Danos morais em família? Conjugalidade, parentalidade e responsabilidade civil

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas423-455
Danos morais em família?
Conjugalidade, parentalidade
e responsabilidade civil*
Famille. Cette réalité dite
privée d’origine publique
Pierre Bourdieu
1. A responsabilidade civil nas relações familiares: os
termos do problema. 2. Família e responsabilidade civil
no início do século XXI. 3. O conceito de dano moral
como lesão à dignidade humana. 4. A paradigmática
hitese do rompimento do noivado. 5. A violão dos
deveres conjugais e as suas conseqüências jurídicas. 6.
As relações parentais e o dano à integridade psicofísica
da criança. 7. Conclusões.
* Publicado originalmente sob o título Danos morais e relações de família.
Afeto, Ética, Família e o Novo Código Civil Brasileiro — Anais do IV Congresso
Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 397-416.
Republicado com alterações em Revista Forense, n. 386, cit., p. 183-201; e ainda
em: T. da Silva PEREIRA; e Rodrigo da Cunha PEREIRA (Coords.). A ética da
convivência familiar, cit., p. 171-201.
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1. A responsabilidade civil nas relações familiares: os termos do
problema
Contemporaneamente, quando pensamos na família, pensamos
numa relação, como demonstram as pesquisas sociológicas, que
ninguém deseja ou da qual não se pode abrir mão; uma vivência,
um espaço afetivo que todos — velhos, adultos e crianças — aspi-
ram possuir e manter.1 Do ponto de vista da historiografia política,
ultrapassada a fase radical do socialismo utópico e a da revolta
feminista,2 a destruição da família somente é sustentada por algu-
mas minorias anárquicas.3
Não se fala mais em crise ou em morte da família,4 expressões
relativamente comuns até trinta anos atrás. A idéia de família ex-
perimenta, por assim dizer, um momento de esplendor, tendo-se
tornado aspiração comum de vida, com o desejo generalizado de
fazer parte de formas agregadas de relacionamento, baseadas no
afeto recíproco, seja para se obter um reconhecimento social, seja,
até mesmo, para se gozar de benefícios econômicos ou fiscais pre-
vistos em lei. Crise houve, mas não investiu contra a família em si;
seu alvo era o modelo familiar único, absoluto e totalizante repre-
sentado pelo casamento.
O fenômeno familiar já não é mais unitário. Juridicamente,
admitem-se configurações diferenciadas de família. A própria
Constituição, em rol exemplificativo, reconhece, além da família
fundada no casamento, a união estável e a família monoparental.5
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1 Elizabeth ROU DINESCO afirma textualmente: “A família é atualmente rei-
vindicada como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. Ela é
amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades,
de todas as orientações sexuais e de todas as condições” (A família em desordem,
cit., p. 198).
2 Ver, por todos, propondo o fim do patriarcado e, em conseqüência, a aboli-
ção da instituição que o consagrava, a família, Shulamith FIRESTONE. The Dialec-
tic of Sex. New York: Bantam, 1971, e Kate MILLET. Sexual Politics. London:
Abacus, 1972.
3 Assim, Jacques DONZELOT. A polícia das famílias. 3. ed. Rio de Janeiro:
Graal, 2001, p. 11.
4 David COOPER. A morte da família, Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1980.
5 Remete-se o leitor a Maria Celina BODIN DE MORAES. A união entre pessoas
do mesmo sexo: uma análise sob a perspectiva civil-constitucional, cit., p. 89-
112.
Esta vem a ser uma contraprova de que no Brasil hoje, diferente-
mente de outrora, se privilegia a espontaneidade do afeto sobre
estruturas formais, podendo-se entrever, também aqui, a opção do
constituinte em favor da igualdade, da solidariedade e da dignidade
humana.
Pietro Perlingieri observa que “la meritevolezza di tutela della
famiglia riguarda (...) soprattutto i rapporti affettivi che si tradu-
cono in una comunione spirituale e di vita”.6 De fato, a família,
como é entendida atualmente, baseia-se muito mais na força do
afeto do que em puros liames biológicos. Assim, “dano moral” e
“direito de família” são expressões que em princípio se excluiriam
e cuja combinação esboça um oxímoro, quase um paradoxo, a pró-
pria lança contra o próprio escudo, na metáfora do velho provérbio
chinês.
Comum — ao menos a partir da década de 60 — era somente
a circunstância da ação de indenização por dano moral em relação
à perda de um membro da família, de um ente querido, isto é,
quando alguém causa danos a uma pessoa e a sua família se torna
vítima desses danos.7 Outra hipótese bem diferente é a situação
aqui abordada, quando tanto a vítima como o ofensor fazem parte
da mesma família. A responsabilidade civil entra no seio familiar,
reconhecendo danos a serem ressarcidos por maridos às esposas e
vice-versa, por pais aos filhos, excepcionalmente até por avós aos
netos, pessoas habituadas a se querer bem ou a se relacionar com
afeto.
Parece oportuno distinguir, desde logo, as duas correntes jurí-
dicas contrapostas. De um lado, aqueles que aceitam a responsabi-
lização ao interno da família, mas apenas e tão-somente nos casos
em que haja ilícito absoluto, como previsto no art. 186 c/c art. 927
do Código Civil; de outro lado, os que sustentam a indenização
tanto em casos gerais (regidos pela cláusula do art. 186) como em
casos específicos, isto é, nas hipóteses de violação dos deveres con-
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6 Pietro PERLINGIERI. Sui rapporti personali nella famiglia. In: Rapporti perso-
nali nella famiglia. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1982, p. 20.
7 Ver o leading case do STF consignado no RE 59.940, Rel. Min. Aliomar
Baleeiro, julg. em 26.04.1966, publ. no DJ de 30.11.1966, cuja ementa diz:
“Responsabilidade civil. A morte de filhos menores, conforme as circunstâncias,
comporta indenização. O problema resolve-se na liquidação e por arbitramento”.

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