Situações jurídicas dúplices: continuando o debate sobre a nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade

AutorAna Carolina Brochado Teixeira e Carlos Nelson Konder
Ocupação do AutorDoutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC-Minas. Especialista em direito civil pela Universidade de Camerino (Itália). Professora de Direito Civil. Coordenadora editorial da Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil. Advogada. / Doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor de Direito Civil da UERJ e da...
Páginas199-224
SITUAÇÕES JURÍDICAS DÚPLICES:
CONTINUANDO O DEBATE
SOBRE A NEBULOSA FRONTEIRA
ENTRE PATRIMONIALIDADE E
EXTRAPATRIMONIALIDADE*
Ana Carolina Brochado Teixeira
Doutora em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Direito Privado pela PUC-Minas. Espe-
cialista em direito civil pela Universidade de Camerino (Itália). Professora de Direito Ci-
vil. Coordenadora editorial da Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Advogada.
Carlos Nelson Konder
Doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor de Direito Civil da UERJ e da
PUC-Rio. Especialista em direito civil pela Universidade de Camerino (Itália)
Sumário. 1. Introdução – 2. O conceito de situação jurídica – 3. A classicação das situações
jurídicas subjetivas em patrimoniais e existenciais – 4. Situações personalíssimas e disponibilidade
de atributos da personalidade: “garoto-propaganda”, cláusula moral, “pessoa pública” e reality
shows – 5. Situações familiares: pacto antenupcial/de convivência, alimentos, autoridade parental
e curatela – 6. Situações biojurídicas: útero de substituição, inseminação heteróloga com doador
anônimo e experimentação com seres humanos – 7. Conclusão – 8. Referências bibliográcas.
1. INTRODUÇÃO
Há algum tempo, partilha-se, no âmbito das ciências sociais, um receio comum
quanto à crescente inf‌luência dos princípios da lógica comercial sobre as relações
humanas. Neste sentido, por exemplo, Habermas refere-se à “colonização do
mundo da vida” pelos imperativos do sistema econômico, e destaca o importante
papel do direito em impedir que o dinheiro e o poder invadam a esfera das relações
intersubjetivas.1 Em outra linha, Michael Walzer, ao defender uma justiça de viés
plural – que, de acordo com o contexto histórico e cultural, distribua bens sociais
diversos (como saúde e dinheiro) com base em lógicas e procedimentos diferentes
– af‌irma que cabe ao direito bloquear certos intercâmbios (blocked exchanges), de
modo a impedir que a lógica de uma esfera – como a do comércio – passe a guiar
* A primeira versão desse artigo foi publicada em KONDER, Carlos Nelson de Paula; TEIXEIRA, Ana Caro-
lina Brochado. Situações jurídicas dúplices: Controvérsias na nebulosa fronteira entre patrimonialidade e
extrapatrimonialidade. In: FACHIN, Luiz Edson; TEPEDINO, Gustavo (org.). Diálogos sobre direito civil.
Vol. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 3-24.
1. HABERMAS, Jürgen. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy.
Cambridge: MIT Press, 1998, especialmente pp. 53-56.
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ANA CAROLINA BROCHADO TEIXEIRA E CARLOS NELSON KONDER
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as demais.2 Enf‌im, embate-se Noam Chomsky por uma cuidadosa separação entre
“o lucro” e “as pessoas”.3
Na linha metodológica da “constitucionalização do direito civil”, esta proteção
da pessoa humana frente a imperativos mercadológicos é encontrada na positivação
constitucional do princípio da dignidade da pessoa humana, que já sob a clássica
acepção kantiana, a dignidade é um atributo das pessoas, enquanto o preço é um atri-
buto de coisas.4 As repercussões atribuídas à positivação da dignidade humana como
princípio constitucional são diversas, tais como a proteção não apenas negativa mas
promocional do livre desenvolvimento da pessoa, a atribuição de direitos e garantias
fundamentais, a garantia de um patrimônio mínimo existencial e a constituição de
uma cláusula geral de tutela da personalidade.5
De modo geral, como a Constituição Federal elevou a pessoa humana e sua
dignidade a fundamento da República, impôs-se uma releitura de todos os insti-
tutos tradicionais de direito civil, positivados na legislação ordinária, para que se
adequem à diretriz inovadora e humanista eleita pela Constituição. Este esforço
vem sendo identif‌icado como uma “despatrimonialização do direito civil”6 e tem
como consequência necessária que instrumentos jurídicos de cunho patrimonial
deverão ser reformulados – ou ao menos reinterpretados – para que se possam
aplicar às situações existenciais. Trata-se de um tratamento jurídico diferenciado
às situações existenciais em comparação com as situações patrimoniais, como
destaca Perlingieri: “Não é suf‌iciente, portanto, insistir na af‌irmação da impor-
tância dos ‘interesses da personalidade no direito privado’; é preciso predispor-se
a reconstruir o Direito Civil não com uma redução ou um aumento da tutela das
situações patrimoniais, mas com uma tutela qualitativamente diversa”.7 Mais do
que isso, af‌irma-se no âmbito da constitucionalização do direito civil verdadeira
preeminência, a priori, da tutela das situações jurídicas extrapatrimoniais (ou
2. WALZER, Michael. Esferas da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
3. CHOMSKY, Noam. O lucro ou as pessoas? São Paulo: Bertrand Brasil, 2008.
4. É o que ressalta MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003,
p. 81.
5. Sobre o tema, v. BARCELLOS, Ana Paula de. A ef‌icácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da
dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; ALVES, Cleber Francisco. O princípio cons-
titucional da dignidade de pessoa humana: o enfoque da doutrina social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar,
2001; MORAES, Maria Celina Bodin de. O princípio da dignidade da pessoa humana. In MORAES, Maria
Celina Bodin de (org.), Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 1-60;
TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. Temas de
direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 23-58.
6. Na def‌inição de PERLINGIERI, Pietro (Perf‌is do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 33): “Com
o termo, certamente não elegante, ‘despatrimonialização’, individua-se uma tendência normativa-cultu-
ral; se evidencia que no ordenamento se operou uma opção, que, lentamente, se vai concretizando, entre
personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade f‌im a si
mesma, do produtivismo, antes, e do consumismo, depois, como valores)”.
7. PERLINGIERI, Pietro. Perf‌is do direito civil. Trad. Maria Cristina De Cicco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,
2002, p. 34.
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