O direito de propriedade sobre gametas

AutorLucas Costa de Oliveira
Páginas55-112
CaPítulo II
O DIREITO DE PROPRIEDADE SOBRE GAMETAS
Se há um postulado que parece organizar a experiência humana desde os
seus primórdios, é o da divisão entre pessoas e coisas. Nenhum outro princí-
pio possui uma raiz tão profunda na nossa percepção, e também na nossa
consciência moral, quanto o da convicção de que não somos coisas – já que
coisas são o contrário de pessoas. Porém, o que nos parece uma evidência
quase natural é o êxito de um longuíssimo processo de disciplinamento que
percorreu a história antiga e moderna modicando seus contornos.1
1. INTRODUÇÃO
O corpo representa uma dimensão incontornável para a emergência da pessoali-
dade. Não há pessoa sem corpo, embora a pessoalidade não se reduza à corporeidade. A
partir de um paradigma pós-metafísico, compreende-se que ser pessoa é se encontrar em
um processo de incessante construção e reconstrução de si mesmo. O corpo, apreendido
como suporte para o livre desenvolvimento da pessoa, acompanha esse movimento de
transvaloração.2 A ampla possibilidade de uso e (auto)manipulação da corporeidade é
inescapável para que cada pessoa se torne aquilo que quiser.3 Assim, o corpo se afasta
de uma concepção ontológica e estática, assimilado como algo sagrado e digno de con-
templação, para se tornar um elemento imprescindível no processo dinâmico e ativo
de se fazer pessoa.4 Nesse sentido, a era das biotecnologias proporciona a radicalização
das possibilidades de manipulação dessa plataforma empírica, a exemplo dos casos da
incorporação de elementos externos aos corpos e da separação de elementos corpóreos
– como se observa em relação aos gametas humanos.
Ao longo dos capítulos anteriores, buscou-se evidenciar a crescente importância
dos gametas no âmbito da reprodução humana assistida, o que tem ocasionado uma
constante busca pela extração, manipulação, criopreservação e importação das células
germinais. A despeito da revolução biotecnológica, o direito vigente continua em estado
letárgico. Essa constatação implica a necessidade de se utilizar de estruturas conceituais
1. ESPOSITO, Roberto. As pessoas e as coisas. Tradução de Adrea Santurbano e Patricia Peterle. São Paulo: Rafael
Copetti Editor, 2016, p. 1.
2. STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade (ou como alguém se torna o que
quiser). 2. ed. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017, p. 143-158.
3. LARA, Mariana. O direito à liberdade de uso e (auto) manipulação do corpo. Belo Horizonte: Editora D’Plácido,
2014, p. 122.
4. STANCIOLI, Brunello; CARVALHO, Nara Pereira. Da integridade física ao livre uso do corpo: releitura de
um direito da personalidade. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite (Org.).
Manual de Teoria Geral do Direito Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 271.
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GAMETAS COMO MERCADORIAS • Lucas costa de oLiveira
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e normativas mais amplas para se estabelecer um arcabouço jurídico apto a solucionar
as complexas situações que se originam dessa conjuntura. Exemplica-se: há tipicidade
nos contratos celebrados entre os biobancos e as pessoas que desejam criopreservar seus
gametas? Qual é o fundamento da responsabilidade civil nos casos de danos a gametas
criopreservados? A subtração ou utilização de células germinais sem consentimento
constitui ilícito civil ou criminal? É válida a transmissão de gametas em vida e após a
morte? Questões dessa natureza não podem esperar uma futura e incerta regulamen-
tação, uma vez que o direito deve oferecer respostas aos casos concretos que têm se
tornado corriqueiros nas cortes judiciais. Nesse sentido, entende-se que o caminho para
encontrar as soluções adequadas consiste em identicar o enquadramento dogmático
dos gametas humanos. Deve-se buscar a categorização jurídica para que seja possível
estabelecer uma estrutura teórico-normativa para solucionar os diversos problemas
que surgem em razão da indeterminação jurídica.
Ainda mais importante é a percepção de que a denição do status jurídico dos
gametas constitui um pressuposto metodológico para o debate sobre a comodicação
desses biomateriais.5 Dessa maneira, entende-se que a compreensão dos gametas como
mercadorias pressupõe o seu enquadramento como coisas passíveis de apropriação. Em
síntese, compreende-se que toda mercadoria é também, necessariamente, um objeto do
direito de propriedade, embora nem todo objeto do direito de propriedade seja uma mer-
cadoria.6 Daí a necessidade de se investigar o enquadramento dogmático dos gametas.
Na tradição jurídica de vertente romano-germânica, a literatura acerca do esta-
tuto jurídico das partes separadas do corpo humano não possui a mesma extensão e
profundidade do debate estruturado sob a égide da common law.7 Todavia, a falta de
interesse sobre a temática não implica a ausência de importância teórica e prática,
como se observa nos inúmeros casos levados a tribunais nacionais e internacionais.
