Considerações sobre alimentos no abandono afetivo e a tutela do idoso sob a ótica civil-constitucional

AutorFlavia Zangerolame
Páginas243-267
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CONSIDERAÇÕES SOBRE ALIMENTOS NO
ABANDONO AFETIVO E A TUTELA DO IDOSO
SOB A ÓTICA CIVIL-CONSTITUCIONAL1
Flavia Zangerolame
Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professora-assistente de Direito Civil na Faculdade de Direito do IBMEC-
RJ. Professora de Direito Civil da EMERJ e da pós-graduação da PUC-Rio.
Pesquisadora do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e Líder do
Grupo de pesquisa CNPQ-CAPES “Tutela das Famílias, Criança e Adolescente:
Estudos na perspectiva Civil-Constitucional”.
Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Carlos Drummond de Andrade.
Sumário: 1. Introdução: a obrigação alimentar nas relações parentais – 2. Aspectos jurídicos
dos alimentos em favor da pessoa idosa – 3. Afetividade, dever de cuidado e os problemas
envolvendo o abandono afetivo e abandono afetivo inverso – 4. Contornos da aplicação da
boa-fé objetiva nas relações familiares e a gura do tu quoque no abandono moral inverso – 5.
Considerações nais.
1. INTRODUÇÃO: A OBRIGAÇÃO ALIMENTAR NAS RELAÇÕES
PARENTAIS
Com o advento de uma Constituição da República fortemente inuenciada
pelo pensamento kantiano e consagradora da primazia dos valores existenciais,
o capítulo VII, ao tratar “Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do
1. Dedico o presente trabalho a Heloísa Helena Barbosa, minha eterna orientadora, pela condução das
ideias desenvolvidas no texto e para Elcinho, com amor. Um agradecimento especial ao Vitor Almeida,
Patrícia Garcia e Pedro Gueiros, por tudo e por tanto.
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Idoso” destaca, logo no dispositivo inaugural, que a família é a base da sociedade,
justicando a alta densidade da tutela funcionalizada à dignidade dos membros
que a compõe, por exercer o papel de instrumento de desenvolvimento da pessoa
humana em todas as suas potencialidades.
Para além das intensas modicações sociais, a estrutura familiar, profun-
damente alterada em sua função, natureza, composição e concepção, abandona
a posição de espaço destinado aos cultos religiosos e passa a ser protegida pelo
Estado como célula pertencente à sociedade civil (não integrante da estrutura
política estatal), reconhecida pelos variados modelos existentes no tecido social,
a partir da regulação estatal.
Estejam ou não previstas expressamente na Constituição, as famílias, iden-
ticadas na solidariedade, um dos princípios constitucionais que fundamenta
a afetividade, assume novos contornos e se despoja, de vez, do individualismo
estruturante do Direito Civil no século anterior, desempenhando o papel de
família-instrumento.
Protegida no plano constitucional, as famílias assumem o espaço seguro
de desenvolvimento das potencialidades da pessoa humana, como a identidade
pessoal dos seus membros, contam, para cumprimento de tal desiderato, com
mecanismos no plano existencial e patrimonial para a consecução desse m últi-
mo, que é assegurar a felicidade dos seus componentes, justicando o tratamento
jurídico especial sob a perspectiva humanista, em especial nos vínculos parentais.
A cláusula geral de tutela da pessoa humana, cuja superioridade valorativa
impõe ao intérprete a compreensão das relações existenciais em franca primazia
sobre as patrimoniais: a parte patrimonial do direito das famílias merece estudo
conformado ao papel funcionalizado que exerce em relação à tutela da pessoa hu-
mana baseado na aectio. E é a partir dessa perspectiva que se agura a urgência do
tratamento de questões envolvendo a obrigação alimentar nas relações parentais.
Destinado a “fazer viver”, prover e conservar a vida daqueles que, por si, não
podem se autossustentar, o instituto dos alimentos é fundamental para a própria
continuidade da humanidade, gregária por natureza e que necessita da manutenção
da vida, tanto intra como extrauterina (no caso de alimentos gravídicos, regulados
pela Lei 11.804/2018), voltado para o suprimento das carências da pessoa humana
em cada etapa da vida, que é vulnerável desde o início de sua existência e, depois,
na velhice.
Por essa razão, os alimentos, inseridos no capítulo integrante das situações
subjetivas patrimoniais do Direito das Famílias – o que não conduz à marginali-
zação do âmbito de proteção normativa – se traduz em imposição legal outorgada
aos parentes, reciprocamente considerados, para satisfação das necessidades
primordiais ou vitais da pessoa humana. No caso das relações paterno-liais,
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