(23/4/1892) Pontes De Miranda

AutorFelipe Braga Netto
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público Federal (Procurador da República). Pós-doutor em Direito Civil pela Università di Bologna, Italia (Alma Mater Studiorum). Doutor em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Mestre em Direito Civil pela UFPE. Associado fundador e 1º vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Responsabilidade ...
Páginas115-148
PONTES DE MIRANDA
E A RESPONSABILIDADE CIVIL:
ALGUNS ASPECTOS DE SUA CONTRIBUIÇÃO
Felipe Braga Netto
Membro do Ministério Público Federal (Procurador da República). Pós-doutor em
Direito Civil pela Università di Bologna, Italia (Alma Mater Studiorum). Doutor em
Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio. Mestre em Direito Civil pela
UFPE. Associado fundador e 1º vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Res-
ponsabilidade Civil, 2017-2019). Professor de Direito Civil da PUC-Minas (2002-2007).
Professor de Direito Civil da Dom Helder (2003-2021). Professor da Escola Superior
do Ministério Público da União. Procurador Regional Eleitoral de Minas Gerais (2010-
2012). Publicou artigos em 32 obras coletivas, tendo coordenado quatro delas. Além
das obras coletivas, publicou 14 livros.
“Gostei de tudo no teu livro: até do número do exemplar: 7. O ‘Menino impossível’ deleitou-
-me. Mimado por uma santa tia também fui eu, Jorge de Lima – um menino impossível que
estudou. Compreendi o teu símbolo; podia compreendê-lo: cada dia que passa, mais mergulho
no europeu e no americano do Norte, porém mais me vibra na alma – o homem brasileiro, o
nordestino, o alagoano que sou e morrerei, ainda que morra em Londres cinzenta, com cinco
livros ao alcance da mão, muita saudade, muita lembrança, uma caixinha de cigarros do Brasil,
e alguns retratos de amigos marcando os livros em leitura”.
Carta de Pontes de Miranda a Jorge de Lima
Sumário: 1. Uma palavra de contextualização – 2. Pequena biograa – 3. Produção geral do autor
– 4. Contribuições à responsabilidade civil; 4.1 Três exemplos dentre muitos; 4.2 Fortalecimento
da dimensão existencial dos direitos; 4.3 Fortalecimento da dimensão preventiva dos direitos; 4.4
O caráter histórico do conceito de dano; 4.5 A pluridimensionalidade do mundo jurídico; 4.6 O
caráter múltiplo da ilicitude civil – 5. Uma breve palavra de conclusão.
1. UMA PALAVRA DE CONTEXTUALIZAÇÃO
“No processo, como em tudo mais, nós somos o resultado dos vinte e cinco séculos ocidentais.
Nem podemos ser outra coisa; nem nos podemos furtar ao curso da História.
Bastaria que conseguíssemos ver, com uma lente, os diferentes conceitos de ação,
para que a nossa heterogeneidade histórica ressaltasse”.
Pontes de Miranda
O direito civil, como obra da cultura humana, realizada difusamente ao correr
de uns tantos séculos, assume feição histórica, sendo resultado não só do que somos
hoje, mas também do que fomos ontem. Imensa parcela daquilo que chamamos di-
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FELIPE BRAGA NETTO
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reito civil vem do passado, resulta de intuições geniais de muitos que vieram antes
de nós. Tivemos no Brasil um jurista singular, um jurista cuja magnitude da obra
talvez ainda não tenha sido adequadamente compreendida. Tenho a honra – nesta
belíssima obra coletiva – de escrever sobre Pontes de Miranda, um jurista que me
fascina desde quando eu era muito jovem. Sergio Bermudes escreveu: “Um dos atri-
butos da genialidade de Pontes de Miranda é sua insuperável capacidade de ler com
olhos críticos, de selecionar e apreender. Exímio conhecedor das fontes próximas e
remotas do direito brasileiro, ele hauriu muito de sua ciência nos autores alemães,
que cita a cada passo, mas sem vergar-se ao peso da sua autoridade. Não se acanha de
fazer-lhes censuras, quando as entende necessárias. Iguala-se a eles, como permitia
a cultura fenomenal, que o torna um dos maiores juristas do mundo, em todos os
tempos, e assim será proclamado, à medida que se faça conhecida a sua obra ciclópi-
ca, que, escrita em português e num país subdesenvolvido, ainda espera adequado
descobrimento”1.
Começamos dizendo que o direito civil – mas não só o direito civil, a experiência
jurídica como um todo – vem do passado, resulta de intuições geniais de muitos que
vieram antes de nós. Pontes, aliás, nesse sentido, compreendia como poucos o f‌io
histórico que tece o direito através dos séculos. Exaltava imensamente os juristas
portugueses dos séculos XVI a XVIII a respeito dos quais escreveu: “A cuja f‌inura
e honestidade científ‌ica tanto devo”. E completou: “Desde cedo, mais de 70 anos
atrás, convivi com eles, e tanto me pareceu essencial estar em dia com os edif‌icadores
da ciência nova, como lembrar-me do que eles sabiam e pertence às nossas raízes.
Algumas vezes adivinharam”2.
