A construção dos 'bens comuns': é possível superar a lógica proprietária?

AutorGustavo Tepedino e Danielle Tavares Peçanha
Ocupação do AutorProfessor Titular de Direito Civil e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sócio fundador do escritório Gustavo Tepedino Advogados. / Mestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogada.
Páginas341-358
A CONSTRUÇÃO DOS “BENS COMUNS”:
É POSSÍVEL SUPERAR A LÓGICA PROPRIETÁRIA?
Gustavo Tepedino
Professor Titular de Direito Civil e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sócio fundador do escritório Gustavo Tepedino
Advogados.
Danielle Tavares Peçanha
Mestranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito Civil da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro (UERJ). Advogada.
Sumário: 1. Rumo à efetividade dos direitos fundamentais sob a perspectiva funcional dos bens
jurídicos – 2. A “revolução dos bens comuns” e o acesso aos bens independentemente do sistema de
titularidades – 3. Da “tragédia dos commons à comprovação da viabilidade de gestão comum dos
bens: o paradigma do acesso a partir da prevalência das situações existenciais – 4. Panorama atual:
manifestações dos bens comuns na jurisprudência – 5. Notas conclusivas.
1. RUMO À EFETIVIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOB A
PERSPECTIVA FUNCIONAL DOS BENS JURÍDICOS
O itinerário brasileiro rumo à efetividade dos direitos fundamentais associa-se à
promulgação da Constituição de 1988 e às conquistas sociais promovidas na sua estei-
ra. O reconhecimento da força normativa do Texto constitucional permite preservar a
unidade do ordenamento jurídico, complexo, heterogêneo e composto por pluralidade
de fontes normativas. Em tal perspectiva, tem-se armado, cada vez mais, em doutrina
e em jurisprudência, a percepção de que as normas constitucionais não se restringem a
estabelecer limites ao legislador ordinário e a denir as balizas do direito público, mas
incidem direta e imediatamente nas relações de direito privado.1
A tutela da dignidade da pessoa humana, prevista como fundamento da República
no art. 1º, III, da CR, estabelece a prevalência das relações existenciais sobre as patrimo-
1. Conforme observou-se em outra sede, “a adjetivação atribuída ao direito civil, que se diz constitucionalizado,
socializado, despatrimonializado, se por um lado quer demonstrar, apenas e tão-somente, a necessidade de sua
inserção no tecido normativo constitucional e na ordem pública sistematicamente considerada, preservando,
evidentemente, a sua autonomia dogmática e conceitual, por outro lado poderia parecer desnecessária e até
errônea. (...) Trata-se, em uma palavra, de estabelecer novos parâmetros para a denição de ordem pública,
relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não
patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os
direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada e as
situações jurídicas patrimoniais”. (TEPEDINO, Gustavo. Premissas Metodológicas para a Constitucionalização
do Direito Civil. Temas de Direito Civil. 4. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 22).
EBOOK DIREITO E TRANSFORMACAO SOCIAL.indb 341EBOOK DIREITO E TRANSFORMACAO SOCIAL.indb 341 27/04/2023 11:28:5327/04/2023 11:28:53
GUSTAVO TEPEDINO E DANIELLE TAVARES PEÇANHA
342
niais,2 essas assim transformadas em instrumento de promoção dos valores da pessoa
humana, de tal modo a funcionalizar as relações patrimoniais às existenciais.
