A exceptio non adimpleti contractus na história

AutorRicardo Dal Pizzol
Páginas11-92
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A EXCEPTIO NON ADIMPLETI
CONTRACTUS NA HISTÓRIA
A história da exceção de contrato não cumprido praticamente se confunde com
a do próprio contrato.
E nem poderia ser diferente, considerando que, na aplicação desta forma de
defesa, interagem alguns dos elementos mais centrais da teoria contratual, como é
o caso notadamente do sinalagma, da causa e da boa-fé.
À medida que estes elementos (sinalagma, causa e boa-fé) ascendiam em im-
portância, não só se alterava o próprio conceito histórico de contrato, como também
crescia a consciência quanto à necessidade de preservar o equilíbrio entre as partes
nos negócios que envolvessem prestações recíprocas, função primordial daquilo
que um dia viria a ser a exceptio non adimpleti contractus.
Quando o formalismo imperava no Direito Romano arcaico e os contratos eram
todos solenes, abstratos e unilaterais, não havia espaço para cogitar de qualquer re-
médio análogo ao que hoje se entende por exceção de contrato não cumprido. Um
exemplo evidencia os entraves então existentes: antes do surgimento da compra e
venda como contrato consensual e bilateral, os romanos valiam-se de duas stipulatios
para realizar operação econômica equivalente (uma pela qual o vendedor prometia
entregar a coisa ao comprador; outra pela qual o comprador prometia pagar o pre-
ço ao vendedor). Geravam-se, dessa forma, dois contratos unilaterais e abstratos,
com obrigações independentes uma da outra, não podendo o comprador, quando
demandado pelo vendedor, justif‌icar o não pagamento do preço com base na não
entrega da coisa, e vice-versa.3 Em suma, a própria estrutura do que se entendia por
contrato, nesse momento histórico, não comportava um remédio como a exceptio
non adimpleti contractus.
Posteriormente, com o surgimento dos primeiros contratos bilaterais e causais,
crescerá entre os jurisconsultos romanos a consciência da interdependência das
obrigações recíprocas deles derivadas. Em decorrência, admitir-se-á, progressi-
vamente, por obra sobretudo dos pretores, que uma das partes, em circunstâncias
específ‌icas e pontuais ditadas pela boa-fé (bona f‌ides) e pela equidade (aequitas),
3. Moreira Alves, José Carlos. Direito Romano, v. II. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 157; Williston,
Samuel. Dependency of mutual promises in the civil law. Harvard Law Review, v. 13, n. 2, 1899, p. 80; Cesar,
José A. Sobre os efeitos dos contratos bilaterais. Campinas: Typ. da Casa Genoud, 1914, p. 10.
EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO • RicaRdo dal Pizzol
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recuse o cumprimento de sua obrigação ante o inadimplemento da obrigação da
contraparte. Era o embrião do que, séculos depois, na Idade Média, receberia o nome
de exceptio non adimpleti contractus.
Tudo isso é dito aqui, em caráter introdutório, apenas para evidenciar o quanto
a história da exceptio está atrelada à evolução do próprio contrato, em grande medida
por conta de um eixo transformador comum, constituído pelas noções de causa,
sinalagma e boa-fé.
A evolução da exceptio, contudo, como se verá, não foi nem tranquila, nem linear.
Como adverte Menezes Cordeiro, uma das dif‌iculdades que sempre permeou
o estudo da exceptio reside na velha técnica ocidental de pensar o Direito a partir de
posições jurídicas individuais, seja pelo método das actiones no Direito Romano, seja
por meio, posteriormente, da sistemática de direitos subjetivos. Essa forma de lidar
com as questões contratuais, a partir da atribuição de actiones ou de direitos subje-
tivos a cada contratante lesado isoladamente, dif‌icultou o tratamento de situações
estruturalmente recíprocas, como é o caso da exceção de contrato não cumprido. Isso
explica por que, segundo o autor, malgrado a expressão latina exceptio non adimpleti
contractus, o instituto só tenha surgido verdadeiramente, como regra geral, no século
XIII, suscitando dúvidas até nossos dias.4
A reciprocidade é tão central no instituto da exceptio que esta deveria ter, se-
gundo Catherine Malecki, outro nome: exceção do sinalagma não executado. A opção
por “contractus”, ao invés de sinalagma, segundo a mesma autora, foi obra dos ca-
nonistas, que tinham preferência por termos latinos.5 Além disso, nas compilações
justinianeias, sempre que as fontes originais mencionavam o termo grego “sinalag-
ma”, em referência à ideia aristotélica de troca ou transação,6 este foi convertido para
4. Menezes Cordeiro, António. Tratado de direito civil, v. IX – Direito das obrigações: cumprimento e não-cum-
primento, transmissão, modif‌icação e extinção. 3. ed. Almedina: Coimbra, 2017, p. 274.
5. Malecki, Catherine. L’exception d’inexécution. Paris: LGDJ, 1999, p. 02.
6. O termo “sinalagma” provém do grego συναλλαγμα, que signif‌ica acordo ou transação (Cantarella, Eva.
Obbligazione [diritto greco]. In: “Novissimo Digesto Italiano, v. 11, Torino, 1968, p. 547). Na Ética a Nicô-
maco, Aristóteles utilizou o termo sinalagma (συναλλαγμα) para referir-se tanto às transações voluntárias
(contratos), como às transações involuntárias (ilícitos em geral), que juntas, na sua sistemática, compõem
a justiça corretiva: “A outra forma fundamental é a corretiva e aplica-se nas transações entre os indivíduos.
