Abordagem Holística sobre a Nova Regulamentação da Profissão do Motorista (Lei n. 12.619/2012)

AutorGérson Marques/Ney Maranhao
Páginas122-144

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I - Introdução

A necessidade de regulamentação da profissão do motorista rodoviário transportador de cargas e de pessoas não é assunto novo. A matéria é debatida há décadas, contando com dezenas de projetos de lei tramitando nas duas casas do Congresso Nacional. Contudo, dado o antagonismo de interesses de patrões e empregados, bem como o notório caráter estratégico do assunto, as louváveis iniciativas de sindicalistas e congressistas não se mostraram exitosas.

A discussão recebeu destacado impulso a partir da propositura, em 12.12.2007 na cidade de Rondonópolis/MT, da Ação Civil Pública n. 1372.2007.021.23.00-3, que contou, em 17.12.2007, com o deferimento da liminar então pleiteada por parte do Exmo. Juízo da 1ª Vara do Trabalho de Rondonópolis que, embora tenha vigido por pouco tempo, demonstrou que o debate e solução para a questão da limitação da jornada dos motoristas era inadiável.

Dessa provocação judicial decorreu uma inédita aproximação, em escala nacional, das representações classistas laborais e patronais, ambas imbuídas pelo objetivo comum de construir um consenso em torno de um dos mais agudos problemas do segmento — a limitação da jornada de trabalho e do tempo de direção dos motoristas e a adaptação e criação da infraestrutura ambiental necessária para que os motoristas possam exercer sua atividade de modo seguro, saudável e digno.

O fruto desse processo de negociação, habilmente mediado pelo Ministério Público do Trabalho, foi corporificado no Projeto de Lei n. 99/2007, que recebeu amplo apoio de Senadores e Deputados Federais.

O aludido projeto, após ser levado à sanção presidencial, lá tendo recebido vários vetos jurídicos, deu origem à Lei n. 12.619/2012, que, finalmente veio regular a complexa e multi-facetada profissão do motorista rodoviário transportador de cargas e passageiros e, como era de se esperar, seu conteúdo e alcance já inspira acalorados debates, vez que a par de trazer inestimável contribuição para milhões de motoristas profissionais, especialmente quanto

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ao controle da jornada de trabalho e do tempo de direção, foi redigida com a atecnia própria dos textos resultantes do consenso entre interesses conflitantes.

Essa característica uterina da norma reflete-se na positivação de dispositivos vanguardistas ao lado de outros claramente retrógrados ou, até mesmo, flagrantemente inconstitucionais.

O presente estudo, embora intitulado com o adjetivo “holístico” é ainda perfunctório e não tem a pretensão de fixar balizas hermenêuticas inamovíveis (mesmo porque estas inexistem). Pretende-se apenas dar início ao necessário estudo para que caminhos se abram no sentido de extrair e aplicar o há de bom na nova lei, bem como de encontrar os meios de coibir ou mesmo extirpar o que nela há de ruim.

O projeto de lei que resultou na norma em comento possuía quatro blocos normativos, um de normas trabalhistas, um de normas de trânsito, um de normas de infraestrutura e outro de norma intersindical. Esses quatro blocos estavam dispostos, parte com norma esparsa, parte inserida da Consolidação das Leis do Trabalho — CLT e parte inserida no Código de Trânsito Brasileiro — CTB.

Embora pecando pela falta de técnica, verifica-se que o projeto de lei visou conferir uma solução completa para a questão, contemplando disposições aplicáveis aos motoristas empregados e aos autônomos, bem como preconizando os investimentos em infraestrutura necessários para viabilizar o repouso seguro desses profissionais ao longo das rodovias.

Tal desiderato foi mitigado pelos vetos presidenciais, todavia, conforme demonstrado a seguir, o que remanesceu do projeto, agora como lei, embora com ácidas e necessárias críticas a alguns pontos, possui a capacidade de transformar positivamente a atual realidade de abandono dos motoristas profissionais brasileiros.

Após a vigência da lei, os fatos sociais que se sucederam demonstram que a Lei n. 12.619/12 pode não passar de uma vã promessa de garantia da dignidade ao motorista profissional, pois o governo brasileiro vem se mostrando sensível às pressões exercidas por certos grupos interessados em manter tudo como sempre esteve. Tal fato é comprovado pela infeliz Resolução n. 417 do CONTRAN, que de modo flagrantemente ilegal e abusivo, veio subtrair fortemente o caráter coercitivo da lei.

Não obstante a intercorrência de tais fatos meta-jurídicos, contra os quais o Ministério Público do Trabalho vem se empenhando de modo obstinado, a análise realizada no presente estudo é eminentemente técnica, centrando-se nos aspectos trabalhistas da lei, fazendo referência a dispositivos inseridos no CTB e na Resolução
n. 405/2012 do CONTRAN apenas quando estes repercutem sobre o motorista empregado ou, ainda, quando necessário para demonstrar eventual regramento análogo ao do motorista empregado aplicável ao motorista autônomo.

II - Disposições gerais da lei (arts 1º e 2º, da lei)
II 1) Alcance subjetivo da norma (art. 1º da lei)

O texto da lei tem início com uma imprecisão quanto à definição do seu alcance subjetivo, levando a entender que estariam por ela alcançados apenas os motoristas profissionais empregados. Nesse diapasão, uma análise isolada do art. 1º e seus incisos levaria a concluir que os motoristas profissionais autônomos estariam fora do escopo da lei.

Contudo, não é essa a conclusão revelada pela análise da integralidade do diploma legal, já que o seu art. 5º introduz uma série de dispositivos no Código de Trânsito Brasileiro (art. 67-A e art. 67-C; art. 230, XXIII), aplicáveis tanto aos motoristas empregados, quanto aos autônomos.

No mesmo sentido veio a previsão do art. 9º, esclarecendo serem aplicáveis as Normas Regulamentadoras do MTE às condições sanitárias e de conforto nos locais de espera dos motoristas de transporte de cargas, locais estes frequentados por motoristas empregados e autônomos.

Todavia, impende esclarecer que nem todos os motoristas profissionais autônomos estão vinculados à lei. Tal restrição se deve à

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referência feita no art. 67-A do CTB ao art. 105, II do mesmo diploma, de modo que apenas os condutores autônomos do transporte de passageiros com mais de 10 (dez) lugares e de carga com peso bruto total superior a 4.536 (quatro mil e quinhentos e trinta e seis) quilogramas estão abrangidos pela norma.

Relevante, também, identificar em qual medida os motoristas do transporte coletivo urbano de passageiros são atingidos pela nova lei, sobretudo no que toca à nova disposição do § 5º do art. 71 da CLT, que prescreve a possibilidade de fracionamento do intervalo intrajornada.

O malsinado dispositivo, que será melhor examinado à frente, induz à aparente conclusão de que os motoristas do transporte coletivo de passageiros, urbanos e interurbanos, estariam abrangidos pela norma. Contudo, não parece ser esta a melhor interpretação.

Em que pese a expressa menção às condições especiais do trabalho a que são submetidos estritamente os motoristas, cobradores ... empregados no setor de transporte coletivo de passageiros, não há, em nenhum trecho alusão ao transporte coletivo urbano de passageiros.

O silêncio é eloquente, pois a análise integral do dispositivo demonstra que ele cuida tão somente do transporte coletivo de passageiros interurbano.

A limitação do alcance subjetivo pode ser verificada claramente quanto o dispositivo se refere à concessão de frações de intervalo entre o final da primeira hora e o início da última hora trabalhada, condição que se mostra incompatível com as peculiaridades do transporte coletivo urbano, o qual exige...

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