Sistemas de justiça estatal

AutorPriscila Alves Patah
Páginas59-90
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SISTEMAS DE JUSTIÇA ESTATAL
O abandono do estado de natureza ensejou a troca da justiça privada, em
que predominava o uso da força, pela justiça pública. Essa delegação de poderes
dos indivíduos, pelo contrato social, como enunciado por Hobbes, terminou
por criar uma organização dos serviços públicos de justiça.1 Como acesso aos
sistemas de justiça estatal compreendemos o acesso aos órgãos do Poder Judici-
ário e do Poder Executivo destinados à resolução de conitos e outras demandas
relacionadas ao direito do cidadão.
O Poder Judiciário é composto por: Supremo Tribunal Federal (STF), Con-
selho Nacional de Justiça (CNJ), Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunais
Regionais Federais e Juízes Federais, Tribunais e Juízes do Trabalho, Tribunais
e Juízes Eleitorais, Tribunais e Juízes Militares e Tribunais e Juízes dos Estados e
do Distrito Federal e Territórios (art. 92 da CF/88). Todos eles, em suas especia-
lidades, atuam como formas de acesso à justiça.
O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República com o auxílio
dos Ministros de Estado (art. 76 da CF/88). Dentre os ministérios, o da Justiça se
destaca por desempenhar o papel de acesso à justiça tal qual proposto. Conforme
veremos, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) tem sido responsável
por essencial atuação na busca de soluções de conitos. Além disso, o papel re-
levante das agências reguladoras ganha destaque.
O Poder Legislativo também tem seu próprio mecanismo de justiça, porém
deixaremos de o analisar, tendo em vista que acreditamos que não há livre acesso
a qualquer pessoa a esse sistema, ou seja, trata-se de uma função atípica (arts. 71,
II, e 86, caput, da CF/88).
Seja o Poder Judiciário, seja o Poder Executivo, cada um sustenta seu próprio
sistema de justiça a partir de princípios, normas, orientações, recomendações e
provimentos próprios. E se recriam a partir de estímulos e interações, conforme
expusemos no capítulo anterior. Seguimos à análise deles.
1. COSTA E SILVA, Paula. A nova face da justiça. Os meios extrajudiciais de resolução de controvérsias.
Lisboa: Coimbra Editora, 2009, p. 20.
SISTEMA EXTRAJUDICIAL DE JUSTIÇA • Priscila alves Patah
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3.1 SISTEMA DE JUSTIÇA DO PODER JUDICIÁRIO
O Poder Judiciário é caracterizado por haver um terceiro imparcial e sem
interesse no litígio, cabendo a ele aplicar a norma ao caso concreto, visando à
coisa julgada.2
Ao analisar o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, Kazuo Watanabe en-
sina que, havendo lesão ou ameaça a direito, assegura-se ao cidadão que o Poder
Judiciário é quem deverá decidi-la.3 Pode-se dizer, segundo o autor, que se trata
de um princípio que possibilita o acesso de todo cidadão à busca de justiça ou,
pelo menos, de uma manifestação jurisdicional do Poder Judiciário. Não signica
um mero acesso formal, mas a obtenção de tutela jurisdicional efetiva, tempestiva
e adequada. Cabe ressaltar que a garantia constitucional deve ser interpretada
como o acesso à ordem jurídica justa.4
O princípio do amplo acesso ao Poder Judiciário remonta à Constituição de
1946. Segundo André Ramos Tavares, o próprio enunciado da legalidade requer
que haja a possibilidade ampla e irrestrita de apreciação de lesão ou ameaça a
direito pelo órgão competente.5 Para o autor, consequência direta do princípio
é a não aceitação da chamada instância administrativa forçada, ou jurisdição
condicionada, por meio da qual há necessidade de recorrer primeiramente às
vias administrativas, franqueadas por força da Emenda Constitucional 7/77 à
Constituição de 1967/69.6 Com a redação da Emenda Constitucional 7/77, a
Constituição de 1969 (Emenda Constitucional 01) passou a prever, no seu art.
