A guarda de fato de idosos

AutorNelson Rosenvald
Páginas149-164
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A GUARDA DE FATO DE IDOSOS
Nelson Rosenvald
Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade Roma Tre (IT). Pós-Doutor em
Direito Societário pela Universidade de Coimbra (PO). Doutor e Mestre em
Direito Civil pela PUC/SP. Professor Visitante na Universidade de Oxford (UK).
Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.
Sumário: 1. Introdução – 2. Compreendendo a guarda de fato.
1. INTRODUÇÃO
Na célebre obra de Balzac, a Comédia Humana, encontra-se o romance Père
Goriot. É a história de um próspero empresário que doou todo o seu patrimônio a
duas lhas, conando receber delas carinho e apoio. Todavia, elas se casam com
dois nobres e abandonam o pai. Com o passar do tempo, ele vai decaindo, chegando
à extrema miséria. Rastignac, um jovem que vive na mesma pensão que Goriot,
procura se relacionar com as lhas deste, transmitindo-lhes reiterados apelos do
pai para que o visitem, até o momento da iminência de sua morte. Nem assim
elas o visitam, sequer comparecem ao enterro. Enviam apenas as suas carruagens
vazias para acompanhar o séquito.1
O direito privado despertou de uma longa letargia em relação ao tratamento
jurídico que se deva conceder à pessoa idosa. Desafortunadamente, a civilística
tradicional desumanizava o idoso pela lógica patrimonial da sua orgânica limi-
tação para produzir patrimônio. Essa cultura de segregação perante àqueles que
representassem um “estorvo” às relações econômicas, frequentemente impelia a
família a neutralizar o idoso pela via da interdição e do isolamento. Mediante o
alter ego de um curador – normalmente um lho –, administrava-se o patrimônio
daquele que alcançava a idade provecta. Simultaneamente o idoso era excluído
da convivência familiar por meio da internação em “asilos”, verdadeiros depó-
sitos humanos. Nada obstante, se a pessoa idosa não possui qualquer patologia
que progressivamente retire o seu discernimento, jamais o fato isolado da idade
1. Obviamente inspirada no Rei Lear, a narrativa demonstra a que ponto chega o amor paterno e o egoísmo
humano (no caso, das lhas). Ao contrário de Shakesperare, Balzac optou por acentuar a maldade e
ignorar a existência afetiva e redentora da lha Cordélia.
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avançada poderá impactar na formulação de normas ou de políticas públicas que
suprimam a sua autonomia.
Em sede de direito à convivência, preferimos a clássica conceituação aristoté-
lica de justiça como “dar as pessoas o que elas merecem”. A lei não poderá ser neutra
no que tange à qualidade de vida de crianças e adolescentes, cuja autonomia é um
porvir, nem tampouco na qualidade de vida de idosos, cuja autonomia paulati-
namente se esvaí. O ordenamento deverá se manifestar no tocante à constituição
da subjetividade de nossos lhos e no cuidado com a preservação da estrutura
psicofísica dos mais velhos e fragilizados, pois uma sociedade justa deve induzir
os cidadãos a comportamentos virtuosos. Essa é a base de uma responsabilidade
parental recíproca. Assim, o direito fundamental ao cuidado e ao amparo consiste
não apenas em forte orientação ética, como em um compromisso constitucional
com um dever de virtuosidade lial, promovendo o valor da importância da pre-
sença dos lhos adultos para a armação da dignidade dos pais no outono de suas
vidas. A condição humana requer a pluralidade, seja em sua alvorada como em
seus estertores. A entidade familiar se assume como solidária não apenas quando
pais edicam a autonomia de seus lhos, mas simetricamente quando os lhos
preservam a autodeterminação dos pais que se tornam velhos. O cuidado é um
dever imaterial imprescindível à estruturação psíquica de crianças, adolescentes
e idosos.
O ponto de partida para o debate se encontra em dois dispositivos da Cons-
tituição Federal. A teor do art. 229: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar
os lhos menores, e os lhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na
velhice, carência ou enfermidade”. Conforme o art. 230: “A família, a sociedade e o
Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na
comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito
à vida”. Priorizar a dignidade do idoso, seja em sua dimensão negativa (respeito),
como em sua vertente positiva (autonomia) é igualmente um dever da família, como
se evidencia da letra dos mencionados artigos 229 e 230 da Constituição Federal.
Com o objetivo de dar ecácia a essas normas, foi promulgada a Lei 10.741/2003,
instituindo o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas
com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. Naquilo que fere diretamente ao
tema, a referida lei cuida da dignidade do idoso de maneira qualitativamente diversa
em função de sua condição de sujeito vulnerável, que resulta, tanto de sua natural
assimetria em um contexto individual de declínio das potencialidades psicofísicas,
como também de sua diculdade de inserção em um ambiente social culturalmente
marcado por práticas discriminatórias.
Com efeito, o idoso não é individualmente incapaz, porém compõe um grupo
vulnerável. A incapacidade é um estado da pessoa que presume a sua vulnerabili-
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