Conceito, mecanismo e eficácia: a exceção de contrato não cumprido como exceção material, dilatória, dependente e comum

AutorRicardo Dal Pizzol
Páginas93-148
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CONCEITO, MECANISMO E EFICÁCIA:
A EXCEÇÃO DE CONTRATO O
CUMPRIDO COMO EXCEÇÃO MATERIAL,
DILATÓRIA, DEPENDENTE E COMUM
Na lição de Pontes de Miranda, a exceção de contrato não cumprido “é a ex-
ceção dilatória, que tem qualquer f‌igurante de contrato bilateral, para se recusar a
adimplir, se não lhe incumbia prestar primeiro, até que simultaneamente preste o
f‌igurante contra quem se opõe.”322
Por meio dessa exceção material, dilatória, dependente e comum, ensina Antu-
nes Varela, qualquer das partes de um contrato bilateral pode, desde que não tenham
sido estabelecidos prazos diferentes para cumprimento das prestações, recusar a
sua prestação enquanto o outro não efetuar a que lhe compete ou não oferecer o seu
cumprimento simultâneo.323
Mas o que é uma exceção para o Direito material? E mais: o que signif‌ica dizer
que se trata de uma exceção dilatória, dependente e comum?
Essas duas def‌inições, dos preclaros Pontes de Miranda e Antunes Varela, aqui
inseridas apenas em caráter introdutório, permitem antever que a adequada com-
preensão desse instituto não pode ser alcançada sem antes examinar a categoria
geral da exceção material, bem como suas várias classif‌icações (exceções dilatórias
e peremptórias; dependentes e independentes; pessoais e comuns).324
A exceção de Direito material, como observa com precisão Daisy Gogliano, é f‌i-
gura que se encontra ausente, perdida nas brumas do tempo, praticamente esquecida,
mas que precisa ser de quando em quando resgatada para a adequada compreensão
de institutos como a exceção de contrato não cumprido, a exceção de inseguridade
e o direito de retenção.325
322. Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Campinas: Bookseller, 2003, t. XXVI,
p. 122.
323. Antunes Varela, João de Matos. Das obrigações em geral. v. I. 10. ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 398.
324. Outro elemento central, vale ressaltar, que desponta dessas duas def‌inições é o da relação temporal entre
as prestações: a busca por preservar a simultaneidade dos cumprimentos quando nada em sentido diverso
decorrer da lei, dos costumes ou do próprio contrato. Esse aspecto será tratado no subitem 4.3.
325. Gogliano, Daisy. A exceção civil como instrumento de tutela na resolução dos contratos sinalagmáticos. Tese
de Titularidade – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 11.
EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO • RicaRdo dal Pizzol
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Com altos e baixos, a exceção material transpôs milênios de história, nascendo
espontaneamente no processo formulário romano, fruto da necessidade concreta de
impedir a aplicação rigorosa de direitos abstratamente albergados pelo ius civile, para,
sobrevivendo à Idade Média, reestruturar-se com o pandectismo, como contraponto
ao conceito de pretensão, na condição peculiar de posição jurídica ativa de natureza
defensiva. Atualmente, além de revelar-se importante ferramenta metodológica de
análise (facilita a decomposição de situações jurídicas complexas, especialmente
daquelas estruturalmente recíprocas como é o caso da própria exceção de contrato
não cumprido, da exceção de inseguridade e do direito de retenção),326 o conceito
de exceção material exerce papel muito particular de modulação da ef‌icácia de di-
reitos, pretensões e ações materiais (ao invés de negar a existência dessas posições
jurídicas ou de extingui-las, as exceções têm, como se verá, a característica peculiar
de apenas “encobrir” ou “paralisar” a ef‌icácia delas). Seu lugar no Direito Privado
contemporâneo, portanto, está assegurado, apesar das vozes que se apressaram a
apontar seu esvaziamento.327
Como restará evidente ao f‌inal, o estudo da exceção de contrato não cumprido
à luz do conceito de exceção material, submetendo-a, posteriormente, ao seu enqua-
dramento nas várias subdivisões dela decorrentes (exceções dilatórias e peremptórias;
dependentes e independentes; pessoais e comuns), revela-se método extremamente
profícuo para aclarar suas principais características, mecanismo de funcionamento
e efeitos. É o que se propõe fazer, basicamente, neste capítulo.
2.1 EXCEÇÕES MATERIAIS OU SUBSTANCIAIS: CONTRADIREITOS
NEUTRALIZANTES
a) A palavra exceção tem, em Direito, uma pluralidade de sentidos.
