O estatuto jurídico dos gametas

AutorLucas Costa de Oliveira
Páginas17-53
CaPítulo I
O ESTATUTO JURÍDICO DOS GAMETAS
De forma cada vez mais intensa, pede-se ao direito, entendido no sentido
moderno, que regule uma série de dimensões da vida que deveriam permane-
cer conadas às decisões autônomas dos interessados, à sua personalíssima
maneira de entender a vida, as relações sociais, sua relação consigo mesmo.1
1. INTRODUÇÃO
Em matéria de reprodução humana assistida, o direito brasileiro se encontra em
uma situação próxima à anomia. Mais de quatro décadas após o nascimento do primeiro
bebê de proveta, a inglesa Louise Brown, ainda não se encontra uma legislação especíca
sobre a temática em território nacional. Desse modo, torna-se necessário recorrer às
resoluções do Conselho Federal de Medicina e às interpretações extensivas de normas
inadequadas para regulamentar as complexas situações jurídicas ocasionadas pelos
avanços biotecnológicos.
Questões fundamentais, como o anonimato dos doadores, o vínculo de liação
estabelecido, a gestação de substituição, a compensação ou incentivos econômicos pela
doação de gametas e embriões, dentre diversos outros aspectos controvertidos, conti-
nuam sem respaldo legislativo. Consequências indesejadas surgem desse contexto. A
insegurança jurídica e a instabilidade social podem ser mencionadas como desdobra-
mentos imediatos e evidentes. O domínio de outras esferas com pretensões normativas
é um fenômeno latente, mas que traz uma nova dimensão argumentativa ao debate.
Ao escrever sobre o imperialismo jurídico, Stefano Rodotà recorda que o movi-
mento de expansão do direito positivo foi condicionado por uma sociedade governada
por outras esferas normativas, a exemplo da religião, da moral e dos costumes sociais.2
Assim, pode-se inferir que, na ausência de razões jurídicas, outros tipos de racionalidade
passam a governar as condutas e relações humanas, como se percebe em relação à repro-
dução humana assistida no Brasil. Sem um posicionamento claro por parte do direito,
há uma expansão de normas deontológicas, mercadológicas e religiosas que disputam a
colonização normativa e axiológica das práticas relacionadas ao contexto reprodutivo.
Dessa maneira, o objetivo deste capítulo consiste em evidenciar, por meio de
uma análise crítica, as normas e construções teóricas que abordam de maneira direta
1. RODOTÀ, Stefano. La vida y las reglas: entre el derecho y el no derecho. Traducción de Andrea Greppi. Madrid:
Editorial Trotta, 2010, p. 31, tradução nossa.
2. RODOTÀ, Stefano. La vida y las reglas: entre el derecho y el no derecho. Traducción de Andrea Greppi. Madrid:
Editorial Trotta, 2010, p. 29.
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ou indireta o problema de comercialização de gametas humanos, com a nalidade de
identicar se há uma proibição nesse sentido. Assim, busca-se estabelecer os inegáveis
pontos de partida da investigação jurídico-dogmática.3
2. ANÁLISE E METAFÍSICA: UMA INVESTIGAÇÃO CONSTITUCIONAL
Ao partir de uma perspectiva jurídica em relação à comercialização do corpo hu-
mano, suas partes separadas e substâncias, a norma fundamental que deve orientar o
debate se encontra insculpida na Constituição da República de 1988:
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
[...]
§ 4º A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e subs-
tâncias humanas para ns de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento
e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.4
Um método promissor para a determinação do escopo da norma constitucional
consiste na investigação histórica do texto normativo, por meio da análise dos anais
da Assembleia Nacional Constituinte. Em 1986, no anteprojeto preliminar elaborado
pela Comissão Provisória de Estudos Constitucionais já havia dispositivo que proibia o
comércio de órgãos humanos (art. 358, parágrafo único).5 Na Subcomissão de Saúde, Se-
guridade e Meio Ambiente houve extensa discussão sobre aspectos gerais do transplante
de órgãos e tecidos humanos, muito em razão da propagação das técnicas em território
nacional em um cenário de insegurança jurídica. Discutiu-se sobre a viabilidade de
normas especícas na Constituição e sobre a necessidade do consentimento do doador
ou seus familiares para se efetivar o procedimento. Contudo, em relação à proibição
do comércio de órgãos e tecidos humanos não houve questionamentos, sendo tratada
como matéria consensual. Ao nal, o anteprojeto da subcomissão estabeleceu a proi-
bição do comércio de órgãos e tecidos humanos (art. 9º, § 3º),6 repetida no anteprojeto
da Comissão de Ordem Social (art. 62, parágrafo único).7
Ao chegar na Comissão de Sistematização, o dispositivo é retirado dos substitu-
tivos apresentados, sem qualquer justicativa. Somente com a elaboração do primeiro
projeto apresentado ao plenário da Assembleia Nacional Constituinte há a reinserção
da vedação ao comércio de órgãos e tecidos humanos, mas com o acréscimo do termo
3. Cf. FERRAZ JR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São Paulo:
Atlas, 2007.
4. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: .
Acesso em 19 ago. 2019.
5. BRASIL. Anteprojeto Constitucional: elaborado por meio da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais,
instituída pelo Decreto 91.450, de 18 de julho de 1985. Brasília: Diário Ocial, 26 set. 1986. Disponível em:
eAQTp>. Acesso em 19 ago. 2020.
6. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte: Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente (Atas da
Comissão). Brasília: 1987. Disponível em: . Acesso em 19 ago. 2020.
7. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte: Comissão da Ordem Social (Anteprojeto da Comissão). Brasília:
jun. 1987. Disponível em: . Acesso em 19 ago. 2020.
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CAPíTuLO I • O ESTATuTO JuRíDICO DOS GAMETAS
“substâncias humanas” (art. 234, § 3º). A última alteração relevante do artigo ocorreu
com a elaboração do segundo projeto, no qual se inseriu expressamente a proibição de
todo tipo de comercialização do sangue e seus derivados (art. 204, § 4º). Dessa maneira,
chega-se à redação nal do dispositivo que se encontra na Constituição da República
A partir dessa análise, algumas conclusões podem ser inferidas. Resta evidente que
o escopo original da norma era a proibição do comércio de órgãos e tecidos humanos. O
contexto fático sob o qual se instaurou o art. 199, § 4º foi a necessidade de se garantir uma
regulação basilar para o transplante de órgãos e tecidos humanos em face dos recentes
avanços da medicina nessa área. Nesse sentido, a vedação ao caráter comercial da prática
era um aspecto lateral, embora com amplo consenso. Apenas em um momento posterior
é que os debates alcançaram a temática do sangue e seus derivados. Embora seja, em
sentido técnico, um tecido, os constituintes entenderam ser prudente a explicitação da
proibição em relação ao sangue. Dentre as justicativas indicadas, destaca-se a noção
de que o sangue não poderia ser considerado uma simples mercadoria. Argumentou-se
também contra a exploração dos pobres e marginalizados, além da violação da dignidade
humana. Contudo, a justicativa mais recorrente para a previsão especíca do sangue era
referente às consequências danosas da prática, conforme deixa claro a seguinte proposta
de emenda, aprovada pela comissão:
A justicação baseia-se no fato de que o comércio de sangue é responsável pela propagação de do-
enças infecciosas, entre elas, a terrível Síndrome da Imunodeciência Adquirida (AIDS), pois a compra
de sangue sempre recai sobre indivíduos debilitados, mendigos, dependentes de drogas de baixa
renda e outras pessoas de alto risco como portadores de doenças. Somente a doação altruística a
partir de pessoas sadias, com espírito de solidariedade humana, pode reduzir os riscos de propagação
de doença por meio da transfusão de sangue.9
Ainda em relação ao sangue, uma discussão que gerou grande divergência entre
os constituintes foi a extensão da vedação de comercialização aos derivados do sangue.
Para alguns, a proibição da mercantilização de hemoderivados (v.g. reagentes, albumi-
na) causaria um colapso no sistema de saúde, uma vez que grande parte da produção
se dava por indústrias particulares. Por outro lado, havia aqueles que entendiam em
sentido contrário, uma vez que cerca de 95% do sangue e de hemoderivados eram, ao
tempo do debate, importados. Nesse contexto, houve importante ponderação sobre o
sentido da vedação contida no texto constitucional: “o que é vedado é fazer do sangue
mercadoria, é tirar lucro do sangue, é a mais-valia; mas todo o trabalho necessário de
coleta, processamento e transfusão do sangue, sem dúvida, poderá ser cobrado.10
8. LIMA, João Alberto de Oliveira; PASSOS, Edilenice; NICOLA, João Rafael. A gênese do texto da Constituição
de 1988. Brasília: Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2013, v. I, p. 327.
9. BRASIL. Bases da Assembleia Nacional Constituinte. Comissão de Sistematização. Emenda 00977. Autoria: José
Fogaça (PMDB/RS). Apresentada em 13 jan. 1988. Disponível em: ttps://bit.ly/3l79KqO>. Acesso em 20 ago.
2020.
10. BRASIL. Assembleia Nacional Constituinte. Ata da 331ª sessão da Assembleia Nacional Constituinte, em 28 de
agosto de 1988, p. 349. Disponível em: y/3hsKAAI>. Acesso em 20 ago. 2020.
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