Déficit democrátio na administração dos tribunais

AutorHugo Cavalcanti Melo Filho
Páginas71-82

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4.1. Administração oligárquica dos tribunais

A descrição da estrutura administrativa do sistema judicial brasileiro, a evidente resistência oposta, reiteradamente, às tentativas de alteração, a explicação da origem autoritária da Lei Orgânica da Magistratura Nacional, a omissão do Supremo Tribunal Federal em encaminhar projeto de lei que trata do Estatuto da Magistratura (como prevê a Constituição) e, principalmente, a comparação com estruturas semelhantes, como é o caso do Ministério Público, autorizam a afirmação de que a administração dos Tribunais brasileiros é caracterizada por um grupo de poder restrito, marcado por fortes vínculos entre seus membros e pelo controle na admissão de novos membros, configurando um sistema oligárquico.

Para definir oligarquia, Bobbio et al. (1995:834-838) partem da distinção aristotélica entre formas puras e formas viciadas de constituição, segundo a qual a oligarquia, como governo dos ricos, é a forma viciada da aristocracia, que é o governo dos melhores. Prosseguem afirmando que, “geralmente, na linguagem política grega, o termo oligarquia é usado com um significado que envolve um juízo de valor negativo” que “perdurou em toda a tradição do pensamento político posterior”, do que é exemplo Bodin, para quem oligarquia corresponderia à versão despótica e facciosa da aristocracia. Atualmente, o termo oligarquia não designa uma forma específica de governo, senão se limita a indicar que o poder “está nas mãos de um restrito grupo de pessoas propensamente fechado, ligadas entre si por vínculos de sangue, de interesse ou outros, e que gozam de privilégios particulares [...]”.

Ainda segundo os referidos autores (ibidem: m.p.):

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O termo oligarquia é aplicado analogicamente a relações de poder diversas das relações políticas, com o fito de designar o mesmo fenômeno do domínio de um grupo restrito e fechado em organizações outras que não o Estado. [...] Segundo a formulação aristotélica, a oligarquia é um mau governo, não porque seja governo de poucos (a aristocracia também o é), mas porque governa mal (obedecendo aos interesses dos governantes e não do povo); segundo o uso que fez do mesmo termo o autor Shils94, a oligarquia é um mau governo porque é um governo de poucos, isto é, um governo sem base popular ativa.

A administração dos Tribunais não configura, necessariamente, o governo dos melhores. Considerados os critérios de escolha já examinados, ocupam os cargos de direção os integrantes da Corte mais antigos.

Não há nenhum tipo de questionamento acerca da vocação ou da capaci-dade administrativa desses magistrados, que saem do processo eleitoral como dirigentes “já de ponto em branco, completos e acabados, como Minerva da cabeça de Júpiter”95.

Se forem os mais antigos, serão os dirigentes. O resultado, muitas vezes, é catastrófico. Não é incomum que excelentes juízes sejam péssimos administradores. Ocasionalmente, os eleitores, os pares dos escolhidos, podem antever o desastre, mas não há espaço para escolha e nada pode ser feito a não ser aguardar dois anos para que os próximos dirigentes tentem consertar o desmantelo administrativo provocado pela inaptidão dos eleitos. Não se pode falar, então, em administração aristocrática.

O que há é o governo de poucos que, muitas vezes, governam mal, e mesmo quando governam bem não têm necessariamente o apoio dos administrados (juízes de primeira instância) e, ainda que o tenham, não foram por eles escolhidos (déficit de legitimação). Opera-se o domínio de um grupo restrito e fechado infenso às opiniões e expectativas dos que dele não participam. O modelo perfeito e acabado de uma oligarquia.

Outro aspecto de grande relevância na estrutura hierarquizada presente nos tribunais brasileiros é a não participação dos juízes de primeira instância na construção das normas internas de funcionamento.

