Requisitos de aplicação da exceção de contrato não cumprido (art. 476 do Código Civil). Âmbito de incidência

AutorRicardo Dal Pizzol
Páginas285-374
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REQUISITOS DE APLICAÇÃO DA EXCEÇÃO
DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO
(ART. 476 DO CÓDIGO CIVIL).
ÂMBITO DE INCIDÊNCIA
4.1 DELINEAMENTO DOS REQUISITOS
No capítulo anterior, analisamos o instituto da exceção de contrato não cum-
prido à luz de três eixos: sinalagma, causa concreta e boa-fé objetiva.
O primeiro deles, o sinalagma, encarna o próprio fundamento do remédio. A
exceção de contrato não cumprido é o resultado de uma evolução histórica de con-
tínua e progressiva consciência do liame de interdependência entre as prestações
de um contrato bilateral, não só no momento de sua gestação (sinalagma genético),
mas também durante seu cumprimento (sinalagma funcional). A principal função
da exceção é preservar o equilíbrio do contrato, em respeito justamente a esse nexo
de interdependência entre as obrigações.
A causa concreta, por sua vez, tem a função de assegurar que a aplicação da
exceção de contrato não cumprido esteja em linha com os interesses e f‌inalidades
essenciais dos contratantes, impedindo que [i] o remédio seja utilizado por conta de
violações não signif‌icativas em consideração à realização do programa contratual982
e [ii] em situações de patente desproporcionalidade entre os incumprimentos.983 É
por essa razão que dissemos que ela (causa concreta) fornece a própria “medida do
cabimento” da exceção de contrato não cumprido.
982. Menezes Cordeiro fala, com esse mesmo sentido, acerca da necessidade de “exigir que a exceção de contrato
não cumprido seja movida apenas por perturbações sinalagmáticas materiais e não formais” (Da boa-fé no
direito civil. Coimbra: Almedina, 2007, p. 847).
983. As situações de desproporcionalidade entre os incumprimentos conf‌iguram exercício inadmissível da
posição jurídica ativa, conforme tratado no subitem 3.3.2, “b.2”, retro. Logo, nesse ponto, a causa concreta
atua em apoio à boa-fé objetiva, oferecendo o parâmetro de comparação entre os incumprimentos, para
medir se há ou não abusividade: se os incumprimentos forem proporcionais entre si, à luz da relevância
de seu impacto para a causa concreta do negócio, inexiste abusividade; se forem desproporcionais entre si, à
luz do mesmo critério, haverá abusividade.
EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO • RicaRdo dal Pizzol
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O terceiro eixo – a boa-fé objetiva – demarca o âmbito de exercício admissível da
ferramenta, estabelecendo as fronteiras para além das quais o emprego do contradi-
reito deixa de ser uma arma legítima de autodefesa para assumir foros de abusividade.
Apenas quando se analisa a f‌igura sob esses três eixos, conjugadamente, é que se
pode ter dela uma visão global e mais acurada em termos de hipóteses de cabimento,
ef‌icácia, funcionamento e uso admissível. Dito de outra forma, são perspectivas
diferentes que se complementam.
É por essa razão que deixamos para tratar dos pressupostos de aplicação da
exceção após o exame dos três eixos referidos, a f‌im de que tudo o que já foi dito
acerca destes (sinalagma, causa concreta e boa-fé objetiva) possa clarear o caminho
da exposição daqueles (os pressupostos).
Até porque seria de pouca valia, por exemplo, lançar a af‌irmação de que para o
cabimento da exceptio é imprescindível que os deveres sejam sinalagmáticos (primeiro
requisito a ser tratado neste capítulo), sem que antes fosse explicado, com profun-
didade, em que consiste o próprio sinalagma. E, permanecendo ainda no âmbito
deste requisito, pouco se poderia avançar no sentido do tratamento das situações
limítrofes a ele pertinentes (v.g., aplicabilidade ou não da exceptio a contratos bilaterais
imperfeitos, a contratos plurilaterais, a obrigações mútuas decorrentes de resolução
contratual, a obrigações derivadas de contratos diferentes, mas coligados entre si),
sem uma adequada compreensão dos fundamentos e das funções do instituto.
O que pretendemos fazer neste capítulo é justamente explorar, em relação a cada
um dos requisitos, essas situações limítrofes, os hard cases. Af‌inal, não é o exemplo
livresco do credor que nada cumpriu, nem se oferece a cumprir, mas mesmo assim
decide aventurar-se em juízo para cobrar a parte adversa, sendo simultâneos os
vencimentos e bilateral o contrato (situação de incidência indubitável da exceptio),
que costuma se apresentar na prática. As lides forenses estão permeadas, ao invés,
de exceções arguidas em contextos bem mais “cinzentos”: entre deveres de tipos
e pesos diferentes na relação contratual (principais, secundários, acessórios ou de
proteção); em situações de incumprimento parcial, nas quais o excipiente recebeu
anteriormente, com ou sem ressalvas, a prestação incompleta; entre obrigações de
vencimentos diferentes em relações duradouras, tendo uma das partes tolerado, em
nome da continuidade da relação, o inadimplemento da outra por algum tempo; e
assim por diante.