No plano interpretativo, revigora-se gradualmente a importância da função
social dos bens, amparada pelos princípios fundamentais do Texto Constitucional, de
forma a permitir que o conteúdo de institutos como a propriedade e a posse promovam
valores existenciais.3 Dessa maneira, a propriedade privada, inserida como garantia
fundamental pela Constituição da República, transforma-se radicalmente. Trata-se de
alteração qualitativa e não meramente quantitativa,4 na media em que incorpora, no
conteúdo do domínio, valores existenciais, que limitam, moldam e conformam a estru-
tura do direito subjetivo proprietário.5 Nessa mesma esteira, alude-se à função social6
como razão e causa da atribuição dos poderes do proprietário,7 o fator de legitimidade
do exercício da autonomia do seu titular.8
À instrumentalização da propriedade à sua função social alia-se a concepção da
posse como direito autônomo, isto é, o “exercício autônomo das faculdades inerentes
ao domínio, mas independentemente do domínio, até mesmo contra o domínio.9 Tra -
dicionalmente associada ao poder de fato sobre o bem, a avaliação da tutela possessória
se vincula à promoção de interesses merecedores de tutela por meio do aproveitamento
conferido ao bem pelo possuidor. A dinamicidade da proteção possessória permite,
2. Sobre as situações existenciais em comparação às patrimoniais, ensina Pietro Perlingieri: “No ordenamento dito
privatístico encontram espaço sejam as situações patrimoniais e entre essas a propriedade, o crédito, a empresa,
a iniciativa econômica privada; sejam aquelas não patrimoniais (os chamados direitos da personalidade) às
quais cabe, na hierarquia das situações subjetivas e dos valores, um papel primário” (PERLINGIERI, Pietro.
Pers do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 106).
3. CHAMOUN, Ebert. Direito Civil: Aulas do 4º Ano Proferidas na Faculdade de Direito da Universidade do
Distrito Federal, Rio de Janeiro: Aurora, 1955.
4. Para uma crítica à percepção da propriedade como direito que, embora com poderes reduzidos pelo legislador
intervencionista, permaneceria intacto em sua essência voluntarista, como se fosse uma “mini propriedade”, v.,
dentre outros, TIZZANO, Antonio. Crisi dello stato social e e contenuto minimo della proprietà. Atti del Convegno,
Camerino, 27-28 maggio 1982, Napoli, 1983, p. 132.
5. O núcleo de poderes da propriedade, portanto, não pode ser analisado “se non construendo un una endiadi le
situazioni del proprietario e dei terzi” (CANTELMO, Vincenzo. Proprietà e crisi dello stato sociale. Democrazia
e diritto, 1983, p. 119).
6. Em valorosa lição, arma-se: “a função social da propriedade tornou-se uma exigência da vida em sociedade,
pois da mesma forma que é importante a defesa dos direitos individuais dos titulares da propriedade, é funda-
mental que se exija do proprietário a observância das potencialidades econômicas e sociais dos bens que deverão
ser revertidos em benefício da sociedade” (MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Direito das Coisas. 5. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris Editora, 2011, p. 86).
7. PERLINGIERI, Pietro. Crisi dello stato sociale e sul contenuto minimo della proprietà, – atti del Convegno Ca-
merin – 27-28 maggio 1982. Napoli: E. S. I. Napoli, 1982, p. 449.
8. A função social torna-se assim “a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado
sujeito”(PERLINGIERI, Pietro. Pers do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 226). Nessa perspectiva,
o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já armou que “a evolução do direito não permite mais conceber a proteção
do direito à propriedade e posse no interesse exclusivo do particular, uma vez que os princípios da dignidade
humana e da função social esperam proteção mais efetiva” (STJ, 4ª T., REsp 1.302.736/MG, Rel. Min. Luis Felipe
Salomão, julg. 23.05.2016).
9. CHAMOUN, Ebert. Direito Civil: Aulas do 4º Ano Proferidas na Faculdade de Direito da Universidade do
Distrito Federal, Rio de Janeiro: Aurora, 1955. V., ainda, CHAMOUN, Ebert. Exposição de motivos do esboço
do anteprojeto do Código Civil – Direito das Coisas. Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC, v. 46, 2011, p.
220-221.
EBOOK DIREITO E TRANSFORMACAO SOCIAL.indb 342EBOOK DIREITO E TRANSFORMACAO SOCIAL.indb 342 27/04/2023 11:28:5327/04/2023 11:28:53

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT