O princípio da solidariedade

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas237-265
O princípio da solidariedade*
Un pour tous, tous pour un.
A. Dumas
1. Individualismo e solidariedade. 2. A transformação
de fato social em valor. 3. Solidariedade como virtude e
como necessidade. 4. O princípio constitucional da soli-
dariedade. 5. A solidariedade como meio de transfor-
mação social e de promoção da pessoa humana. 6. Al-
guns resultados da aplicação do princípio. 7. Conclusão.
1. Individualismo e solidariedade
Se o século XIX foi, reconhecidamente, o século do triunfo do
individualismo, da explosão de confiança e orgulho na potência do
indivíduo, em sua criatividade intelectual e em seu esforço particu-
lar, o século XX presenciou o início de um tipo completamente
novo de relacionamento entre as pessoas. Ele se baseia na solidarie-
dade social, conseqüência da reviravolta, na consciência coletiva e
* Texto publicado em: Manoel M. PEIXINHO; Isabella F. GUERRA; Firly NAS-
CIMENTO (Orgs.). Os princípios da Constituição de 1988, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2001, p. 167-190; e em: Antonio Celso Alves PEREIRA; e Celso de Albu-
querque MELLO (Orgs.). Estudos em homenagem a Carlos Alberto Menezes Direi-
to, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 527-556.
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na cultura de alguns países europeus, decorrente das trágicas expe-
riências vivenciadas ao longo da Segunda Grande Guerra.1
Tampouco possuem origens remotas os conceitos sócio-jurídi-
cos de indivíduo e individualidade. Diz-se que tais noções foram
apreendidas a partir de 1860, quando se apontou, em obra hoje
clássica, o renascimento italiano como o momento inicial da assun-
ção da idéia de uma “livre personalidade” em confronto com as
sociedades anteriores em que o homem “só se reconhecia como
parte de uma raça, um povo, partido, família ou corporação — só
mediante alguma das formas do coletivo”.2
Entre nós, até a promulgação da Constituição de 1988, a única
acepção jurídica do vocábulo solidariedade era a que remontava ao
Corpus juris civilis: solidários são aqueles sujeitos que, encontran-
do-se num pólo da relação obrigacional, estão aptos a receber a
dívida inteira (quando a concorrência é de credores), ou obrigados
a solvê-la integralmente (nos casos em que a multiplicidade de
sujeitos se registra no pólo passivo). Pluralidade subjetiva e unida-
de de objeto constituem, portanto, a essência do instituto da soli-
dariedade do direito obrigacional.3
A este significado soma-se hoje um outro, muito mais abran-
gente e relevante. A Constituição, ao estatuir os objetivos da Repú-
blica Federativa do Brasil, no art. 3º, I, estabelece, entre outros
fins, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Ainda
no mesmo art. 3º, no inciso III, há uma outra finalidade a ser atin-
gida, que completa e melhor define a anterior: a erradicação da
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1 Umberto ECO. Para todos os fins úteis. In: _____ et al. Entrevistas sobre o
fim dos tempos. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 208.
2 A referência é ao estudo de J. BURCKHART. Die Kultur der Renaissance in
Italien, apud Ian WATT. Mitos do individualismo moderno. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 1997, p. 128. Watt chama a atenção para o fato de que a maioria
dos mitos do mundo ocidental se origina de figuras clássicas ou bíblicas. Diversa-
mente, três dos mitos do individualismo (Fausto, Dom Quixote e Don Juan) são
criações modernas que apareceram na literatura num período não superior a
quarenta anos (1587-1616). O quarto e mais famoso, Robinson Crusoe, seria
criado em 1719. No século XIX, com o crescente domínio do novo individualis-
mo, caracterizado pelo fato de que se passa a crer — e aspirar a — ser possível
percorrer caminhos individuais, esses quatro mitos difundiram-se pelo Ociden-
te, adquirindo status de universalidade.
3 Caio Mário da SILVA PEREIRA. Instituições de direito civil, cit., v. II. 13. ed.,
1994, p. 58.

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