Como nos lembra Hedley Bull (2002:67), “em qualquer sociedade a ordem é mantida não só pelo senso de interesses comuns de criar ordem ou em evitar a desordem, mas por regras que explicitam quais os tipos de conduta compatíveis”. No caso dos Tribunais, somam-se às normas constitucionais e

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legais as disposições do seu Regimento Interno. O Regimento é a regra a ser seguida, nos limites da jurisdição da Corte.

Ainda Bull (idem), trazendo à baila o ponto de vista marxista, registra que “as regras servem não como instrumento dos interesses comuns dos membros de uma sociedade, mas dos interesses especiais dos seus membros dominantes”. Assim como em qualquer sociedade, a influência exercida pelos membros da magistratura no processo de formulação de tais regras, do Regimento Interno do Tribunal ao qual se vinculam, é sempre desigual. Como resultado, também esse sistema de regras servirá aos interesses dos elementos dominantes, no caso, os membros da Corte, mais adequadamente do que aos interesses dos outros membros, os juízes de primeira instância. Por exemplo, frequentemente, opera-se a divisão não isonômica de recursos humanos e materiais, em regra escassos, entre as instâncias. “Os interesses especiais dos elementos dominantes de uma sociedade estão refletidos no modo com essas regras são definidas” (idem). No caso dos Regimentos Internos, a participação dos juízes de primeira instância é nula ou ínfima96.

Não se pode negar razão a Dallari (1996:147): não é democrática uma instituição cujos dirigentes, pelo modo como são escolhidos e por seu relacionamento com os níveis inferiores da hierarquia administrativa, comportam-se como aristocratas privilegiados. Isso tem aplicação ao Poder Judiciário, cujas cúpulas dirigentes são escolhidas apenas pelos membros dos órgãos de nível superior. Não é dada qualquer oportunidade para que os integrantes dos níveis inferiores, muito mais numerosos e igualmente integrantes do Judiciário, possam manifestar-se sobre a escolha dos dirigentes ou sobre outros assuntos que interessam a todos.

Cumpre salientar, ainda que, diferentemente do que ocorre nas demo-cracias centrais, em que defeitos na estrutura judiciária são compensados por elementos de outra ordem, permitindo a manutenção do Estado democrático, nos países periféricos, nos quais os fatores democratizantes são muito mais escassos, os fenômenos negativos observáveis em qualquer democracia se revelam de maneira mais radical.

Nessa estrutura, como obtempera Prillaman (2000:16), a forma degenerada de um judiciário independente é um sistema de corte politizado no qual as

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decisões judiciais estão sujeitas a fortes pressões externas ou mesmo controle, que constitui, segundo o autor citado, o defeito estrutural mais comum nas regiões em desenvolvimento como a América Latina97.

Zaffaroni (1995:32) menciona, como exemplo, a conjunturalização da produção normativa, em razão da qual o protagonismo parlamentar agrava as lacunas e as contradições legislativas. Segundo o autor citado, esse fenômeno somente poderá ser neutralizado pela presença judicial que se torna, assim, imprescindível.

A falta de um judiciário adequado para esta tarefa é suscetível de provocar uma grave insegurança jurídica, com o consequente perigo à democracia. Não nos esqueçamos de que enquanto nos países centrais se limita a lamentar o fenômeno, nos nossos países, costuma-se com isso instrumentalizar os inimigos da democracia.

A construção de um Judiciário efetivamente democrático em tais países, como são os da América Latina, impõe-se como necessidade vital, portanto. O que se observa, todavia, é exatamente o contrário: o Judiciário, nesses Estados, se constitui de forma não democrática, seja pelo sistema de escolha de seus membros98, seja pelo modo como os tribunais são administrados e os magistrados governados.

4.2. Administração oligárquica e mitigação da independência judicial

Para além do isolamento social nefasto à contribuição do Judiciário à democratização do Estado e da sociedade, a administração dos Tribunais por um pequeno grupo, escolhido sem a participação da esmagadora maioria dos administrados, e a desigualdade que ela engendra, termina por...

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