O Crime de Gilberto Amado

AutorPedro Paulo Filho
Ocupação do AutorFormado pela Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, foi o 1º presidente da 84ª Subsecção da Ordem dos Advogados do Brasil
Páginas198-218

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Realizou-se no Rio de Janeiro, em 19 de junho de 1915, uma tertúlia literária no prédio do "Jornal do Comércio", com a presença

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de expressivo número de homens de letras da época. O poeta Aníbal Teófilo foi um dos mais aplaudidos, mas ali também se achavam Gilberto Amado, sua esposa, uma cunhada, um irmão e dois amigos, Paulo Hasslocker e Abner Mourão.

O encontro, que tudo possuía para terminar bem, acabou em tragédia,pois o escritor Gilberto Amado, no saguão do edifício, matou o poeta. Preso, Gilberto Amado contou ao delegado de polícia que Aníbal Teófilo era "seu inimigo rancoroso, que de há muito o vinha provocando com palavras e gestos ofensivos.

Explicou que, certa feita, na redação da revista "Careta", estendera-lhe a mão, mas o poeta recusou o cumprimento, dizendo: ‘Saia, senão lhe cuspo na cara’.

Cuspiu no solo, dizendo ‘Você não se mete’. Esse fato teria sido presenciado por Leal de Souza e Olavo Bilac."

Noutra vez, concorrendo para a Academia Brasileira de Letras, mas perdendo para Antônio Austregésilo, Aníbal lhe teria dito:

"A Academia não quis dentro dela covardes e bandidos".

No auto de prisão em flagrante, o escritor de "Grão de Areia" disse que, no dia dos fatos, Aníbal o teria empurrado violentamente, chegando a quebrar o vidro do seu relógio. Antes de descer o elevador, sofreu nova provocação de seu agressor, na presença de todos os seus acompanhantes.

Respondendo a um cumprimento vindo da porta, sem identificar o autor da saudação, pois era míope, ouviu de Aníbal Teófilo:

"Não foi ao senhor que cumprimentei, foi a uma senhora, a você não cumprimento".

Sua esposa, sua cunhada e Alberto de Oliveira exortaram-no a que não desse atenção maior ao fato, mas, seu amigo Paulo Hasslocker não gostou da impassividade e lhe disse:

"Seu Gilberto, um homem não suporta isso, meta a bengala neste bandido".

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Respondeu-lhe Gilberto:

Paulo, estou acompanhado de minha família; de resto, não brigarei nunca com esse homem; devo desprezá-lo sempre, que lhe fiz eu?

No elevador, tornou a dizer a Paulo:

"Nunca tomarei atitude contra inimigo dessa ordem; faça você de mim o juízo que quiser..."

Aníbal descera, propositadamente, sozinho, para provocá-lo, pois já lhe dissera na "Galeria Cruzeiro" que "iria à Câmara quebrar-lhe a cara, a fim de humilhá-lo mais."

Instantaneamente, a vista se lhe turvou e Paulo Hasslocker, ao seu lado, insistia:

"Mas é preciso meter a bengala neste sujeito, saiamos". Gilberto, aflito e fatigado, procurou sair pela porta ao lado, mas sentiu que o poeta procurou tolhê-lo, enquanto a aglomeração de pessoas impedia-o de sair daquele local abafado. Logo, viu Paulo Hasslocker recuar de um golpe desferido por Aníbal Teófilo e daí em diante não se lembrou de mais nada, senão quando se viu na repartição policial abraçado pelos amigos que lhe foram levar sua solidariedade.

Evandro Lins e Silva escreveu:

"A amnésia aí estava e podia ser verdadeira. Nesses instantes de paroxismo emocional, a violência irrompe como num raptus, em contradição com os antecedentes e a vida do agente. Há uma desintegração da personalidade nesses crimes de ímpeto, motivados pela defesa da própria dignidade pessoal. Uma verdadeira coerção social pressiona o indivíduo. Ninguém é obrigado a ser poltrão e a reação se dá, por vezes, de forma exagerada. Se não existe uma justificativa legal para o crime, pode haver uma escusa ou uma atenuação.

Estava-se na vigência do Código Penal de 1890 e a perturbação dos sentidos e da inteligência era contemplada como dirimente da responsabilidade penal.

Evaristo de Moraes, o advogado não formado, o rábula, logo foi chamado a defender o lente de Direito Penal da Faculdade de Direito

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do Recife, que foi a profissão que Gilberto Amado deu na sua qualificação perante o delegado Frutuoso Muniz Barreto de Aragão.

O promotor público André de Faria Pereira denunciou o homicida, excluindo da peça inaugural Paulo Hasslocker, por entender que não ocorrera cumplicidade ou co-autoria.

A mãe da vítima compareceu à ação penal, como auxiliar de acusação, representada pelo advogado Esmeraldino Bandeira, que, mais tarde, substabeleceu a procuração a Augusto Pinto Lima e Cirilo Júnior, que funcionaram no Júri.

