Posse e propriedade: um conflito infindável. A função social como parâmetro de proteção do vínculo homem-solo

AutorMarcos Alcino de Azevedo Torres
Ocupação do AutorDoutor e Mestre em Direito Civil pela Uerj. Professor coordenador de Direito das Obrigações da Emerj. Professor-Associado de Direito Civil da Uerj. Professor de Direito Civil da graduação e do programa de Pós Graduação da Uerj. Desembargador do TJRJ.
Páginas233-252
POSSE E PROPRIEDADE:
UM CONFLITO INFINDÁVEL.
A FUNÇÃO SOCIAL COMO PARÂMETRO
DE PROTEÇÃO DO VÍNCULO HOMEM-SOLO
Marcos Alcino de Azevedo Torres
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Uerj. Professor coordenador de Direito das
Obrigações da Emerj. Professor-Associado de Direito Civil da Uerj. Professor de Direito
Civil da graduação e do programa de Pós Graduação da Uerj. Desembargador do TJRJ.
Sumário: 1. Introdução – 2. Reexões históricas a respeito da questão posse x propriedade em terras
brasileiras – 3. A funcionalização da propriedade como elemento de sustentação de sua legitimidade – 4.
A funcionalização da posse como elemento de afastamento da propriedade – 5. A proteção da posse
pelo direito como elemento de transformação social – 6. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Honrado com o convite para participar desta obra coletiva, que tem como objetivo
transmitir ao público leitor como o direito pode ser utilizado como instrumento de trans-
formação social, me foi atribuído escrever alguma coisa sobre a função social da posse.
Tudo no mundo e na vida tem uma função a cumprir e essa função, para aqueles
que acreditam na tese criacionista, deve ter como ponto principal o homem como
pessoa, habitante deste mundo por um período de tempo chamado de vida e que tem
necessidades de diversas ordens. Excluindo as necessidades de caráter emocional, as
de caráter material são as que levam o homem a buscar o solo e suas benesses como
possibilidade de vida.
Ainda que alguns megaempresários já tenham começado a empreender viagens
de caráter privado ao espaço aéreo, o planeta terra é o que supre todas as necessidades
do homem, algumas de carácter duradouro, como um espaço para habitar, seja ele qual
for, como as de caráter temporário como vestimenta, alimentação, podendo ser acres-
centadas aquelas relativas ao entretenimento, situação que envolve ricos e pobres – estes
com suas atividades criativas para compensar a insuciência nanceira.
Neste ensaio focar-se-á o uso da terra como instrumento de satisfação da neces-
sidade de moradia, seja através da propriedade seja através da posse e nessa temática
o “direito” tomando a expressão na visão limitada do direito positivo vigente e sua in-
terpretação, serve constantemente como instrumento de injustiça em contraponto ao
direito como instrumento de transformação social, ao permitir/possibilitar remoções,
despejos, desocupações com objetivo por vezes de proteção de um direito cujo titular não
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o exerce de modo a ser merecedor de tutela do sistema ou mesma a guisa de construção
de empreendimentos de interesse coletivo como se dera na cidade do Rio de Janeiro, por
ocasião das Olimpíadas e Copa do Mundo, deixando um legado de “elefantes brancos”
como são chamados estas construções que passado o evento que justicou sua construção
cam relegados ao abandono.
Nesse confronto posse x propriedade, não se deve proteger uma em razão da tese
historicamente aceita de que é apenas a aparência da outra1 e então possivelmente aquele
que a exerce o faz estribado num direito decorrente da segunda. Deve-se protege-la em
razão da funcionalidade dada a coisa pelo possuidor. Esse deve ser o olhar do interprete
da situação fática. No dizer de Menezes Cordeiro, uma dogmática atual “retirará, da
posse e do patrimônio histórico-cultural que ele representa, os valores mais profundos
de Humanidade”.2
Todos os institutos jurídicos experimentam variações e adaptações de cada momento histórico em
que se vive e conforme se alterna a cupidez ou necessidade do homem por certos tipos de coisas.
Das reexões sobre a pessoa humana, sua existência, gênero, das suas relações econômicas e até
as relações familiares tudo mudou nos últimos 40 anos em especial a partir da CF de 1988, mas o
tratamento da posse e da propriedade, no que diz respeito ao confronto entre elas, praticamente
manteve-se estável. Aliás já chamava atenção o romanista Emilio Albertário, de que não se mostra
razoável o fato de que os institutos de direito privado sofram alteração e que somente a posse “ si
conservasse per tanti secoli immutato”.3 Mas mesmo assim deve ser estar atento a observação de que
as “ideias novas tendem a não substituir as anteriores: antes se somam a elas”, destacando que em
matéria de posse o conjunto não é sempre coerente: “é lho duma complexidade histórico-cultural e
não pena dum legislador esclarecido”.4
A importante reexão surgida no século passado mas que entre nós só cou mais
perceptível a partir de estudos desenvolvidos após a CF de 1988 foi a descaracterização
da propriedade absolutista da era oitocentista, passando a ser considerada uma relação
jurídica complexa, na qual o titular também tem deveres e não só direitos.
Diz-se acima que a questão posse x propriedade se manteve praticamente estável
considerando que as mudanças encontradas são pontuais e decorrem do esforço de
intrépidos autores que buscam demonstrar a necessidade de uma releitura focada na
funcionalidade dos referidos institutos afastando-se da leitura estática fundada na es-
trutura dos institutos em exame.
Penso que não pode existir dúvida de que a posse historicamente precede a pro-
priedade, considerando que a posse é um dado da realidade e decorre da necessidade
de apossamento do solo para habitação, alimentação, ainda que de forma temporária
1. Na doutrina portuguesa A. Santos Justos arma: “A posse cumpre fundamentalmente duas funções: protege o
possuidor enquanto não houver certeza sobre o verdadeiro titular do direito real a cujo exercício corresponde,
concedendo-lhe a necessária tutela; e constitui um caminho de acesso a esse direito real”. Direitos Reais. 5. ed.
Coimbra Editora, 2017, p. 158.
2. CORDEIRO. Antonio Menezes. A posse: perspectivas dogmáticas actuais. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2000, p.
13.
3. ALBERTARIO, Emilio. Il Possesso Romano. Rivista di Diritto Privato, l932, p. 6.
4. CORDEIRO. Antonio Menezes. Op. cit., p. 10. Destaques no original.
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