Uma ideia de justiça - análise das teorias da justiça

AutorPriscila Alves Patah
Páginas1-41
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UMA IDEIA DE JUSTIÇA ANÁLISE DAS
TEORIAS DA JUSTIÇA
Conceituar justiça é tarefa impossível, porque exige adentrar em temas
losócos e morais, não sendo passível de atribuição de um signicado. Alguns
autores procuraram estabelecer seus entendimentos sobre o tema, não havendo,
porém, consenso. Há algumas teorias que tentam explicar o que seria justiça e
como alcançar um ideal de justiça, no entanto percebe-se que o conceito do que
pode ser considerado justiça é variável no tempo e no espaço e, muitas vezes, de-
manda a percepção do direito como uma ordem axiológica de princípios segundo
cada cultura.1 Assim, a justiça revela-se sob diferentes pontos de vista, e o que era
justo para Aristóteles (escravidão, por exemplo) não era para Kant (liberdade).2
O ponto de partida para essa tarefa é o conhecimento de diferentes teo-
rias. Até o nal do século XVI, a semelhança desempenhou papel construtivo
no conhecimento da cultura ocidental, conduzindo a interpretação de textos,
organizando jogos simbólicos e permitindo a compreensão de conhecimentos
tangíveis e intangíveis.3 Conhecer era discernir.4
Inúmeros são os autores que tratam do tema justiça. Seria tarefa impossível
analisar todos os diversos autores que abordaram a questão. Portanto, optamos
por alguns que entendemos relevantes por adotarem distintas temáticas. Nosso
objetivo não é chegar a um senso de justiça como um conceito de justiça que
atenda a todos os ns e a todos os casos especícos, mas, sim, a partir do estudo
de cada um dos autores trabalhados, tentar encontrar qual seria o melhor ou
criar um novo conceito de justiça que possa ser empregado no entendimento
do acesso à justiça.
Essa abordagem, sem dúvida, requer cuidado para não confundir senso
de justiça com conceito de justiça, pois o senso de justiça pode ser algo muito
1. CALISSI, Jamile Gonçalves. O conteúdo jurídico-substancial da identidade étnico cultural no sistema
constitucional brasileiro. São Paulo: Max Limonad, 2017. p. 35.
2. Ibidem, p. 36.
3. FOUCALT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das ciências humanas. Trad.: Salma
Tannus Muchail. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 33.
4. Ibidem, p. 72.
SISTEMA EXTRAJUDICIAL DE JUSTIÇA • Priscila alves Patah
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subjetivo, logo, o que é senso de justiça para um pode não ser para outro. E é
claro que o conceito de justiça, como veremos, também pode variar conforme
os elementos que se incluem, portanto não há pretensão de encerrar o tema ou
a discussão sobre a teoria da justiça. É evidente que, além dos autores que já sur-
giram, outros ainda se proporão a analisar o conceito da justiça e poder-se-ão
encontrar diferentes conceitos dos aqui abordados, sendo oportuno destacar que
quanto mais elementos a denição trouxer, mais satisfatória será a utilização do
conceito de justiça para diferentes abordagens temáticas.
Um símbolo não espera silenciosamente pela chegada de alguém que o
reconheça: é apenas constituído por um ato de conhecimento.5 Eis o que ocorre
com a justiça.
No Código de Hamurabi, que armava que a ordem social babilônica ti-
nha origem em princípios universais e eternos de justiça ditados pelos deuses,6
segundo Harari, estabelecia-se uma ordem hierárquica composta por homens
superiores, homens comuns e escravos, sendo que os superiores cavam com
todas as coisas boas da vida; os homens comuns cavam com o que sobrava; e
os escravos não cavam com nada.7 Entretanto, considerava-se como propósito
fundamental da justiça impedir que os fortes oprimissem os fracos.8
A justiça social é considerada a proteção dos fracos para evitar que sejam
injustamente privados de seus direitos devidos, ou seja, seu status social legal, seus
direitos de propriedade e condições econômicas devido ao status que ocupam e
que estão na estrutura hierárquica intermediária existente.9
O ramo humanista da losoa escolástica na Idade Média tentou tornar a
antiga moralidade natural popular novamente, perdendo toda a certeza, em face
do Deus onipotente, o governante absoluto da natureza.10
A cidade consolidou-se pela religião e se construiu em torno da Igreja,
portanto seu poder, sua onipotência e o domínio absoluto de seus membros.
Em uma sociedade baseada nesses princípios, a liberdade individual não pôde
existir. Os cidadãos obedeciam sem reservas. O país que produzia a religião e a
religião se apoiavam e formavam um só corpo. A combinação dessas duas forças
era a combinação perfeita, formando um poder quase sobre-humano, e a alma
5. Ibidem, p. 76.
6. HARARI, Yuval Noah. Sapiens. Uma breve história da humanidade. São Paulo: L&PM, 2015. p. 112.
7. Ibidem, p. 141.
8. JOHNSTON, David. Breve história da justiça. Trad.: Fernando Santos. São Paulo: Editora WMF Martins
Fontes, 2018. p. 18.
9. Ibidem, p. 19.
10. VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Trad. Cláudia Berliner. 2. ed. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2009. p. 205.
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1 • uMA IDEIA DE JuSTIÇA – ANáLISE DAS TEoRIAS DA JuSTIÇA
e o corpo eram governados por esse poder.11 As pessoas acreditavam que a lei, a
justiça e a moralidade deviam ser todas sucumbidas aos interesses da pátria mãe.
Portanto, os humanos não gozavam de liberdade nas cidades antigas.12
A ideia de que a sociedade deve governar o país por leis não é nova, pois os
romanos já a admitiam, mas, no século XII, retornar a essa ideia foi uma revolu-
ção. Filósofos e juristas exigiam que as relações sociais fossem baseadas na lei e
acabassem com a anarquia e o sistema arbitrário que governou durante séculos.
Eles queriam um novo direito baseado na justiça, que a razão pudesse conhecer, e
rejeitavam o apelo das coisas sobrenaturais. Os movimentos que aconteceram nos
séculos XII e XIII foram tão revolucionários quanto os movimentos dos séculos
XVIII ou XX, que tentaram substituir o domínio do poder pessoal pela demo-
cracia, a anarquia do regime capitalista e a organização da sociedade marxista.13
Na escuridão do apogeu da Idade Média, a sociedade voltou a um estado
mais primitivo. Disputas entre indivíduos e grupos sociais resultaram na sobre-
vivência do mais apto ou na autoridade arbitrária dos chefes. O ideal de uma
sociedade que garante os direitos de todos foi abandonado, havendo um paradoxo,
pois uma sociedade cristã não deveria procurar se construir sobre os ideais da
fraternidade e da caridade?14
Em sua primeira carta aos coríntios, São Paulo exaltou a caridade sobre a
justiça e sugeriu que os crentes se submetessem à arbitragem de um padre ou
irmão em vez de ir ao tribunal.15 Nesse sentido bíblico, a justiça se relaciona à
necessidade: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão
fartos”.16
No entanto, a partir do século XVII, os lósofos rebelaram-se contra essa
principal orientação teológica da lei natural impressa pelos padres da igreja.
Com a ajuda de Hugo Grócio, o direito natural se baseou na natureza “racional”
do homem.17
11. FUSTEL DE COULANGES, Numa-Denys. A cidade antiga. Trad.: Frederico Ozanam Pessoa de Barros.
São Paulo: Editora das Américas, 2006. p. 158.
12. Ibidem, p. 160.
13. DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Trad.: Hermínio A. Carvalho. 5. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2014. p. 40.
14. Ibidem, p. 39.
15. Ibidem, p. 39.
16. BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Trad.: Centro Bíblico Católico. 61. ed. São Paulo: Ave Maria, 1971.
Matheus 5, 6.
17. CHAGAS, Wilson. O chamado direito natural: em que consiste. Revista da Faculdade de Direito,
São Paulo, v. 61, n. 1, p. 86-100, 1966. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rfdusp/article/
view/66499. Acesso em: 22 nov. 2021. p. 87.

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