A comodificação de gametas humanos

AutorLucas Costa de Oliveira
Páginas113-197
CaPítulo III
A COMODIFICAÇÃO DE GAMETAS HUMANOS
Como alternativa à compartimentalização, penso que devemos reconhecer
um continuum que reita os graus de comodicação que são apropriados
em um dado contexto. Uma comodicação incompleta – ou uma inalie-
nabilidade parcial – algumas vezes pode refletir a situação conflituosa
que compreendemos determinada interação. Ainda, uma comodicação
incompleta pode, em determinadas situações, substituir uma completa não
comodicação que pode estar de acordo com nossos ideais, mas causam
danos em nosso mundo não ideal.1
1. INTRODUÇÃO
Antes de adentrar nas discussões inerentes ao terceiro e derradeiro capítulo, far-se-á
uma breve recapitulação dos argumentos desenvolvidos até aqui. Iniciou-se a presente
pesquisa com a evidenciação do problema que lhe serve como força propulsora. Obser-
vou-se que os gametas humanos têm sido compreendidos e tratados como mercadorias,
em maior ou menor medida: seja pela compra e venda em um livre mercado, seja por
modelos de compensação e compartilhamento sem critérios sucientemente claros,
seja pela importação e exportação das células germinais desconsiderando as restrições
legislativas de cada sistema jurídico, seja por práticas paralelas às determinações legais
e deontológicas, como as inseminações caseiras. Contudo, ainda que o contexto fático
tenha demonstrado o processo de comodicação de óvulos e espermatozoides, evitou-se
recair em uma falácia naturalista, retirando do ser um dever-ser.
Desse modo, a investigação do problema apresentado se iniciou pelo questionamen-
to da legalidade da prática no ordenamento jurídico brasileiro. Em síntese, concluiu-se
que há um robusto arcabouço teórico-normativo que aponta para a proibição de comer-
cialização de qualquer material de origem humana, embora não haja vedação expressa
em relação aos gametas. A redação imprecisa do texto constitucional e a fundamentação
naturalista dos direitos da personalidade demonstraram ser insucientes para solucionar
os desaos ocasionados pelos avanços biotecnológicos. Assim, haveria uma abertura
hermenêutica para a defesa da comercialização de gametas humanos, especialmente no
que diz respeito à extensão semântica da proibição contida na vedação constitucional.
Partindo dessa inferência inicial – ou mesmo que se adote uma abordagem de
lege ferenda –, buscou-se identicar qual seria a maneira mais adequada de categorizar
1. RADIN, Margaret Jane. Contested Commodities. Cambridge: Harvard University Press, 2001, p. 104, tradução
nossa.
EBOOK GAMETAS COMO MERCADORIAS.indb 113EBOOK GAMETAS COMO MERCADORIAS.indb 113 30/05/2023 11:31:0030/05/2023 11:31:00
GAMETAS COMO MERCADORIAS • Lucas costa de oLiveira
114
os gametas a partir das rígidas molduras conceituais que ainda estruturam o direito
contemporâneo. Sendo o direito de propriedade um pressuposto conceitual para a
compreensão dos gametas como mercadorias, foi necessário analisar a possibilidade
de enquadrar elementos corpóreos como objetos submetidos prima facie ao direito de
propriedade. Para tanto, tornou-se imperioso empreender uma análise com enfoque
dogmático a m de delimitar o fundamento, o conteúdo e a titularidade desse direito
subjetivo, especialmente quando relacionado a esses objetos peculiares. A conclusão
indicou que o direito de propriedade, em razão da sua ampla elasticidade, é marcado
por uma pluralidade de estatutos e regulações, de tal maneira que consegue eliminar
ou enfraquecer os riscos de se atribuir propriedade a elementos corpóreos, garantindo
maior controle, bem como proteção mais adequada às pessoas que venham a ter mate-
riais separados dos seus corpos. Não obstante, a proposição de que os gametas devem
ser compreendidos como objetos de propriedade não implica, necessariamente, que
devem ser comercializados. Se o fenômeno da comodicação pressupõe a atribuição
de propriedade, o contrário não é imprescindível, uma vez que podem haver bens fora
de comércio ou com congurações bastante singulares. São essas circunstâncias que
tornam indispensável a investigação contida no presente capítulo.
Para uma deliberação racional acerca da comodicação de gametas humanos, faz-se
necessário partir de algum arcabouço teórico que estabeleça parâmetros para avaliar
os limites do mercado. Essa delimitação ultrapassa a racionalidade jurídica, tanto pela
imprecisão das normas contidas no ordenamento brasileiro, quanto pela abertura do
sistema jurídico a outros tipos de racionalidades. Assim, a abordagem deste capítulo
será predominantemente ética, uma vez que serão avaliadas as percepções e valorações
morais sobre a comodicação dos gametas humanos.2 Não obstante, seria inviável
analisar todas as teorias que levantam pretensões morais sobre os limites do mercado
e da racionalidade econômica, uma vez que toda teoria da justiça engendra, direta ou
indiretamente, pretensões nesse sentido. Assim, adotar-se-á a teoria da comodicação
incompleta, desenvolvida por Margaret Jane Radin em obra seminal sobre a temática,
como marco teórico para as discussões desenvolvidas neste capítulo. Além da importân-
cia fundamental do pensamento da autora nos debates sobre comodicação, a escolha
decorre da sua visão não binária e não compartimentalizada entre o comodicado e o
não comodicado, admitindo a coexistência relacional dessas duas esferas em relação a
determinadas práticas e objetos. De mais a mais, Radin, antes de desenvolver sua própria
