Entre a vida e a morte, a dignidade: uma proposta para a juridicização da moralidade da eutanásia

AutorJonathan de Oliveira Almeida
Ocupação do AutorMestrando em Direito Civil no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGD-UERJ)
Páginas263-279
ENTRE A VIDA E A MORTE, A DIGNIDADE:
UMA PROPOSTA PARA A JURIDICIZAÇÃO DA
MORALIDADE DA EUTANÁSIA
Jonathan de Oliveira Almeida
Mestrando em Direito Civil no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGD-UERJ). Graduado em Direito pela
Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND-UFRJ).
Advogado. E-mail: jthalmeida@gmail.com.
“O pior não é morrer, mas ter de desejar a morte e não conseguir obtê-la.
(Sófocles)
Sumário: 1. Introdução. 2. Eutanásia: conceito, classicação, panorama mundial e dicotomias
existentes. 3. Problematizações acerca da abreviação do processo de morte no Brasil. 3.1. A
dignidade da pessoa humana, a inviolabilidade do direito à vida e o m da existência da pessoa
natural. 3.2. Eutanásia: crime ou direito à morte digna? 4. Uma proposta para a juridicização da
moralidade da eutanásia: o paradigma da moralidade constitucional. 5. Considerações nais.
1. INTRODUÇÃO
O debate sobre vida e morte permeia o imaginário coletivo desde a Antiguidade,
gerando permanentes indagações sobre o começo da vida ou de onde viemos e até mesmo
sobre possibilidade de vida após a morte. Entretanto, ao entorno do tema, também foi
edif‌icada uma muralha de tabus, cuja matéria-prima consubstancia-se na moralidade e
na ética que cada pessoa desenvolveu ao longo de sua existência.
Evidentemente, as discussões sobre a eutanásia também absorvem essa carga mo-
ral e ética no que tange à sua prática. Mesmo no Brasil, reconhecidamente um Estado
Democrático de Direito, cujo fundamento precípuo é a tutela e promoção da dignidade
da pessoa humana1 em correlação à salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais,
as concepções sobre o tema desaf‌iam outros direitos e garantias fundamentais, como a
inviolabilidade ao direito a vida e porque não dizer a própria liberdade religiosa.
Importante salientar, desde logo, que se trata aqui da compreensão da morte como
processo e não fato único e isolado que encerra a existência. Assim considerando, a
eutanásia, em sua concepção pura, refere-se à abreviação do processo de morrer, objeti-
vando cessar a dor e o sofrimento do paciente com enfermidade sabidamente irreversível
e incurável, em atendimento à autonomia privada existencial e da qualidade de vida do
1. TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In: TEPEDINO,
Gustavo. Temas de Direito Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 54.
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JONATHAN DE OLIVEIRA ALMEIDA
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enfermo, mesmo que próximo do f‌im. Af‌inal, a vida não pode se transformar em dever
de sofrimento.
Imprescindível, então, buscar uma abordagem técnica e objetiva, em perspectiva
civil-constitucional, para compreender a eutanásia como um exercício legítimo de auto-
nomia no processo de terminalidade de vida e garantir a tutela e a promoção da dignidade
humana no f‌indar da existência da pessoa natural.
Para tanto, será necessário conceber a vida a partir da axiologia constitucional, ao
sabor de uma concepção laica da moralidade, para alcançar o reconhecimento de um
direito à morte digna, em atendimento último ato de autonomia privada existencial do
paciente terminal. Não se trata, portanto, da existência de um infundado e genérico
direito de morrer, mas sim, através da abreviação da vida, de propiciar o f‌im da dor e do
sofrimento diante de uma patologia grave e irreversível, tendo em vista a irrecuperabili-
dade da qualidade de vida do doente, considerando a sua competência para manifestar
vontade nesse sentido.
Aos opositores da prática da eutanásia impera uma noção totalmente embebida de
fundamentos moralistas, como a sacralidade da vida, defendida, sobretudo, por religiosos,
bem como aqueles que dizem respeito ao enfraquecimento das relações interpessoais
mantidas pelo paciente, seja com os médicos ou com a própria família. Há, ainda, aqueles
que defendem ser dever do Estado preservar a vida humana a todo custo, pois seria esta
o bem jurídico supremo, cabendo ao poder público fomentar o bem estar dos cidadãos
e evitar que sejam mortos ou colocados em situação de risco. Assim, há crença de que
determinados direitos do indivíduo estão subordinados ao interesse do Estado, o que
o obrigaria a adotar medidas para prolongar a vida, mesmo contra a vontade da pessoa.
Dessa forma, o debate acerca da eutanásia deve se construir à luz do valor máximo
tutelado pelo direito brasileiro, qual seja, a dignidade da pessoa humana, pois só assim
será possível permitir efetivamente os inf‌luxos da moralidade constitucional, ambos em
face da morte, pois, entre a vida e a morte, há dignidade.
2. EUTANÁSIA: CONCEITO, CLASSIFICAÇÃO, PANORAMA MUNDIAL E
DICOTOMIAS EXISTENTES
Originalmente, o termo eutanásia foi criado no século XVII pelo f‌ilósofo inglês
Francis Bacon. Contudo, o conceito e o conteúdo semântico do vocábulo eutanásia ti-
veram um processo evolutivo complexo e repleto de intempéries, sobretudo no decorrer
do século XX, período em que ocorreram profundas transformações políticas e sociais
mundo a fora. Hoje, compreende-se a expressão eutanásia como derivada do grego eu
(boa) e thanatos (morte), traduzida como “boa morte”, “morte apropriada” ou “morte
benéf‌ica”.
No entanto, é bem verdade que, em decorrência da subversão do signif‌icado da
palavra no período nazista, utilizada pelo Terceiro Reich para justif‌icar práticas de elimi-
nação de “vidas que não valiam a pena ser vividas” (lebensunwerte Leben) – o que levou
à morte de centenas de milhares de pessoas entre negros, ciganos e judeus –, o vocábulo
eutanásia absorveu uma carga totalmente negativa, sendo, por vezes, vinculada à ideia
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