Pois comecemos, então, a busca por def‌inir os requisitos do instituto.
Ruy Rosado de Aguiar Jr. relaciona nove requisitos para o cabimento da ex-
ceção de contrato não cumprido: a) o contrato deve ser bilateral; b) existência de
correspectividade entre as obrigações do excepto e do excipiente; c) gravidade da
inexecução atribuída ao excepto para a economia do contrato; d) proporcionalidade
entre a inexecução atribuída ao excepto e a prestação cujo cumprimento o excipiente
pretende suspender; e) vencimento da obrigação do excipiente; f) não cumprimento
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4 • rEQuISIToS DE APLICAÇÃo DA EXCEÇÃo DE CoNTrATo NÃo CumPrIDo (ArT. 476 Do CC)
da obrigação do excipiente; g) obrigação do excepto de prestar antes ou simulta-
neamente; h) não cumprimento ou falta de oferta da prestação do excepto; i) o não
cumprimento do excepto não pode ser imputado ao excipiente.984
Esta é a mais abrangente enumeração que encontramos em nossos estudos e,
por isso mesmo, um adequado ponto de partida para a exposição.
O item “a” – o contrato deve ser bilateral – não ref‌lete adequadamente o âmbito
de incidência do remédio, visto que, como se verá a seguir, há situações excepcionais
de cabimento que extrapolam essa classe.
Melhor dizer, assim, de forma mais genérica, que os deveres de prestar das partes
precisam ser sinalagmáticos ou correspectivos entre si (o que também engloba o item
“b” da lista acima). Este será nosso primeiro requisito.
O segundo requisito de que cuidaremos engloba os pontos “e”, “f” e “g”: os
deveres de prestar do excipiente e do excepto precisam ser contemporaneamente exigíveis
no momento do exercício da exceção.985 Com efeito, esse requisito resulta da conjuga-
ção de duas constatações principais: [i] se a obrigação do demandado não está nem
mesmo vencida, sua defesa não deverá ser pautada no art. 476 do Código Civil, mas
na própria inexigibilidade da obrigação; [ii] se a obrigação do demandante, por sua
vez, ainda não é exigível, a exceção de contrato não cumprido também não é cabível
(embora possa ser cabível aquela do art. 477 do Código Civil – a chamada exceção
de inseguridade – a ser examinada no próximo capítulo).986
Por f‌im, o terceiro requisito que anunciaremos concerne ao inadimplemento
do demandante-excepto. Para que a exceção seja cabível, é imprescindível um in-
cumprimento do excepto que atinja o núcleo funcional do contrato (isto é, a causa
concreta). Este requisito sofre, ainda, a complementação de duas condições impostas
pela função corretiva da boa-fé objetiva, já analisadas anteriormente, quais sejam: [i]
que o incumprimento do excepto não seja imputável ao próprio excipiente;987 [ii]
984. Aguiar Jr., Ruy Rosado de. Comentários ao novo Código Civil, v. VI, t. II: da extinção do contrato (arts. 472
a 480). Teixeira, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 724.
985. A formulação original desse requisito, nesses termos, deve ser creditada a João Pedro de Oliveira de Biazi
(A exceção de contrato não cumprido no direito privado brasileiro. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2019. p. 150).
986. Não parece adequado, todavia, restringir o cabimento da exceção, como fez Ruy Rosado de Aguiar Jr. (item
“g”), às situações nas quais o autor-excepto tenha a obrigação de prestar antes ou simultaneamente. Como
veremos, se as obrigações de ambas as partes estiverem vencidas no momento da oposição da exceção,
irrelevante que o demandante, inicialmente, estivesse obrigado a prestar em data posterior ao demandado.
Dito de outra forma, se “A” tinha de prestar no dia 20 e “B” no dia 10 do mesmo mês, ambos poderão in-
vocar a exceptio após o dia 20 quando cobrados (inclusive “B” que, em tese, conforme o contrato, deveria
ter prestado primeiro). Vencidas ambas as obrigações, a ordem original estabelecida não mais importa: as
duas partes poderão opor a exceptio em igualdade de condições.
987. No capítulo anterior (subitem 3.3.2, “c”), relacionamos como abusiva por afronta à boa-fé objetiva, in-
cidindo no tipo de exercício inadmissível “Nemo auditur propriam turpitudinem allegans” (“a ninguém é
dado alegar a própria torpeza”), a conduta do excipiente que, ao invocar a exceptio, aponta incumprimento
da parte adversa que, na verdade, só pode ser imputado ao próprio excipiente (seja porque este recusou
indevidamente a prestação ofertada pelo excepto [mora do credor], seja porque, por qualquer outra forma,
impediu o cumprimento adequado por parte do excepto).

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