Relação de Emprego com a Administração Pública: Equívocos da Súmula n. 363 do TST e Competência da Justiça do Trabalho

AutorGérson Marques/Ney Maranhao
Páginas68-78

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I Introdução

1. Já começam a ser potentes, nas primeiras instâncias das diversas Regiões da Justiça do Trabalho brasileira, as vozes que pedem uma modificação radical no teor exegético da Súmula
n. 363 do Tribunal Superior do Trabalho. Esse sentimento comum reverberou nas primícias de maio (2006), por ocasião do XIII Congresso Nacional de Magistrados da Justiça do Trabalho, realizado na cidade de Maceió/AL. Três

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Juízes do Trabalho encaminharam teses nessa precisa direção, todas aprovadas na respectiva Comissão Temática e, ao depois, na Plenária do XIII CONAMAT.

2. Há, realmente, algum non sense na inteligência ali sufragada. Reconhece-se a nulidade, obstativa da formação do vínculo empregatício, mas se concedem, paradoxalmente, direitos típicos daquele vínculo, como o respeito ao salário mínimo/hora e a obrigação de depositar o FGTS. Isso é mais que simplesmente prevenir o enriquecimento sem causa. Afinal, qual o critério científico dessa “seletividade” pretoriana?

3. Parece-nos, em verdade, estar faltando. Daí se pretender, com este trabalho, propugnar uma nova construção dogmática para o problema, conferindo-lhe tratamento mais sistemático e racional, compromissado com os princípios maiores da ordem constitucional em vigor.

II O joio e o trigo. Trabalho ilícito e trabalho proibido
  1. Em sede jurisprudencial, a celeuma em torno da contratação irregular de empregados públicos, ao arrepio das regras constitucionais e legais de investidura, foi resolvida pela Seção de Dissídios Individuais do C.TST no final da década de noventa. Para tanto, editou-se a Orientação Jurisprudencial n. 85 (SDI-1), depois transformada, por ato do Pleno, na Súmula n. 3631. Nada obstante, a vexata quaestio reclama novo dimensionamento, pelas próprias contradições inerentes à inteligência da referida súmula.

  2. No Direito Civil, põe-se a summa divisio entre atos nulos e anuláveis, sendo nulos os atos jurídicos praticados por pessoas absolutamente incapazes; os atos jurídicos cujo objeto é ilícito, indeterminado ou impossível; os que não revestem a forma prescrita em lei (incluídas as solenidades ad substanciam tantum); os de motivo determinante comum e ilícito; os que objetivarem fraudar lei imperativa; e, finalmente, os que a lei ou a Constituição declararem nulos, ou proibirem sem cominar sanção, ou aos quais negarem efeitos (art. 166, I a VII, do NCC). Anuláveis, de sua parte, são os atos jurídicos emanados por agente relativamente incapaz e os eivados por vícios de consentimento (erro, dolo, coação, lesão e estado de perigo) ou por vícios sociais, i.e., simulação ou fraude (art. 171, I e II, do NCC). À luz dessas considerações, e por força do art. 37, II e § 2º, da Constituição Federal, o contrato de trabalho do servidor não concursado, abstraídas as exceções constitucionais (art. 37, II, in fine, V e IX), é nulo ab ovo. Os efeitos dessa nulidade, contudo, não podem ser os mesmos divisados na perspectiva civilista, porque a teoria das nulidades comporta adequações nos lindes do Direito do Trabalho (diversidade relativa dos efeitos das nulidades). No plano constitucional, chega-se à mesma ordem de conclusões pela interpretação sistemática das normas constitucionais de nulidade: quando o constituinte originário pretendeu obstar qualquer efeito jurídico ao ato nulo, declarou-o expressamente, como se lê no art. 231, § 6º, da CRFB (acerca das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios):

    São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nela existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé (g.n.).

    Não o declarou, porém, no § 2º do art. 37, conquanto pudesse fazê-lo — donde se entender que a regulação dos efeitos da nulidade ali predisposta foi reservada para o legislador in-

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    fraconstitucional (cabendo ao Poder Judiciário, à míngua de lei ordinária, colmatar a lacuna correspondente).

  3. Tradicionalmente, os que se guiavam pela OJ n. 85 e que seguem, agora, a Súmula n. 363 do C.TST evocavam, para amparar seu entendimento, o art. 158 do Código Civil de 1916 (atual art. 182 do NCC)23. O referido preceito estabelece que, não sendo possível restituir as partes ao status quo ante, deve-se indenizá-las com o equivalente. Ocorre que o equivalente ao trabalho prestado, em sede trabalhista, não são apenas os salários, mas todos os títulos decorrentes do vínculo empregatício; caso contrário, o trabalho pessoal e não eventual prestado sob subordinação e mediante salários, na forma do art. 3º da CLT, não diferiria da mera locação de serviços (locatio conductio operarum), disciplinada pelos arts. 1.216 e ss. do CC/16 e pelos 594 e ss. do NCC/2002. Com efeito, é na “locatio conductio operarum” e nas figuras afins que a prestação de serviços preordena tão somente uma contraprestação pecuniária simples (“retribuição”), sem outros acessórios e à míngua de quaisquer garantias sociais (ut arts. 594 in fine, 597 e 603 do NCC). Eis a primeira razão pela qual as reflexões clássicas sobre a nulidade do contrato de trabalho nos casos de servidores não concursados desafiam reparos.

