir ou desestimular o acesso ao ramo do Poder Judiciário dedicado à solução dos conflitos relacionados ao trabalho.

Tratemos de destrinçar cada um desses itens, em um canto de cisne que não haverá de ser o último, nem o mais triste dos cantos.

A carência de normas trabalhistas não suprida pela reforma da CLT (Lei n 13.467/2017)

Há substancial diferença entre uma norma que prediz não poder o empregador "utilizar meios de vigilância a distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador" (art. 20º.1 do Código de Trabalho de Portugal e o dispositivo da CLT brasileira que inclui a imagem e a intimidade entre os direitos cuja violação gera danos extrapatrimoniais (art. 223-C, com o objetivo de estimar o valor máximo para a reparação civil daí consequente.

Mal ou bem, somente a norma portuguesa está a regular o ambiente de trabalho para preveni-lo de ação potencialmente nociva do empregador, ao passo em que a norma brasileira - anunciada pelo legislador como "modernizadora" - regula, não a

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conduta patronal, mas sim, e na linha de ancilosada vertente jurídica, apenas a mo-netização de ação danosa que não ousou expressamente proscrever.

O modo contido como "modernizado" o Direito do Trabalho, pelas alterações legislativas de 2017, pode ser facilmente diagnosticado, a exemplo do que tentamos fazer em seguida.

Ilustrativamente, os avanços tecnológicos permitem que os ambientes de trabalho, e ainda mais gravemente os de teletrabalho, possam ser monitorados por meio de cameras instaladas em paredes ou equipamentos eletrónicos, convindo estabelecer limites de tempo e modo para que essa visualização da imagem do trabalhador e de sua família se deem, sem prejuízo da intimidade e da vida privada, do lazer, da preservação da imagem ou da existência digna, enfim.

A divisão interna de trabalho também está a sofrer abalos porque "os avanços da sociedade da informação e a informatização e a automatização dos locais de trabalho, nomeadamente os avanços na robótica industrial e na área de serviços, tornaram obsoletos postos de trabalho antes assegurados pelo trabalho humano, num fenómeno que se inicia nos Estados Unidos da América e se alastra para o resto do Mundo Ocidental"166.

A subordinação do trabalhador por via telemática ou por qualquer meio eletrónico viabiliza condições de trabalho remoto independentemente de o legislador admitir que essas condições existam. À falta de lei que estabelecesse limites específicos para a exploração do trabalho não presencial sempre coube ao contrato regulá-lo e, por isso, nada acrescenta o legislador - por meio da Lei n. 13.467/2017 - quando remete ao contrato a regulação, por exemplo, do teletrabalho.

As redes on line também intensificam o surgimento de empresas em rede, além de o engenho humano estar a conceber, nos dias que correm, formas outras de interação económica que reclamam a definição de direitos trabalhistas e a atribuição de responsabilidade não apenas ao tomador dos serviços, mas, a depender do caso, também às empresas que com ele contribuem ou se beneficiam, os stakeholders. A lei trabalhista brasileira era e continua sendo omissa a propósito.

No âmbito interno das relações laborais, a criatividade dos agentes económicos tem provocado o surgimento de formas não usuais de retribuir o trabalho, ou de estimular o compromisso do trabalhador com o sucesso empresarial, que escapam da taxonomia tradicional, esta a contemplar salário fixo ou variável, comissões, prêmios, gratificações, adicionais. A nova lei segue a dar voltas em torno da natureza

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jurídica dessas velhas atribuições económicas e deixa à jurisprudência a tarefa, que a ela pertencia, de emprestar consequência jurídica ao pagamento de stock options167 ou hire bonus168, por exemplo.

Por outro ângulo, a liberdade de crença ou religião atrita-se não raro com a liberdade de empresa; a visualização da rotina financeira do empregado bancário, pela instituição financeira que o emprega, pode chocar-se também com o direito à privacidade; a monitoração do ritmo das máquinas permite ao empregador implantar metas de produtividade incompatíveis com a predisposição fisiológica do homem médio. A Lei n. 13.467/2017 nada diz acerca da conduta a ser adotada pelo empregador nessas hipóteses, falhando uma vez mais no festejado propósito de proporcionar segurança jurídica.

Ao fixar limites para a configuração de danos extrapatrimoniais ou para o valor pecuniário que poderá compensar esses...

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