No Brasil, os maiores conhecedores da obra de Pontes de Miranda talvez sejam
Marcos Bernardes de Mello e Paulo Lôbo – e ambos, em seus livros, contribuem imen-
samente para divulgar a obra de Pontes (a parte, digamos, mais normativa obra de
Pontes, tradicionalmente conhecida como dogmática jurídica). Há outros, há muitos
outros estudiosos relevantes, em livros e artigos que surgem de modo crescente –
mencionamos apenas os dois por terem trajetória antiga e bela nesse campo. Neste
artigo tentaremos, em corte epistemológico, apenas brevemente destacar – o espaço
é curto – algumas das contribuições de Pontes de Miranda relacionadas à responsa-
bilidade civil e à ilicitude civil. Estamos certos que centenas de artigos poderiam ser
1. BERMUDES, Sergio. RTDC, v. 32, out./dez. 2007, Diálogos com a Doutrina, p. 288.
2. PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil. T. I. Rio de Janeiro: Forense, 1997, pró-
logo. Sobre o tema Juliano Heinen tem observação interessante: “No que se refere às fontes luso-brasileiras,
Pontes de Miranda era profundo conhecedor. O maior destaque neste aspecto, por ser de nodal presença
na obra construída ao longo de décadas, é a inf‌luência marcante de Teixeira de Freitas (1816-1883). Tanto
em termos de método, como em termos de conteúdo, Pontes de Miranda se inspira em muito na produção
intelectual do autor citado, como se fosse verdadeiro ‘continuador’ da Consolidação das Leis Civis, de Freitas.
Entre tantos pontos em comum, destaca-se um: ambos os juristas não encontraram um ambiente profícuo
para debater suas ideias, passando a discutir a dogmática posta” (HEINEN, Juliano. O que aconteceu com
Pontes de Miranda? Implicações da doutrina do jurista e f‌ilósofo brasileiro na dogmática jurídica brasileira
do século XX. Cadernos do Programa de Pós-Gradução em Direito da PPGDir/UFGRS. Edição digital. Porto
Alegre. V. XIV, n. 2, 2019, p. 221).
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escritos sobre o mesmo tema, por pesquisadores certamente mais qualif‌icados. De
todo modo, cada um deles seria distinto, teria um ângulo de abordagem próprio e
singular – como permite a obra imensa e magistral de Pontes.
Pontes não é um autor fácil. Mas é um autor fascinante, genial e único. Tem
uma maneira singular de escrever, diferente do habitual – é preciso, de certo modo,
acostumar-se a ela, e isso só se consegue mergulhando na obra de Pontes, e não em
consultas rápidas. Nosso mestre maior, Professor Marcos Mello – certamente o grande
intérprete de Pontes de Miranda no Brasil, ele mesmo, aliás, um dos mais ref‌inados
juristas do país –, sempre af‌irmou ser necessário “aprender a ler o Pontes” (uma bla-
gue: podemos dizer que Marcos Mello é “homem de polpa em assuntos jurídicos”,
expressão que Pontes usava para elogiar juristas que admirava). Outro aspecto que
afasta os leitores é a extensão da obra. Isso se torna particularmente grave em dias
de conexões tão velozes e fugazes, numa época em que a única permanência é a
mudança e quando todos – ou quase todos – nos queixamos da ausência de tempo.
2. PEQUENA BIOGRAFIA
“Cultura humana é ascensão. Ascender um pouco, cada um, para que outros
ascendam mais. Só essa solidariedade serve à dignidade e à crescente pujança do espírito,
à felicidade humana e à propagação dos meios técnicos”.
Pontes de Miranda
Pontes – Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda – nasceu em Maceió-AL (mais
exatamente no Engenho Mutange, em São Luís do Quitunde, próximo a Maceió)
em 23 de abril de 1892 (o registro de nascimento foi em Maceió). Nasceu prematuro
– em gestação com menos de sete meses – e é espantoso que tenha sobrevivido, con-
siderada a época de seu nascimento. O nome Francisco foi dado em homenagem a
São Francisco de Assis. Seus pais eram Manoel Pontes de Miranda e Rosa Cavalcanti
Pontes de Miranda. Sua Tia Francisca (Tia Chiquinha) cuidou do bebê prematuro – em
época de tão escassos recursos médicos – dizendo: “Francisquinho tem olhos de que
quer e vai viver muitos anos”. Viveu, desde a infância, cercado de livros, em ambiente
bastante intelectual. Desde muito cedo exibiu inteligência singular, tendo muita
facilidade para aprender idiomas (já lia em francês com 7 anos). Estudou f‌ilosof‌ia e
alemão com os padres franciscanos. Aliás, foi seu avô, Joaquim Pontes de Miranda,
que o ensinou a ler, transmitindo-lhe ainda o amor pela matemática. Pontes, desde
criança, quis descobrir um teorema, sempre quis ir além no campo das descobertas
e dos limites científ‌icos.
Esse é um dado relevante em sua personalidade: Pontes de Miranda sempre
gostou imensamente de matemática – talvez por inf‌luência de seu pai e avô paterno,
ambos entusiastas e amantes da matemática. Pontes recebeu, aos 16 anos, uma pas-
sagem de seu pai para estudar matemática e física em Oxford, mas foi desestimulado
a ir por sua Tia Francisca – presença importante na sua vida afetiva, como se nota na
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