Reflexões acerca da validade e efetividade das diretivas antecipadas de vontade no direito brasileiro

AutorFilipe José Medon Affonso
Ocupação do AutorDoutorando e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas241-261
REFLEXÕES ACERCA DA VALIDADE
E EFETIVIDADE DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS
DE VONTADE NO DIREITO BRASILEIRO
Filipe José Medon Affonso
Doutorando e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Professor Substituto de Direito Civil na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) e de cursos de Pós-Graduação do Instituto New Law, CEPED-UERJ, EMERJ e do
Curso Trevo. Membro da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ
e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado e
pesquisador. Instagram: @lipe.medon
“Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar”.
(Não Tenho Medo da Morte – Gilberto Gil)
Sumário: 1. Introdução. 2. Questões relativas à regulamentação e aos requisitos de validade. 2.1
Regulamentação no Brasil. 2.2 A obrigatoriedade de instrumento público. 2.3 Necessidade de
aceitação por parte do procurador para cuidados de saúde. 2.4 Possibilidade de eleição de uma
junta de procuradores para cuidados de saúde. 2.5 Necessidade da participação de um médico que
oriente o declarante quanto à feitura do documento. 2.6 Conito entre os desejos da família e do
declarante. 2.7 Prazo de validade e revogabilidade. 3. Obstáculos à efetividade. 3.1 A falta de um
registro nacional de diretivas antecipadas no Brasil. 3.2 Anulação pela falta de consentimento livre e
informado. 3.3 Pode haver procuração para cuidados de saúde sem testamento vital? 4. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
O fenômeno da morte é objeto do Direito Civil desde a sua origem, quando, ainda
eminentemente patrimonialista, precisava dar um destino ao acervo patrimonial do de cujus,
respondendo a duas questões principais: quem herda e em qual proporção? Os tempos
são outros, no entanto. A mudança de valores na sociedade ref‌letiu no Direito. Operacio-
nalizando tal transformação no Brasil, a Constituição de 1988 levou à consecução uma
verdadeira releitura do Direito Civil, que, ancorado na tábua axiológica da Carta, passou a
ser guiado pelo primado das situações existenciais sobre as situações patrimoniais.1
1. TEPEDINO, Gustavo. Marchas e contramarchas da constitucionalização do Direito Civil: a interpretação do direito
privado à luz da Constituição da República. [Syn]Thesis, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, 2012, p. 16.
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FILIPE JOSÉ MEDON AFFONSO
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Esse giro conceitual, marcado pela ressignif‌icação da importância dos valores exis-
tenciais, também impactou o tema da morte. Hoje, tão relevante quanto discutir o que
fazer com o patrimônio de quem morre, é assegurar que se morra de uma forma digna.
Fala-se, até mesmo, num direito à morte digna,2 isto é, que os derradeiros momentos de
vida de uma pessoa devem ser como todos os que o antecederam: igualmente dignos.3
É precisamente nesse contexto que se inserem as denominadas Diretivas Antecipadas
de Vontade (DAV’s),4 que surgiram da prática costumeira e, a cada dia mais, vêm sendo
incorporadas ao debate legislativo, gerando discussões sobre a produção normativa a
respeito da matéria.5
De forma resumida, pode-se dizer que uma diretiva pode conter duas partes distintas:
uma procuração para cuidados/f‌ins de saúde (mandato duradouro)6 e um testamento
vital.7 Este último seria “a declaração antecipada e lúcida de vontade de uma pessoa,
2. “Buscar a morte digna (seja como um direito, seja como expressão da autonomia sobre o próprio corpo) é buscar
também práticas médicas humanizadas, preocupadas não em curar, mas sim, em dar o maior conforto possível
a quem está em seus momentos f‌inais de vida. Nessa nova perspectiva a possibilidade de morrer dignamente
está intimamente associada ao desenvolvimento do que se convencionou chamar cuidados paliativos. Criados
na Inglaterra no f‌inal da década de 60 como uma alternativa à crescente mecanização da Medicina e do controle
da vida, os cuidados paliativos desenvolvem-se como um movimento na luta pela dignif‌icação do processo de
morrer em face da constante tecnização e hospitalização das práticas médicas destinadas ao paciente terminal”.