Na seara do processo civil, o termo exceção tanto pode ser empregado em sentido
amplo, referindo-se a todo e qualquer tipo de defesa do demandado,328 quanto em
sentido estrito, para designar a espécie de defesa que deve ser alegada pelo réu no
momento oportuno, sob pena de não ser conhecida pelo órgão jurisdicional.329 A
326. Menezes Cordeiro, António. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2007, p. 740.
327. Foi o caso, por exemplo, de Raymond Carré de Malberg, que, em 1887, vaticinou a morte da exceção de
direito material: “Assim, a noção de exceção teve seu tempo de glória; contudo, ela desapareceu ou pra-
ticamente desapareceu de nossos Códigos Civis. Resta-nos desejar que ela desapareça também dos usos
da prática, onde, por um singular apego às ideias romanas e às tradições do velho procedimento francês,
continuam-se a empregar em sua linguagem as qualif‌icações, os epítetos e as divisões da velha teoria das
exceções.” (Malberg, Raymond Carré de. Histoire de l’exception en droit romain et dans l’ancienne procédure
française. Paris: Librairie Nouvelle de Droit et de Jurisprudence, 1887, p. 355-356).
328. Cintra, Antonio Carlos Araújo; Grinover, Ada Pellegrini; Dinamarco, Cândido Rangel. Teoria geral do
processo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 294-295.
329. Dinamarco, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil: v. II. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2017,
p. 381.
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2 • CoNCEITo, mECANISmo E EFICáCIA
esses sentidos “processuais” da palavra exceção retornaremos no capítulo oitavo desta
tese, quando tratarmos do exercício da exceção de contrato não cumprido em Juízo.
Agora, interessa-nos o conceito de exceção para o Direito material, de modo a
[i] verif‌icar se a exceção de contrato não cumprido faz jus ao nome (isto é, se cons-
titui ou não verdadeira exceção), e, em caso positivo, [ii] extrair dessa qualif‌icação
elementos que ajudem a compreender e regulamentar a exceção de contrato não
cumprido.330
b) O conceito de exceção material deita raízes na categoria jurídica romana da
exceptio.
Como já tivemos oportunidade de expor no primeiro capítulo, era observado
no processo formulário romano o ordo iudiciorum privatorum, no qual o julgamento
se dividia em duas fases sucessivas: a in iure (diante do pretor) e a apud iudicem (pe-
rante o juiz popular [iudex]). A formula era o traço marcante do processo formulá-
rio, consistindo no esquema abstrato existente no Edito dos pretores, que servia de
modelo para que, no caso concreto, com as adaptações necessários, fosse redigido
o iudicium, documento aprovado pelo magistrado (pretor), no qual eram f‌ixados os
pontos litigiosos do caso concreto e outorgado ao juiz popular escolhido pelas partes
(iudex) o poder de condenar ou absolver o réu, conforme restasse comprovada, ou
não, a pretensão do autor.331
As exceptiones eram partes acessórias da formula, inseridas a pedido do réu, pelas
quais este, com base em direito próprio ou determinada circunstância, conseguia
paralisar a pretensão do autor.332 A exceptio era, assim, já naquele momento, um
330. Após a def‌inição do sentido de exceção para o direito material, f‌icará claro que a relação entre esses três
conceitos (os dois processuais e o material) pode ser representada graf‌icamente como três círculos con-
cêntricos (no qual o primeiro sentido [todo e qualquer tipo de defesa do demandado] abrange o segundo
[espécie de defesa que deve ser alegada pelo réu no momento oportuno, sob pena de não ser conhecida pelo
órgão jurisdicional], que, por sua vez, abrange o terceiro [defesas que não negam a existência do direito do
demandante, mas simplesmente encobrem, perene ou temporariamente, a ef‌icácia da pretensão]). (Costa,
Sergio. Eccezione (diritto vigente). In: Novissimo Digesto Italiano, v. 6. Torino: Unione Tipograf‌ico-Editrice
Torinese, 1960, p. 350).
Importante, porém, ter em mente que, excepcionalmente, haverá exceções materiais (terceiro círculo)
que, por contingências do direito positivo instrumental de cada país, podem não funcionar como exceções
processuais em sentido estrito (não estão compreendidas no segundo círculo). É o que ocorre, por exemplo,
com a prescrição no ordenamento brasileiro. Embora não haja dúvida de que constitui exceção substancial,
na medida em que não nega nem desmantela o direito de fundo, mas apenas paralisa sua exigibilidade
(fazendo-o de forma permanente, daí porque é qualif‌icada como exceção peremptória), é fato que: (i) a
consumação da prescrição pode ser pronunciada de ofício pelo magistrado (art. 332, § 1º, e art. 487, II,
ambos do CPC); (ii) pode ser alegada em qualquer tempo e grau de jurisdição (art. 193 do CC e art. 342,
II e III, do CPC). Logo, a representação gráf‌ica dos três conceitos de exceção como círculos concêntricos
é válida para a imensa maioria das situações, porém não é infalível.
331. Moreira Alves, José Carlos. Direito Romano, v. I. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 207-209.
332. Cannata, Carlo Augusto. Eccezione (diritto romano). In: Novissimo Digesto Italiano, v. 6, Torino, 1960, p.
347.

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