Cooperativismo ? Castigo ou Redenção?

AutorGérson Marques/Ney Maranhao
Páginas87-98

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1. Introdução

Diz Leonardo Boff: “A margem é onde a vida é severina e onde o sistema econômico, social e político em que vivemos põe à mostra toda sua iniquidade, deteriorando todas as formas de vida”.1Nessa margem, é certo, sem liberdade, o ser humano deixa de ser responsável por seus atos e perde sua dignidade. Não tem trabalho, não tem relações fraternas com seus semelhantes, não toma parte da vida, não tem vida.

O cooperativismo poderia ser o caminho para a reconquista do espaço perdido, do trabalho como fonte de dignidade e liberdade, por se basear em valores de ajuda mútua e responsabilidade, democracia, igualdade, equidade e solidariedade. Cooperação pressupõe interação plena, trabalho conjunto, para o bem do grupo.

A vida boa ou o estado de bem-estar tem como pressuposto a interação, a relação de inter-dependência dos seres humanos. No dia a dia, dependo do cumprimento das leis de trânsito pelos demais cidadãos, a fim de locomover-me com segurança e rapidez. Para usufruir dos benefícios e das belezas de praias e cachoeiras, dependo de um ambiente sadio, sem a poluição provocada por meus semelhantes. Para ganhar dinheiro com meu trabalho, é necessário haver alguém que o aprecie e pague por ele.

A nossa era é marcada pelo individualismo, mas a ênfase a esse estado de coisas pode implicar prejuízo ao próprio individualista, como lembra aquela fábula2 em que dois jumentos estavam amarrados por uma corda no pescoço, um de costas para o outro. À frente de cada um, havia um apetitoso feixe de feno. Porém, quando o primeiro jumento se aproximava do alimento, a corda se retesava e afastava o outro de sua ração. Assim, como que disputando um cabo de guerra, os dois animais não conseguiam se alimentar até descobrirem que, juntos, poderiam aproveitar o feno, se se voltassem, a seu tempo, a cada feixe de feno.

A interação dos seres pode ser o caminho para evitar-se a margem a que se refere Boff, pois

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a vida humana está irremediavelmente ligada a uma infraestrutura material. Todos dependem de um pouco de pão, de um copo d’água, enfim, de uma pequena porção de matéria.

Num país como o nosso, em que as desigualdades são visíveis a olho nu34 — nos parques, nas ruas, nos sinais de trânsito — tudo o que se faz sob os auspícios da utopia de um mundo melhor alcança, de pronto, o aplauso de uns e, infelizmente, “o jeitinho brasileiro” de outros, que se aproveitam das falhas da lei, para interpretá-la segundo os próprios interesses e propósitos nem sempre ortodoxos.

O cooperativismo no Brasil tem idas e voltas. Tem bondades e maldades. Tem feitos e malfeitos. Por força do desvirtuamento de sua finalidade é que esse instituto passa a servir de amparo a ações de alguns segmentos da sociedade e de muitas empresas, descompromissados com a lei, com a verdade e com a justiça. E acabam por malferir a dignidade do trabalhador, tratando-o como mero instrumento de lucro.

Isso é que queremos discutir, a partir do Decreto-lei n. 59/1966 até a novíssima Lei n.
12.690/2012.

2. As cooperativas e seus fundamentos legais

Iniciamos com uma história contada pelo escritor mineiro Carlos Fabiano Braga que se autointitula cooperativista:

Um rei africano foi escravizado com sua família e tribo. Todos foram vendidos a um proprietário de mina de ouro em Vila Rica. Naquela época, era permitido aos escravos trabalhar um dia da semana em seu próprio benefício. Tal concessão pos-sibilitou que Chico Rei ganhasse algum dinheiro. Com a quantia economizada comprou a liberdade de seu filho. Mais tarde, auxiliado por seu descendente, comprou sua própria liberdade. Juntos, sem descanso, amealharam mais dinheiro e libertaram um terceiro membro da tribo. Formada essa “cooperativa”, que cada vez ficava mais forte, conseguiram libertar todos. Trabalhando em conjunto, o patrimônio do grupo tornou-se tão grande que adquiriram a mina: a Encardideira. Com mentalidade cooperativista, sem abandonar a tradição africana, Chico Rei se tornou chefe de um “Estado”, verdadeiro enclave, dentro das Minas Gerais. Se seu sucesso é hoje um exemplo, naquela época, foi sua perdição. O rei branco, não admitindo o fausto do rei africano, enviou tropas para, novamente, escravizá-lo.5Segundo o autor, estaria aí a gênese do cooperativismo. Aliás, uma bela gênese (em que pese o desfecho triste), a considerar que o grupo trabalhou em benefício de todos, princípio do cooperativismo.

Legalmente, a primeira manifestação sobre cooperativismo, sem utilização do termo, foi na Constituição de 1891 (art. 72, § 8º) que assegurou a liberdade de associação. O § 3º, do mesmo artigo, trata da liberdade de associação para fins religiosos, vindo, em seguida, a Lei n. 173/1993, regulamentando a associação, com base no § 3º retromencionado, mas cuidando, ainda, das associações criadas para fins científicos, morais ou recreativos. A Constituição de 1824 (art. 179,
XXIV) apenas garantia a liberdade do trabalho, desde que “[...] não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos”.

Somente em 1907, o Decreto n. 1.637 “Crea syndicatos profissionaes e sociedade coopera-

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tivas”, que funcionariam nos moldes de uma empresa comum, como consta do art. 10, podendo ser “[...] anonymas, em nome collectivo ou em commandita, são regidas pelas leis que regulam cada uma destas fórmas de sociedade [...]”.

Veja-se que o sindicato foi criado pelo mesmo diploma legal que as cooperativas. Os sindicatos estavam autorizados a “[...] organizar, em seu seio e para os seus membros, instituições de mutualidade, previdência e cooperação, de toda a sorte, constituindo essas, porém, associações distinctas e autonomas, com inteira separação e caixas e responsabilidades” (art. 3º, c).

Apesar da coincidência de regulamentação do cooperativismo numa regra jurídica que autoriza o sindicato a criar cooperativas, Rodolfo Pamplona6 destaca que Rodrigues Pinto, ao analisar essa situação, afirma que o cooperativismo e os sindicatos caminharam em direção contrária. Enquanto o cooperativismo tentava, por meio das cooperativas, livrar se do patrão, os sindicatos procuraram uma forma de convivência do empregado com a empresa. Em que pesem associações sindicais só existissem no rótulo7, a assertiva de Rodrigues Pinto é correta, na medida em que, ainda hoje, o cooperativismo, tenta, pela cooperativa, afastar-se do patrão, seguir caminho autônomo. Infelizmente, entretanto, pode ir ao encontro da empresa por causa das fraudes. O sindicato, por sua vez, ainda procura dinamizar as relações trabalhistas buscando harmonizar os objetivos de seus associados com os da empresa.

Coube ao Decreto n. 22.239, de 19.12.1932, consolidar a regulamentação das cooperativas de trabalho no Brasil, tendo seu art. 24 a seguinte redação:

São cooperativas de trabalho aquelas que, constituídas entre operários de uma determinada profissão, ou de ofício, ou de ofícios vários de uma mesma classe, têm como finalidade primordial melhorar os salários e as condi- ções de trabalho pessoal de seus associados, e, dispensando a intervenção de um patrão ou empresário, se propõem a contratar obras, tarefas, trabalhos ou serviços, públicos ou particulares, coletivamente por todos ou por grupos de alguns.

Veio a Constituição de 1934 determinando expressamente, em seu art. 121, que a “A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País”, mas, assim como a Constituição de 1891, nada tratou sobre cooperativismo, apesar de garantir a liberdade de associação.

A partir daí, editaram-se várias leis e decretos, inclusive detalhando o regime das cooperativas, inclusive classificando-as como sociais, profissionais, industriais etc. até chegar ao Decreto-lei n. 59/1966, que dispôs, no § 1º de seu art. 2º: “O Governo Federal orientará a política nacional de cooperativismo, coordenando as iniciativas que se propuserem a dinamizá-la, para adaptá-las às reais necessidades da economia nacional e seu processo de desenvolvimento”.

Elas deveriam se constituir sem o propósito de lucro e pautar-se pelo interesse público, havendo ou não coordenação entre aquelas do setor público e as do setor privado. Poderiam “adotar por objeto qualquer gênero de serviços, operações ou atividades” e teriam, obrigatoriamente de utilizar a expressão “cooperativa” (Decreto-lei n. 59/1966, art. 5º). Vigorou até 1971, quando foi revogado pela Lei n. 5.764.

Em 1994, entretanto, o Congresso Nacional editou a Lei n. 8.949, cujo projeto teve os seguintes fundamentos:

Está no cooperativismo de trabalho a fórmula mágica de reduzir o problema do desemprego gerado pelo êxodo rural e agora, mais precisamente, pela profunda recessão econômica.

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[...] O projeto visa, portanto, beneficiar imensa massa de desempregados do campo [...] terão o benefício de serem trabalhadores autônomos, com vantagem de dispensar a intervenção do patrão.8Essa lei veio apenas acrescentar um parágrafo ao art. 442 da CLT: “Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela”.

A polêmica instalou-se mais e mais, uma vez que a terceirização recrudesceu a partir desse dispositivo legal, mas a Justiça do Trabalho, nos casos que lhe foram submetidos, deu rápida resposta à fraude, com base no art. 9º da CLT.

Recém-editada, a Lei n. 12.690, de 19 de julho de 2012, que trouxe em seu bojo a proibição de utilização de Cooperativa de Trabalho para intermediação de mão de obra subordinada, pretendeu também revogar o parágrafo único do art. 442 da CLT, mas recebeu veto da Presidência da República nesse aspecto.

Se as leis sobre cooperativas cumprem efetivamente o desiderato para o qual foram editadas...

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