111,7 que a lei poderia criar contencioso administrativo e lhe atribuir competên-
cia para o julgamento das causas de litígios decorrentes das relações de trabalho
dos servidores com a União, inclusive autarquias e empresas públicas federais,
qualquer que fosse o seu regime jurídico. O único caso admitido no direito pátrio
atual é o referente à Justiça Desportiva, em que a Constituição impõe o prévio
esgotamento das instâncias administrativas próprias (art. 217, § 1º).8
2. ALVIM NETTO, José Manoel Arruda. Da jurisdição – Estado-de-direito e função jurisdicional.
Doutrinas essenciais de Processo Civil, v. 2, p. 331, Out / 2011.
3. WATANABE, op. cit., p. 7.
4. THAMAY, Rennan Faria Krüger. Manual de direito processual civil. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
p. 48.
5. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.
6. Ibidem, p. 585.
7. Art. 111. A lei poderá criar contencioso administrativo e atribuir-lhe competência para o julgamento
das causas mencionadas no artigo anterior.
Art. 110. Os litígios decorrentes das relações de trabalho dos servidores com a União, inclusive as
autarquias e as empresas públicas federais, qualquer que seja o seu regime jurídico, processar-se-ão
e julgar-se-ão perante os juízes federais, devendo ser interposto recurso, se couber, para o Tribunal
Federal de Recursos.
8. TAVARES, op. cit., Capítulo XXIV – Direito de Acesso ao Judiciário.
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3 • SISTEMAS DE JuSTIÇA ESTATAL
Segundo Galeno Lacerda, no processo se chocam dois ideais, o de
justiça e o de paz social.9 Para o primeiro, o fator tempo se mostra relativo,
importando, antes de tudo, que se alcance, embora tarde, a sentença veraz e
justa para solução perfeita da lide. Para o segundo, requer-se a eliminação
rápida e eficaz dos conflitos a fim de restaurar a harmonia dentro do grupo
no menor tempo possível.
Com a transição para o direito natural racional criado pela humanidade,
mas sob o império da lei da razão (o conteúdo normativo da racionalidade prá-
tica de Kant), a lei natural cindida foi abandonada. O procedimento não é mais
considerado um instrumento puro e não tem o direito de interferir na essência
do direito, pois o próprio procedimento, como um direito, deve obedecer à lei da
razão (lei natural racional), assim como à lei material.10 Portanto, atualmente, deve
prevalecer o entendimento de que o procedimento serve para resolver situações
conituosas ou nas quais seja exigida sua situação por expressa disposição legal.
Para aprofundar o estudo sobre a atuação judicial como sistema, a seguir,
exploraremos as ondas de acesso à justiça, objeto de interessante estudo de
Cappelletti e Garth na obra Acesso à Justiça.
3.1.1 Uma reexão sobre o impacto das ondas de acesso à justiça no
Brasil
Há mais de 30 anos, as Constituições incluíram justiças especiais – a Militar,
a Trabalhista e a Eleitoral – entre os órgãos do Poder Judiciário. O Foro Especial
para os Delitos Militares foi mencionado na Constituição de 1891, que se dirigia
aos militares de terra e mar (art. 77 e inciso). Com a promulgação da Constituição
de 1934, duas justiças especiais – Militar e Eleitoral – foram explicitamente men-
cionadas como órgãos judiciais. A Justiça do Trabalho foi originalmente criada
fora do âmbito do Poder Judiciário, ao abrigo da Constituição de 1934 (art. 122),
e foi apenas na Constituição de 1946 que começou a aparecer em conjunto com
outras justiças especiais.11 A diversidade de especialidades no Poder Judiciário
é uma das formas de se ampliar o acesso à justiça. Contudo, outras propostas
de facilitação do acesso, denominadas de ondas, foram elaboradas ao longo do
tempo, conforme passaremos a analisar.
9. LACERDA, Galeno. O código como sistema legal de adequação do processo. Revista do Instituto dos
Advogados do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 257, 1976.
10. PASSOS, op. cit., p. 6.
11. RODRIGUES, Walter Piva. A visão unitária do processo. Revista de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Metodista de Piracicaba, v. 7, n. 15, p. 67, 1994.

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