O direito de suspender o cumprimento da obrigação em face do inadimplemento da parte contrária nos países de common law. A doutrina da suspension of performance

AutorRicardo Dal Pizzol
Páginas403-422
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O DIREITO DE SUSPENDER O
CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
EM FACE DO INADIMPLEMENTO DA
PARTE CONTRÁRIA NOS PAÍSES DE
COMMON LAW. A DOUTRINA DA
SUSPENSION OF PERFORMANCE
6.1 CAMINHOS DISTINTOS DOS SEGUIDOS ATÉ AQUI
Nos países de civil law, canonistas, pós-glosadores, integrantes da Escola de
Direito Natural e pandectistas, por meio de uma compreensão cada vez mais apro-
fundada da relação de dependência e reciprocidade entre as obrigações derivadas
dos contratos bilaterais, erigiram a exceptio non adimpleti contractus como defesa
genericamente admitida nesses contratos. O instituto difundiu-se nos países de civil
law com esse nome latino, o qual passou a conviver, posteriormente, com outras
denominações adaptadas aos idiomas locais, a exemplo de exception d’inexécution
(França e Bélgica), eccezione d’inadempimento (Itália), Einrede des nicht erfüllten
Vertrags (Alemanha), excepción de incumplimiento contractual (Espanha) e exceção
de não cumprimento do contrato (Portugal).
A exceptio non adimpleti contractus apresenta notável homogeneidade nos países
de civil law, tanto no que se refere aos requisitos para seu cabimento, como no que
toca ao seu mecanismo de funcionamento, fruto certamente do desenvolvimento
histórico comum descrito no primeiro capítulo. Com raras exceções, tais países ten-
dem a consagrar regras gerais em seus respectivos Códigos autorizando qualquer dos
f‌igurantes de um contrato bilateral a recusar a sua prestação enquanto o outro não
efetuar a que lhe compete ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo, a exemplo
do art. 1.460 do Código Civil Italiano ou do §320, (1) e (2), do BGB. Mesmo quando
regra geral desse jaez não está prevista expressamente no Código Civil do país, como
acontecia na França até a recente alteração do art. 1.219, promovida pela Ordennance
no 2016-131, de 10 de fevereiro de 2016, e ainda ocorre na Espanha atualmente, a
jurisprudência e a doutrina tendem a aplicar a exceptio, por se reconhecer que se
EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO • RicaRdo dal Pizzol
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trata de simples corolário do vínculo de reciprocidade ou interdependência entre
as obrigações (sinalagma) que caracteriza os contratos bilaterais.
Nos países de common law, em contrapartida, que não compartilharam da maior
parte da evolução histórica narrada até aqui, na medida em que seus ordenamentos
sofreram pouca inf‌luência do Direito Canônico, da Escola de Direito Natural e do
Pandectismo, a f‌igura da exceptio non adimpleti contractus, com esse nome e com
essa estrutura, é desconhecida.
Como se verá, as Cortes inglesas, até meados do século XVIII, entendiam que
as obrigações dos contratos bilaterais eram independentes entre si, a não ser que o
contrário constasse expressamente do pacto, o que, em certa medida, representava
um retrocesso mesmo em relação ao Direito Romano clássico e pós-clássico, que
vigorou nas ilhas britânicas até o século V.1392
Defesa semelhante à exceptio só viria a surgir, nos países de common law, a partir
de uma série de precedentes do f‌im do século XVIII, entre os quais merecem destaque
Kingston v. Preston, de 1773,1393 e Morton v. Lamb, de 1797.1394
Tais precedentes, sob perspectiva diversa daquela que orientou a criação da
exceptio nos países de civil law, passaram a reconhecer, em determinadas circunstân-
cias, a existência de constructive conditions (condições f‌ictas) ou implied condictions
(condições tácitas), a estabelecer relações de dependência entre as obrigações das
partes nos contratos bilaterais.
O conceito de condition na common law não difere, na essência, do conceito
de condição do nosso Direito, enquanto evento futuro e incerto que subordina a
ef‌icácia do negócio jurídico. A diferença está, todavia, em se ampliar o conceito, na
1392. Segundo Franz Wieacker, ao contrário do que muitos pensam e apregoam, o Direito Romano e o Direito
Canônico tiveram, sim, alguma inf‌luência na formação do Direito Inglês, especialmente no campo da
equity: “O Direito Canônico medieval era uma síntese de fontes eclesiásticas e [...] de uma interpretação
medieval do Direito Romano. O chefe e os membros da Corte da Chancelaria eram, originalmente, e
por um longo período, clérigos. Consequentemente, muitas regras de equity desenvolvidas nessa Corte
remontam à aequitas canonica e assim, em parte, se não completamente, ao Direito Romano.” (Wieacker,
Franz. The Importance of Roman Law for Western Civilization and Western Legal Thought. Boston College
International and Comparative Law Review, n. 4, 1981, p. 260). Todavia, essa inf‌luência diminuiu, segundo
o mesmo autor, após a Dinastia Tudor, devido a dois fatores principais: [i] Primeiro, a separação da Igreja
da Inglaterra de Roma. A Igreja Católica havia sido responsável, em grande medida, pela disseminação
do Direito Romano na Europa, inclusive na Inglaterra. Após a separação religiosa, essa via de recepção do
Direito Romano deixou de existir. Além disso, após a reforma religiosa, a Coroa inglesa passou a enxergar o
Direito Romano com desconf‌iança, devido à sua relação próxima com a Igreja Católica. Por razões óbvias,
também cessou a inf‌luência do Direito Canônico sobre o Direito Inglês, o que tem especial relevância no
tema em estudo, considerando que o instituto da exceptio non adimpleti contractus foi, em grande medida,
obra dos canonistas; [ii] Segundo, a partir da Dinastia Tudor, o ensino jurídico fornecido pelos Inns of
Court (associações prof‌issionais de advogados), de viés eminentemente prático, passou a prevalecer, na
preparação dos juristas ingleses, sobre a formação jurídica universitária, a qual era baseada no Direito
Romano e no Direito Canônico (Ibidem, p. 259-261).
1393. Kingston v. Preston, E. 13 Geo. 3. Court of King’s Bench, 1773.
1394. Morton v. Lamb, Court of King’s Bench, 7 T.R. 125, 101 Eng. Rep. 890 (1797).

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