Princípios

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PRINCÍPIOS
3.1 CARACTERÍSTICAS GERAIS
Demorou algum tempo para que os princípios jurídicos fossem reconhecidos
como normas. Ainda hoje, há resquícios de um entendimento segundo o qual prin-
cípios representariam proposições de conteúdo aberto sem caráter efetivamente
vinculante. Representariam meros enunciados gerais, vagos, mais simbólicos que
normativos. Tal entendimento já não predomina. Passou a época em que se enten-
diam os princípios como adereços, pura decoração do direito positivo. Na teoria do
direito atualmente consagrada, os princípios se posicionam ao lado das regras como
subcategorias de normas. Como normas, eles criam direitos e deveres para algum
sujeito, seja ele o cidadão, o legislador, o juiz, o administrador público ou quem o
substitua em suas funções.
A despeito do grau variável de generalidade e vagueza de seu enunciado, prin-
cípios se diferenciam de regras jurídicas por seu maior grau de f‌lexibilidade e adap-
tabilidade. Eles são propositalmente formulados como comandos vagos para que se
amoldem às transformações sociais ao longo do tempo e se harmonizem uns com
os outros. Enquanto as regras em conf‌lito direto se excluem conforme os critérios
da especialidade, da superioridade ou da posterioridade, os princípios se deixam
harmonizar mais facilmente. É perfeitamente concebível afastar a incidência de um
princípio sobre determinado caso concreto sem que, para isso, seja necessário negar
sua validade jurídica. Um princípio não se torna inválido, não é expulso do orde-
namento jurídico, ao abrir espaço para a incidência de outro. Apesar disso, sempre
que possível, o maior número de princípios deverá ser observado simultaneamente
em um caso concreto.
Princípios conf‌iguram em breve síntese normas jurídicas: i) escritas ou não
escritas que permeiam o ordenamento e estruturam valorativamente as discipli-
nas jurídicas; ii) cujos enunciados normativos, quando consagrados no direito
positivo, caracterizam-se pela vagueza, pela concisão e pela alta abstração; iii)
cujos conteúdos mandamentais muitas vezes se dispersam pelo ordenamento
jurídico; iv) cujos efeitos normativos variam e se adaptam de acordo com a situa-
ção, o espaço e o tempo e v) cujos destinatários são amplos e imprevistos em sua
formulação textual.
MANUAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO – VOLUME I • Thiago Marrara
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3.2 PREVISÃO CONSTITUCIONAL E FUNÇÕES
O direito administrativo brasileiro se guia por uma série de princípios cons-
titucionais gerais muito bem sistematizados na Constituição da República. De
acordo com o art. 37, caput, a administração pública nacional em todos os níveis
da federação é regida pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e ef‌iciência. A esses cinco princípios escritos, somam-se ao menos
dois outros implícitos no texto constitucional: o do interesse público e o da se-
gurança jurídica.
Apesar de formulados de modo extremamente sucinto, os sete princípios acima
enumerados representam os mais preciosos mandamentos do direito administrativo,
na medida em que exercem grande número de funções jurídicas, a saber:
i. “Função diretiva”: os princípios orientam as condutas do legislador, sobre-
tudo na criação do direito administrativo positivo; dos juízes na função de
solução de conf‌litos relacionados com a Administração Pública em suas mais
diversas relações jurídicas; do agente público no exercício de suas tarefas e
na elaboração de atos, planos, acordos e contratos; bem como dos cidadãos
e agentes econômicos em suas relações com o Estado. A nenhum desses su-
jeitos se autoriza negar ou ignorar os princípios maiores da Administração
Pública. Na medida do possível perante a situação fática, cabe-lhes concretizar
os princípios nas máximas quantidade e intensidade.
ii. “Função interpretativa”: os princípios guiam em termos valorativos o exame
e o manuseio do ordenamento jurídico, atingindo as mais diversas fontes de
normas administrativas. A convergência interpretativa ditada pelos princípios
constitucionais transforma o emaranhado caótico, impreciso e imperfeito
de fontes e de normas que marca o direito administrativo positivo em um
ramo relativamente coerente, racional e funcional. Na falta de codif‌icações
das normas de direito administrativo positivo, o papel dos princípios como
instrumentos de racionalização cresce de forma signif‌icativa.
iii.“Função integrativa”: dos princípios deriva um conjunto de mandamentos
concretos, sobretudo para o agente público, que lhe permite agir mesmo
diante de lacunas do direito positivo. Ao se colocarem ao lado da analogia
e da interpretação extensiva como métodos de integração de lacunas, eles
evitam a paralisia do Estado frente a eventuais def‌iciências ou lentidões do
processo legislativo ou normativo. Com isso, os princípios contribuem para
manter as funções administrativas em constante movimento em benefício
do atendimento das necessidades sociais concretas e da viabilização de di-
reitos fundamentais, salvo no tocante a ações administrativas limitativas,
que dependem da observância da reserva legal por força de mandamento
constitucional (art. 5º, II CF).
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3 • PRINCÍPIoS
iv.“Função de controle”: os princípios servem como parâmetro comportamental
e como mandamento geral, cuja violação gera responsabilização sob certas
circunstâncias. No direito administrativo brasileiro, a violação dolosa de
princípios pode conf‌igurar ato de improbidade (art. 11 da Lei n. 8.429/1992).
Além disso, a violação de certos princípios dá margem a uso de instrumentos
de controle, como a ação popular e a ação civil pública. A essa função de
controle são direcionadas muitas críticas na atualidade, mormente porque os
órgãos de controle brasileiros por vezes empregam os princípios sem a devida
concretização e motivação para sustentar acusações contra agentes públicos
e privados. É preciso ter em mente, porém, que o mau uso dos princípios
como parâmetro de controle não consiste em uma def‌iciência dos princípios
em si, mas sim de agentes públicos despreparados ou mal-intencionados que
os utilizam indevidamente. A solução para abusos no controle não se dará
pela extinção de princípios, senão pela capacitação dos agentes públicos e
pela punição por acusações abusivas ou temerárias.
A utilidade dessas quatro funções depende de um pressuposto: o conheci-
mento do conteúdo básico de cada princípio. Na medida em que eles se inserem
de maneira sucinta e vaga no plano constitucional, a construção de seu conteúdo
normativo ocorre gradualmente como resultado do trabalho conjunto da doutrina,1
da jurisprudência e da própria legislação infraconstitucional que os desdobra. Isso
dá aos princípios um conteúdo cambiante em termos históricos, mas que não obsta
sua delimitação teórica – sem a qual, reitere-se, suas funções tornam-se inviáveis.
3.3 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
3.3.1 Denição, níveis e padrões
Legalidade signif‌ica respeito ao direito! Para entender as implicações dessa af‌ir-
mação é preciso examinar as características de cada sociedade política. No Estado de
Direito ocidental, em que todo poder estatal é limitado, a legalidade se amplia, pois
submete ao direito tanto os cidadãos, as organizações religiosas e os demais agentes
sociais e econômicos, quanto as entidades e os órgãos públicos, os governantes,
administradores públicos e quaisquer pessoas que atuem em nome do Estado. Não
existem sujeitos acima do direito, nem mesmo o Estado.
O modelo democrático, a seu turno, transforma a legalidade em instrumento
comunicativo. O direito positivo, construído pelos representantes do povo, consti-
tui o repositório das vontades (mais ou menos distorcidas) da coletividade. Agir de
1. Uma sistematização de posicionamentos sobre os princípios constitucionais da Administração Pública
pode ser obtida em Thiago (org.). Princípios de direito administrativo, 2ª ed. Belo Horizonte: Fórum,
2021.

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