SCHAEFER, Fernanda; MEIRELLES, Jussara Maria Leal de. Ef‌icácia jurídica das diretivas antecipadas de saúde
à luz do ordenamento brasileiro, p. 10. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 7, n. 3, 2018. Disponível em: [http://
civilistica.com/ef‌icacia-juridica-das-diretivas-antecipadas/]. Acesso em: 15.09.2019.
3. BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia de Campos Velho. A morte como ela é: dignidade e autonomia indivi-
dual no f‌inal da vida. Os Constitucionalistas. Disponível em: [http://osconstitucionalistas.com.br/Artigos/A_Mor-
te_Como_Ela_E-Barroso_Martel.pdf]. Acesso em: 03.02.2019.
4. Necessário fazer desde já uma distinção terminológica, essencial para o prosseguimento da análise. Nesse senti-
do, Amanda Cordeiro de Souza def‌ine que: “As diretivas antecipadas de vontade constituem gênero que abrange
as espécies de testamento vital e mandato duradouro. A primeira é mais conhecida e serve a determinar a quais
tratamentos uma pessoa deseja ser submetida, a f‌im de estender artif‌icialmente sua vida, quando não mais gozar
de capacidade e estiver em situação de terminalidade. A segunda, foco deste trabalho, consiste na indicação de
terceira pessoa para tomar este tipo de decisão em substituição àquele que perdeu, ainda que temporariamente,
o discernimento para tanto (...)”. SOUZA, Amanda Cordeiro de. Diretivas antecipadas de vontade: dignidade e
autonomia. In: GARBI, Carlos Alberto; SILVA, Regina Beatriz Tavares da; CAMARGO NETO, Theodureto de Al-
meida (Coord.). Revista de Direito de Família e das Sucessões (RDFAS), São Paulo: Associação de Direito de Família
e das Sucessões, jul/set. 2017, v. 13, p. 23.
5. “Do ponto de vista legislativo há, no momento, dois projetos de lei tramitando no Senado Federal sobre as Dire-
tivas Antecipadas de Vontade (PLS 149/201817 e PLS 267/201818)”. DADALTO, Luciana. A judicialização do
testamento vital: análise dos autos n. 1084405-21.2015.8.26.0100/TJSP. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 7, n. 2,
2018, p. 05. Disponível em: [http://civilistica.com/a-judicializacao-do-testamento-vital/]. Acesso em: 15.09.2019.
6. “(...) entendem-se como mais adequadas as denominações de ‘procuração para cuidados de saúde’ para o docu-
mento por meio do qual uma terceira pessoa é nomeada; ‘procurador para cuidados de saúde’ a pessoa nomeada e
‘mandato duradouro para cuidados de saúde’ para o negócio jurídico instrumentalizado por meio da procuração
que viabiliza os poderes de representação”. PONA, Éverton Willian. Testamento vital e autonomia privada. Curitiba:
Juruá, 2015. p. 51.
7. “(...) o termo testamento vital (living will) deverá cair em desuso. Adaptando os termos citados pelo autor Vailhen,
têm-se como gênero as diretivas antecipadas de vontade, e a suas espécies: a) instrução diretiva que para o autor
seria o mesmo que ‘testamento vital’ (como já visto termo inadequado), mas que permite à pessoa manifestar seu
desejo de não se submeter a tratamentos médicos em caso de doença terminal e ser tratado com medicamentos para
aliviar a dor; b) o mandato duradouro (em inglês, durable power of attorney, health care proxies ou simplesmente, proxy
directives) que visa a nomeação de procurador de saúde para representá-lo em caso de não poder se manifestar; e
c) diretiva combinada ou mista, diretriz que combina os modelos precedentes”. FIGUEIREDO, Marcia Boen Garcia
Liñan. No desvão da bioética: diretivas antecipadas de vontade (DAVs) ou morrer com dignidade – o direito a não
sofrer. Revista IBDFAM Famílias e Sucessões, Belo Horizonte, n. 29, p. 58-79., set./out. 2018, p. 62.
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