Gilberto Amado foi submetido, pela primeira vez, a julgamento em 28 de junho de 1916, sob a presidência do Juiz Manoel da Costa Ribeiro. Atuou como promotor público o renomado penalista Galdino Siqueira e na defesa funcionou Evaristo de Moraes, auxiliado por Aníbal Freire, Manoel Villaboim e Gileno Amado.

Contou Evandro de Lins e Silva que "no julgamento de Gilberto Amado o embate ia ser duro.

A tranquilidade e a segurança de Galdino Siqueira tinham o condimento da fama e do talento dos jovens advogados Pinto Lima e Cirilo Júnior.

Evaristo de Moraes podia confiar na ajuda eficiente da cultura de Aníbal Freire e na habilidade de Manoel Villaboim. A presença de Gileno Amado dava um toque sentimental à tribuna da defesa.

O debate prenunciava-se como um regalo espiritual para os espectadores. E foi.

Os adversários estavam acirrados e isso já se percebia na formação do conselho de sentença. Acusação e defesa esgotaram as recusas a que tinham direito."

O promotor público Galdino Siqueira iniciou uma implacável e fria acusação.

"Vai o Tribunal julgar um dos crimes que mais emocionaram a nossa sociedade, em face do modo pelo qual foi praticado, colhendo a vítima de surpresa, de modo a não poder repelir a ofensa, em face

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do local e da ocasião onde se achavam reunidas pessoas de nossa elite, assistindo a uma festa literária, e em face ainda do dano material causado e principalmente, pela qualidade e condição do acusado, deputado federal por Sergipe. E foi por este último aspecto que o crime mais empolgou a opinião pública. Estarrecida com o procedimento de um membro do Congresso Nacional, possuidor de um título universitário, professor de uma ilustre faculdade e homem de cultura intelectual demonstrada por obras e escritos publicados. A um homem com essas qualidades e dessa condição estava adstrito o dever de respeitar a vida e a integridade corporal de seu semelhante. Se a sociedade confere direitos, impõe deveres, cujo cumprimento se torna mais imperioso para quem, como o acusado, é representante do povo. Há uma grande expectativa em torno do vosso julgamento, que deve ser desassombrado e sem tibiezas. É preciso que fique bem acentuado e que se infirme qualquer posição dos deserdados da fortuna de que a justiça só é rigorosa para eles, ao passo que para os grandes é toda benevolência.

Não é difícil desfazer a versão do acusado de que agiu impelido, irresistivelmente, por intensa paixão, longamente provocada e alimentada pela vítima de insultos, desfeitas e provocações, que atingiram fundo sua dignidade de homem. As ofensas não estão provadas, antes, foram, desmentidas categoricamente pelas testemunhas por ele indicadas, especialmente quanto ao fato ocorrido na redação da "Careta". Diz o acusado ter ali cumprimentado a vítima, mas esta não só deixou de corresponder ao cumprimento, como mandou sair, ‘senão lhe cuspiria na cara’, ameaça a que se seguiu o gesto escarnecedor de cuspir no solo, e ainda acrescentando: ‘Você comigo não se mete’.

Jorge Schmidt e Leal de Souza, proprietário e diretor daquela revista, presentes na ocasião contestaram formalmente que o fato tenha ocorrido por essa forma, e sim que Aníbal Téofilo, que se achava lendo uma revista, junto de uma mesa, apenas se limitou a levantar os olhos, a fitá-los no réu e a baixá-los à revista, sem pronunciar uma só palavra. Leal de Souza acrescenta que a vítima, solidária com Coelho Neto e

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Alcides Maia, que tinham rompido relações com o réu, acusando-o de graves deslealdades, resolveu afastar-se de Gilberto Amado, fazendo chegar ao seu conhecimento essa resolução. Também ficou desmentida a afirmação do réu de que teria recebido de Aníbal Teófilo, logo depois de terminada a sessão literária, um forte empurrão, que quebrou o vidro do relógio trazido na algibeira do colete. Nenhuma testemunha idônea se refere a esse fato, como o exame do relógio não revelou a existência de vidro ou fragmentos deste, nem vestígio de violência ou de pressão sobre a caixa principal desse relógio de duas tampas.

Alega ainda que dispondo-se a descer pelo elevador, juntamente com pessoas da família e dos amigos, correspondeu a um cumprimento que lhe pareceu ser dirigido da porta, fato que não pode distinguir bem, por ser míope e estar sem o pince-nez, ouvindo, então, as seguintes palavras: ‘Não foi ao senhor que cumprimentei, foi a uma senhora; a você não cumprimento’.

Muito embora a rudeza da agressão, muito embora Paulo Hassloker o instigasse a ‘meter a bengala naquele bandido’, conteve-se e não reagiu, ponderando que ‘estava acompanhado da família’ e que não ‘brigaria nunca com esse homem, que devia desprezar sempre’, resolução que ainda patenteou, ao descer do elevador, dizendo a Hassloker: ‘Nunca tomaria atitude...

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