    7. A Emenda Constitucional n. 19/98 (Reforma Administrativa) trouxe consigo modificações relevantes para o tema em comento. Ao introduzir o princípio da eficiência (art. 37, caput), o legislador colimou, entre outros objetivos, legitimar ações institucionais impopulares inspiradas no art. 41, § 1º, III (perda de cargo em procedimento de avaliação periódica de desempenho) e no art. 169, § 4º (perda de cargo para contenção de despesa pública com pessoal), ambos da CRFB. Nada obstante, cabe ao intérprete conferir sentido socialmente útil ao novel princípio, para que dele se possam extrair consequências práticas e injunções à própria Administração Pública. «Eficácia» é noção mais cara à Ciência da Administração que ao Direito. Ganha relevo, por isso, o célebre escólio de Peter Drucker4 sobre eficácia e eficiência. Eficiência significa “fazer as coisas certo”; corresponde à capacidade de minimizar o uso de recursos para alcançar os objetivos da organização (que, no caso do Estado e de suas administrações, é o bem comum). Nessa medida, se a exoneração de servidores públicos (por «baixo desempenho» ou por questões orçamentárias) comprometer o bom funcionamento dos serviços públicos ou o próprio equilíbrio social (que se ressente de demissões massivas quando grassam a recessão e o franco desemprego), não estará a Administração primando pela satisfação do bem comum e, desse modo, desatenderá ao princípio da eficiência. Noutras palavras, de nada vale reduzir custos e não atingir os objetivos selecionados pelo constituinte originário — entre os quais a solidariedade social, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais e a promoção do bem comum (art. 3º, I, II, III e IV da CRFB). Estado mínimo, porém deficiente na consecução dos serviços públicos essenciais, atenta contra o telos constitucional, que não contempla os superávits primários ou tampouco a contenção do déficit público (esse último é um objetivo valioso, inclusive de traço legal-constitucional — ut Lei Complementar n. 101/2000 e arts. 163 a 169 da CRFB —, mas não é um fundamento da ordem constitucional e demo-

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    crática em vigor). O princípio da eficiência pode, portanto, ser evocado em favor do cidadão: não há eficiência administrativa sem responsabilidade social. Isso há de valer, e. g., para as demissões massivas de “não concursados”.

    8. Em face do art. 37 da Constituição Federal, há pelo menos três hipóteses de contratação nula de servidores públicos:

    (a) nulidade por violação pura e simples à norma do art. 37, II, 1ª parte, da CRFB (investidura para cargos, empregos ou funções públicas, por tempo indeterminado, sem aprovação prévia em concurso público, ressalvados os cargos em comissão, de livre nomeação e exoneração);

    (b) nulidade por violação oblíqua à norma permissiva do art. 37, inciso II, in fine, c.c. inciso V, in fine, da CRFB (contratação sem concurso público a pretexto de ocupação de cargos declarados em lei de livre nomeação e exoneração, em funções cujas características técnicas ou estratégicas não envolvem direção, chefia ou assessoramento)5;

    (c) nulidade por violação à norma permissiva do art. 37, IX, da CRFB (contratação por prazo determinado, sem concurso público, a pretexto de atender necessidade temporária de excepcional interesse público, à míngua de lei específica regulando a matéria ou em desacordo com seus preceitos). Nesse último caso, desde o momento em que se protraem ao desamparo da lei municipal, estadual ou federal, os contratos de trabalho viciam-se irremediavelmente por nulidade absoluta — o que, todavia, não fulmina direitos adquiridos no lapso contratual anterior ao exaurimento do interstício legal ou à nota de irregularidade (utile per inutile non vitiatur).

    9. Em todas as hipóteses supra, se houve trabalho subordinado, oneroso, pessoal e não eventual, houve relação de emprego (art. 3º, caput, da CLT), a despeito do elemento subjetivo que informou o comportamento das partes. Daí porque, nesses casos, todos os consectários da relação de emprego são em princípio devidos (inclusive anotação em CTPS, contagem do tempo de serviço para fins previdenciários, horas extra-ordinárias, verbas resilitórias e FGTS), apesar da nulidade do contrato de trabalho. Isso se explica, a uma, pela incidência, na espécie, do princí- pio da primazia da realidade (que realiza, nessa medida, o princípio da dignidade da pessoa humana)6. A...

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