Neste capítulo, após evidenciar os problemas que a indeterminação jurídica engendra,
buscar-se-á identicar qual seria a melhor maneira de compreender e categorizar os
gametas humanos a partir do instrumental técnico estabelecido pelo direito vigente,
5. Nesse sentido, Stephen Munzer: “Permitir a venda é reconhecer a existência de direitos de propriedade sobre
partes do corpo”. O autor, por outro lado, entende que a atribuição de propriedade implica, necessariamente,
a mercantilização – posição divergente da adotada nesta pesquisa. Cf. MUNZER, Stephen R. An uneasy case
against property rights in body parts. Social Philosophy and Policy, v. 11, n. 2, 1994, p. 259, tradução nossa.
6. Nesse sentido, Muireann Quigley: “Embora possa ser difícil separar a propriedade das transações de mercado,
objeções à comercialização devem ser distinguidas das objeções à propriedade per se. Cf. QUIGLEY, Muireann.
Propertisation and commercialisation: on controlling the uses of human biomaterials. e Modern Law Review,
v. 77, n. 5, 2014, p. 678, tradução nossa.
7. Na tradição da common law, o estudo sistematizado acerca das congurações jurídicas do corpo e suas partes
destacadas é recorrente, especialmente com base em uma abordagem partindo dos direitos reais, como se
observa nas seguintes obras monográcas: GOLD, Richard E. Body parts: property rights and the ownership
of human biological materials. Washington: Georgetown University Press, 2007; HARDCASTLE, Rohan. Law
and the human body: property rights, ownership and control. Portland: Hart Publishing, 2007; QUIGLEY,
Muireann. Self-ownership, property rights, and the human body: a legal and philosophical analysis. Cambridge:
Cambridge University Press, 2018. Um exemplo excepcional de estudo monográco na tradição da civil law
pode ser encontrado em BAUD, Jean-Pierre. Il caso della mano rubata. Traduzione di Laura Colombo. Milano:
Giurè Editore, 2003.
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especialmente a partir da dicotomia pessoa-objeto – summa divisio desde as fundações
do direito romano.8 Deveriam os gametas ser concebidos como bens tutelados pelos
direitos da personalidade, uma vez que possuem vinculação inarredável à pessoa? Ou,
por outro lado, deveriam ser tutelados com base nas normas que regulam a propriedade,
já que podem ser compreendidos como materiais destacados do corpo humano, com
existência autônoma?
Tais proposições serão analisadas de maneira crítica, buscando-se evidenciar os
problemas e implicações de cada alternativa. Defende-se a hipótese de que os gametas
devem ser considerados coisas tuteladas pelo arcabouço teórico-normativo do direito
de propriedade, na medida em que garante às pessoas um maior controle sobre os
elementos corpóreos que vierem a ser destacados dos seus corpos, sem prejuízo de
conexões com os direitos da personalidade ou com uma regulamentação especíca. Ao
nal, discute-se a necessidade de se pensar para além da rigidez conceitual presente na
dicotomia pessoa-objeto como meio de superar e resolver os problemas causados pelos
avanços biotecnológicos que permitem a constante manipulação do corpo humano.9
2. OS PROBLEMAS DA INDETERMINAÇÃO JURÍDICA
Suponha que alguém, em decorrência de um acidente doméstico, venha a ter sua
mão decepada. Antes de desfalecer, a pessoa consegue vociferar em busca de ajuda.
A aglomeração logo se torna uma balbúrdia entre policiais, paramédicos e curiosos.
Nesse momento, a mão é inserida em um saco plástico repleto de gelo, aumentando a
possibilidade de um reimplante bem-sucedido. Um dos vizinhos, antigo desafeto do
acidentado, aproveita-se da situação e subtrai a mão sem que fosse notado. O caso so-
mente vem a ser desvendado após uma semana de investigação, ao encontrá-la em um
aterro sanitário. Solucionadas as questões fáticas, a controvérsia passa a ser estritamente
jurídica. Como um tribunal deveria enquadrar a conduta praticada pelo vizinho? Seria
um crime contra o patrimônio ou um crime contra a pessoa? Para além do aclaramento
teórico, essa determinação conceitual implica em consequências penais e civis bastante
distintas, especialmente em razão das diferenças axiológicas que justicam cada uma
das abordagens jurídicas.10
Por um lado, para que a conduta seja compreendida como um crime contra o
patrimônio, há a necessidade de que alguém seja o proprietário de uma coisa que tenha
sido lesada. Nesse sentido, observa-se a redação dos artigos 155 e 163 do Código Penal
brasileiro: “Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena: reclusão,
8. Cf. GAIUS. Institutas do jurisconsulto Gaio. Tradução de José Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo: Ed. RT,
2004.
9. Destaca-se que aspectos dos capítulos 2, 4, 5 e 7 foram originalmente desenvolvidos em OLIVEIRA, Lucas Costa
de; STANCIOLI, Brunello. O corpo em pedaços: o direito de propriedade sobre partes destacadas do corpo
humano. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 29, p. 33-55, 2021.
10. Jean-Pierre Baud inicia sua investigação acerca das congurações jurídicas do corpo e suas partes destacadas
com base em uma narrativa hipotética bastante similar à descrita. Cf. BAUD, Jean-Pierre. Il caso della mano
rubata. Traduzione di Laura Colombo. Milano: Giurè Editore, 2003, p. 11-18.
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