2. Nesse sentido, CORTINA, Adela; NAVARRO, Emilio Martínez. Ética. Tradução de Silvana Cobucci Leite. 5 ed.
São Paulo: Loyola, 2005, p. 20: “podemos nos propor a reservar – no contexto acadêmico em que nos movemos
aqui – o termo ‘Ética’ para nos referir à Filosoa Moral, e manter o termo ‘moral’ para denotar os diferentes
códigos morais concretos. Essa distinção é útil, pois se trata de dois níveis de reexão diferentes, dois níveis de
pensamento e linguagem acerca da ação moral, e por isso se torna necessário utilizar dois termos diferentes se
não queremos cair em confusões. Assim, chamamos de ‘moral’ esse conjunto de princípios, normas e valores
que cada geração transmite à geração seguinte na conança de que se trata de um bom legado de orientações
sobre o modo de se comportar para viver uma vida boa e justa. E chamamos de ‘Ética’ essa disciplina losóca
que constitui uma reexão de segunda ordem, sobre os problemas morais. A pergunta básica da moral seria
então: ‘O que devemos fazer’, ao passo que a questão central da Ética seria antes: ‘Por que devemos?’, ou seja,
‘Que argumentos corroboram e sustentam o código moral que estamos aceitando como guia de conduta?’”.
EBOOK GAMETAS COMO MERCADORIAS.indb 114EBOOK GAMETAS COMO MERCADORIAS.indb 114 30/05/2023 11:31:0030/05/2023 11:31:00
115
CAPíTuLO III • A COMODIFICAÇÃO DE GAMETAS HuMANOS
argumentação, apresenta um aprofundado diagnóstico das teorias que estruturam o
debate acerca da comodicação e dos limites morais do mercado.
Dessa maneira, o desenvolvimento deste capítulo se iniciará com a apresentação,
em linhas gerais, das teorias que estruturam e organizam o debate: a tese da comodi-
cação universal; a tese da inalienabilidade universal; e a tese da compartimentalização.
O principal objetivo será evidenciar o contexto em que a proposição desenvolvida nesta
pesquisa se insere. Em seguida, será apresentada a teoria de Margaret Radin de maneira
minuciosa, uma vez que rompe com as teses mais difundidas acerca da comodicação
e seus limites morais. Após a descrição da teoria da comodicação incompleta, bus-
car-se-á desenvolver uma visão para além do pensamento da autora, buscando uma
posição mais autoral e coerente com o conceito de pessoa desenvolvido nas pesquisas
do Grupo Persona.3
Ao nal, será adotada uma postura analítica com a nalidade de identicar e testar os
principais argumentos contrários à comercialização de gametas humanos, com destaque
para a corrupção dos valores comunitários, como solidariedade e justiça, a exploração
de pessoas em situação de vulnerabilidade, a coerção econômica que viciaria o consen-
timento, a possibilidade de ocorrência de danos físicos e psicológicos, especialmente
em relação às mulheres, a violação da dignidade humana em razão da objeticação dos
vendedores, dentre outros.
2. COMODIFICAÇÃO: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO
Um esclarecimento se revela indispensável para o prosseguimento das investigações
propostas neste capítulo. Ao longo da pesquisa foram utilizados termos distintos para
indicar instituições e fenômenos semelhantes: mercado, comércio, comercialização,
mercantilização e comodicação são os exemplos mais evidentes.4 Torna-se, portanto,
impreterível o aclaramento semântico desses termos, uma vez que são centrais para uma
compreensão adequada do argumento aqui desenvolvido.
Interpretados em sentido meramente descritivo, essas palavras possuem sentidos
similares, indicando perspectivas diferentes de se analisar o mesmo fenômeno eco-
nômico. Mercados são entendidos como “instituições nas quais trocas ocorrem entre
partes que voluntariamente as realizam”.5 Nesse sentido, o termo “mercado” possui
uma conotação espacial, entendido como lugar de encontro ou reunião de pessoas para
troca de provisões.6 Sempre que houver vendedores e compradores dispostos a realizar
3. O Grupo Persona consiste em grupo de pesquisa vinculado à Universidade Federal de Minas Gerais, fundado
e coordenado pelo prof. Dr. Brunello Stancioli, que tem por objetivo desenvolver pesquisas cujo eixo central
seja a pessoa e suas implicações ético-jurídicas.
4. Poder-se-ia ainda acrescentar os termos “mercadoria”, “coisa”, “bem” e “objeto”. Não obstante, os signicados
desses termos já foram debatidos e esclarecidos no segundo capítulo, para onde se remete o leitor.
5. SATZ, Debra. Why some things should not be for sale: the moral limits of markets. New York: Oxford University
Press, 2012, p. 15.
6. SATZ, Debra. Why some things should not be for sale: the moral limits of markets. New York: Oxford University
Press, 2012, p. 16.
EBOOK GAMETAS COMO MERCADORIAS.indb 115EBOOK GAMETAS COMO MERCADORIAS.indb 115 30/05/2023 11:31:0030/05/2023 11:31:00

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT