Redefinindo os contornos do instituto da exceptio non adimpleti contractus a partir das noções de sinalagma, causa concreta e boa-fé objetiva

AutorRicardo Dal Pizzol
Páginas149-283
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REDEFININDO OS CONTORNOS DO
INSTITUTO DA EXCEPTIO NON ADIMPLETI
CONTRACTUS A PARTIR DAS NOÇÕES
DE SINALAGMA, CAUSA CONCRETA
E BOA-FÉ OBJETIVA
Como exposto no primeiro capítulo, a história da exceção de contrato não
cumprido é, em larga medida, a narrativa do avanço do reconhecimento da relação
de reciprocidade e causalidade entre as obrigações nos contratos bilaterais. À medida
que o Direito dos Contratos desprendia-se do formalismo e da abstração iniciais
para colocar o foco no consentimento, na boa-fé e nos reais interesses que permeiam
essas relações de troca – relações em que, à evidência, uma das partes concorda
em dar ou fazer algo em favor da contraparte por ter em mira o que será dado ou feito
pela parte adversa e vice-versa –, crescia o consenso em torno do princípio geral de
que não se pode obrigar alguém a cumprir em favor de quem ainda não cumpriu (a
velha máxima “inadimplenti non est adimplendum”, que bem pode ser traduzida por
“não se paga a quem não paga”).543
A evolução dogmática do instituto nos países de civil law não se encerra, todavia,
com a introdução de regras gerais nos Códigos Civis, a exemplo do §320 do BGB, do
art. 476 do Código Civil Brasileiro ou do art. 1.460 do Código Civil Italiano, corte
temporal com o qual f‌inalizamos o primeiro capítulo. A bem da verdade, tais regras,
por serem muito genéricas, são absolutamente insuf‌icientes para permitir entender
por quê, para quê e quando a exceção de contrato não cumprido é cabível, bem como
quais são os efeitos de sua aplicação,544 mormente em face de cenário contratual
cada vez mais complexo e sof‌isticado, tanto em termos de práticas do mercado (v.g.,
contratos relacionais, contratos coligados), como de teoria (v.g., deveres laterais de
543.Inadimplenti non est adimplendum” e “exceptio implementi non secuti” eram outras expressões utilizadas,
até o início do século XX, para fazer referência ao mesmo princípio subjacente à “exceptio non adimpleti
contractus”. Ver, nesse sentido: Lessona, Carlo. Legittimità della massima “inadimplenti non est adimplen-
dum”. Rivista del Diritto Commerciale e del Diritto Generale delle Obbligazioni. v. XVI, parte prima. 1918,
p. 383.
544. Butruce, Vítor Augusto José. A exceção de contrato não cumprido no direito civil brasileiro: funções, pressu-
postos e limites de um “direito a não cumprir”. Dissertação (Mestrado em Direito Civil) – Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009, p. 09–10.
EXCEÇÃO DE CONTRATO NÃO CUMPRIDO • RicaRdo dal Pizzol
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conduta, novas noções de adimplemento/inadimplemento). Para conf‌irmar essa
conclusão, basta pensar na simplicidade do único artigo que trata do tema no Código
Civil brasileiro, o já referido art. 476:
Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação,
pode exigir o implemento da do outro.
Fácil perceber que nenhum hard case referente à matéria – v.g., aplicação da
exceptio entre obrigações de contratos diferentes, porém coligados; cabimento da
exceção quando conf‌igurado o adimplemento substancial do excepto; possibilidade
de invocar o inadimplemento de dever acessório para justif‌icar o inadimplemento
da obrigação principal; cabimento da exceptio em contratos plurilaterais – pode ser
solucionado mediante simples raciocínio silogístico a partir desse dispositivo.
E são justamente esses casos “difíceis” que se apresentam nos tribunais com
maior frequência nos dias de hoje, até porque pouco provável que, tendo sido con-
vencionado o cumprimento simultâneo, uma das partes se aventuraria a cobrar em
juízo a prestação da parte adversa sem ter cumprido sequer uma parte do pactuado
ou sem se disponibilizar a fazê-lo (situação de incidência clara da exceção de contrato
não cumprido). Para a solução dos problemas aludidos no parágrafo anterior e de
tantos outros, a regra do art. 476 do Código Civil não é suf‌iciente, sendo impres-
cindível retornar às bases do instituto, que residem nas noções de sinalagma, causa
concreta e boa-fé objetiva.
Cada um desses elementos exerce, como se verá, papel diverso em relação ao
instituto, que se complementam, porém, entre si.
O sinalagma, enquanto liame de interdependência e reciprocidade que se es-
tabelece entre as prestações, constitui o próprio fundamento da exceção de contrato
não cumprido. É justamente porque as partes obrigaram-se reciprocamente, uma
prestação em função da outra, que uma delas não pode exigir o cumprimento da
parte adversa sem ter antes cumprido o que lhe compete ou oferecido o cumpri-
mento simultâneo.
Já a causa concreta, enquanto unidade de f‌inalidades e interesses essenciais das
partes, fornece a própria “medida” do cabimento em concreto da exceção de contrato
não cumprido. Por duas razões, fundamentalmente. Primeiro, porque a invocação
deste remédio só se legitima quando o descumprimento alegado pelo excipiente
atingir o núcleo funcional do contrato constituído pela causa concreta – vale dizer,
quando o descumprimento interferir signif‌icativamente na economia do negócio.
Segundo, porque, cumulativamente, exige-se proporcionalidade entre os deveres
inadimplidos (pelo excepto e pelo excipiente), à luz justamente da relevância de
ambos para o atingimento da causa concreta (dito de outra forma, para que a opo-
sição da exceção seja cabível, é preciso que a prestação descumprida pelo excepto
ostente relevância semelhante para a promoção da causa concreta do contrato em
cotejo com a prestação cuja exigibilidade o excipiente pretende suspender).
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3 • rEDEFININDo oS CoNTorNoS Do INSTITuTo DA EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS
O estudo conjugado desses dois elementos (sinalagma e causa concreta) per-
mitirá apurar a verdadeira razão de ser desse remédio e, por conseguinte, def‌inir seu
âmbito de incidência (se vale apenas para contratos bilaterais perfeitos, ou se também
se aplica a bilaterais imperfeitos, plurilaterais, obrigações recíprocas derivadas de
sentença judicial; se pode ser invocado apenas para as obrigações principais de um
contrato, ou se, ao invés, o descumprimento de deveres acessórios também pode,
eventualmente, legitimar a exceptio; etc.).
Por f‌im, à boa-fé objetiva está reservado, sobretudo, papel de imposição de
limites (estabelecendo os pontos para além dos quais o emprego do contradireito
neutralizante deixa de ser uma arma legítima de autodefesa para assumir foros de
exercício inadmissível de posição jurídica, na forma das várias f‌iguras parcelares já
de todos conhecidas [v.g., “suppressio”, “surrectio”, “Nemo auditur propriam turpi-
tudinem allegans”, desequilíbrio no exercício jurídico]).
Em suma: o primeiro é o fundamento, o segundo é a medida do cabimento e o
terceiro impõe limites.
Este capítulo será dividido em três partes: cada uma delas destinada a expor
um dos elementos referidos (sinalagma, causa concreta e boa-fé objetiva) e a forma
como eles interagem com o instituto da exceptio non adimpleti contractus.
3.1 SINALAGMA: O FUNDAMENTO DO REMÉDIO. UM CONCEITO EM
EXPANSÃO
3.1.1 A origem do termo
O termo “sinalagma” provém do grego συναλλαγμα, que signif‌ica acordo ou
transação.545
Inicialmente, no direito grego, o conceito abrangia toda convenção da qual se
originavam obrigações, abarcando, portanto, conforme a terminologia atual, tanto
contratos unilaterais como bilaterais.546
Nesse sentido, Aristóteles, na Ética a Nicômaco, utilizou-se do termo sinalagma
(συναλλαγμα) – ordinariamente traduzido como “transação”547 – para fazer referên-
cia à compra e venda e à locação (contratos bilaterais), mas também ao mútuo e ao
depósito (contratos unilaterais).548
545. Cantarella, Eva. Obbligazione [diritto greco]. In: Novissimo Digesto Italiano, v. 11, Torino, 1968, p. 547;
Menezes Cordeiro, António. Tratado de direito civil, v. IX – Direito das obrigações: cumprimento e não-cum-
primento, transmissão, modif‌icação e extinção. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 277.
546. Berger, Adolf. Synallagma. In: Encyclopedic dictionary of roman law. Clark: The Lawbook Exchange Ltd.,
2004.
547. Ver, nesse sentido: Aristóteles. Ética a Nicômaco. Trad. António de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009,
p. 108; Aristotle. The Nicomachean Ethics. Trad. H. Rackham, V, ii, 13, p. 266-267.
548. Embora o depósito, como se sabe, também possa ser bilateral, quando f‌ixada remuneração em favor do
depositário.

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