Esta é, por sua vez, bipartida, conforme diga respeito a transações voluntárias ou involuntárias.” (Ética
a Nicômaco, trad. António de Castro Caeiro, São Paulo: Atlas, 2009, p. 108). Interessante observar que,
na edição bilíngue grego-inglês de Rackham, o termo συναλλαγμα também foi traduzido, nessas mesmas
passagens, por “transactions” (The Nicomachean Ethics, trad. H. Rackham, V, ii, 13, p. 266–67).
Vale lembrar que, na classif‌icação de Aristóteles, a justiça manifesta-se de duas formas fundamentais. A
justiça distributiva diz respeito à distribuição de dinheiro, honrarias e outros bens pelo Estado entre os
membros da comunidade, de acordo com o mérito e as contribuições de cada um. A justiça corretiva, por
sua vez, aplica-se nas transações entre os particulares, que, como já dito, podem ser voluntárias (compra e
venda, locação, empréstimo etc.) ou involuntárias (ilícitos em geral) (Ética a Nicômaco, trad. António de
Castro Caeiro, São Paulo: Atlas, 2009, p. 108). A justiça corretiva observa apenas o princípio da igualdade.
O objetivo do juiz será sempre restabelecer o equilíbrio rompido, seja pelo ato ilícito praticado, seja pelo
descumprimento do contrato. Conf‌ira-se, nas palavras do próprio Filósofo: “A justiça, contudo, que se
aplica às transações particulares observa o princípio da igualdade. [...] O juiz tentará equilibrá-los ao fazer
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1 • A EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS NA HISTÓrIA
“contractus”. Por força desses fatores, o instituto passou a sustentar, especialmente
na língua portuguesa (exceção de contrato não cumprido), nome que pouco revela
acerca de sua verdadeira essência.
Os canonistas e pós-glosadores serão os primeiros a compreender, em sua ple-
nitude, a reciprocidade entre as obrigações derivadas dos contratos bilaterais. Serão
os primeiros igualmente a extrair dessa interdependência a exceptio non adimpleti
contractus como instrumento geral de justiça corretiva aristotélica: uma forma de
impedir o desequilíbrio estrutural que adviria se fosse permitido a um contratante
exigir o cumprimento da parte adversa sem antes cumprir ou ao menos disponibi-
lizar sua prestação.7
Daí porque, em grande medida, como se verá, a história da exceção de contra-
to não cumprido é a história do reconhecimento dessa relação de reciprocidade e
causalidade entre as obrigações.
O presente capítulo está dividido em quatro itens. O primeiro descreve a
evolução do tema no Direito Romano: da total independência entre as obrigações
no período arcaico e início do período clássico, até a criação de soluções pontuais,
fundadas na boa-fé e na equidade, que autorizavam o devedor, em determinadas
circunstâncias, a recusar o cumprimento da obrigação enquanto a parte adversa
também não disponibilizasse a devida contrapartida, processo este que se desenrolou
a partir do f‌im do período clássico, aprofundando-se no pós-clássico. No segundo
item, analisa-se como canonistas e pós-glosadores, a partir das fontes romanas (e,
portanto, das soluções pontuais referidas), chegaram, no decorrer da Idade Média,
a uma regra geral aplicável a todos os contratos bilaterais, qual seja a exceptio non
adimpleti contractus. No terceiro, descreve-se o caminho percorrido pelo instituto,
especialmente na França e na Alemanha, entre o início da Era Moderna e as grandes
codif‌icações dos séculos XIX e XX. Por f‌im, no quarto e último item, faz-se breve
análise acerca de seu desenvolvimento no Direito luso-brasileiro.
pagar a multa ou retirar o ganho para ressarcir a perda. [...] O igual, que nós dizíamos ser a justiça, é o
meio entre aqueles extremos, de tal sorte que a justiça corretiva é o meio termo entre os extremos perda e
ganho.” (Ibidem, p. 110-111).
Como se percebe, a ideia de sinalagma em Aristóteles, no que toca às transações voluntárias, não está atre-
lada apenas à necessidade de manter o equilíbrio no nascedouro do contrato (sinalagma genético), mas
também à necessidade de mantê-lo durante a fase de cumprimento (sinalagma funcional). Sob esse último
aspecto, o juiz deve agir tanto no sentido de [i] corrigir o desequilíbrio que deriva da inexecução por uma
das partes (obrigando-a a prestar ou restabelecendo as partes ao status quo ante, mediante a resolução do
negócio), como também no sentido de [ii] impedir a situação de desequilíbrio que adviria do fato de um
contratante poder exigir o cumprimento da parte adversa sem antes cumprir a sua parte na avença (preo-
cupação subjacente ao instituto da exceção do contrato não cumprido). Como af‌irma Catherine Malecki,
“mesmo entre os gregos, já era admitido que a noção de sinalagma não exprimia apenas a reciprocidade
concebida pelas partes no momento da formação do contrato, evocando também uma concepção funcional
da reciprocidade, atenta ao desequilíbrio econômico provocado pela primeira inexecução. Isto contribuirá
para demonstrar que a reciprocidade das obrigações está intrinsicamente ligada também à execução do
contrato.” (Malecki, Catherine. Op. cit., p. 03).
7. Ibidem, p. 02.

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