Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e perspectivas

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas343-380
Punitive damages em sistemas civilistas:
problemas e perspectivas*
Sem castigo, não há festa.
Nietzsche
1. Introdução. 2. Critérios constitutivos da função puni-
tiva na responsabilidade civil. 3. A complexidade dos
punitive damages na experiência norte-americana. 4. A
tradição civilista e a indenização punitiva. 5. Críticas
à tese de um genérico caráter punitivo. 6. Menção à
admissibilidade, em hipóteses excepcionais, da multa
civil. 7. Conclusão.
1. Introdução
Um dos mais importantes críticos do sistema norte-americano
“de exportação”, Pierre Bourdieu, sustenta que certas característi-
cas do modelo econômico neoliberal, supostamente universais, de-
correm na verdade “do fato de que está incrustado em uma socie-
dade particular, enraizado em um sistema de crenças e valores e
com uma determinada visão do mundo, isto é, um senso comum
* Versão original publicada na RTDC — Revista Trimestral de Direito Civil,
v. 18. Rio de Janeiro, 2004, p. 45-78.
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econômico ligado às estruturas cognitivas de uma ordem social es-
pecífica, a ordem dos Estados Unidos da América”.1
Prescindindo do efeito simbólico exercido pela visão dominan-
te, será possível entrever, afirma o autor, que tal modelo deve mais
às características históricas da herança cultural norte-americana do
que a princípios de teoria econômica. São peculiaridades desta tra-
dição, segundo Bourdieu, a fraqueza do Estado e a sua progressiva
e contínua debilitação; a generalização da ética do capitalismo; a
exaltação do dinamismo e da maleabilidade da ordem social —
fazendo da insegurança social um princípio positivo de organização
coletiva —; o culto do indivíduo e do individualismo.2
Quanto ao sistema jurídico propriamente dito, a maior caracte-
rística a ser ressaltada no american way of rights/law é que a regra
de direito tem em mira dar uma solução ao litígio, situando-se,
deliberadamente, no mesmo nível da casuística das situações parti-
culares. Sendo tal direito jurisprudencial (case law), baseado quase
que exclusivamente nas decisões dos tribunais e na regra do stare
decisis, fracamente legislado, terão primado os procedimentos,
que devem ser essencialmente leais (fair trial) e cujo conhecimen-
to se adquire sobretudo através da prática; justamente por isso o
grande jurista é o juiz, aquele que disseca os casos concretos.3
Nos ordenamentos ditos romano-germânicos, ao contrário, a
regra de direito já está presente nos códigos e funda-se numa teoria
moral ou numa ciência racional; o primado, portanto, será sempre
da doutrina: trata-se de um “direito dos professores” — os que
mais a fundo conhecem aquela ciência — e que demanda, ao me-
nos tendencialmente,uma postura neutra, autônoma e, sobretudo,
universalizante.4
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1 “Segue-se (...) que o modelo da política econômica aplicado em toda parte
universaliza o caso particular da economia americana, à qual dá assim uma enor-
me vantagem competitiva, prática e, também, simbólica, uma vez que a justifica
existir como existe; em segundo lugar, que não se pode criticar esse modelo sem
criticar os Estados Unidos, que são sua forma paradigmática” (Pierre BOURDIEU.
A imposição do modelo americano e seus efeitos. Contrafogos 2: por um movi-
mento social europeu. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 29).
2 Pierre BOURDIEU. A imposição do modelo americano e seus efeitos, cit., p.
30.
3 Pierre BOURDIEU. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001
[1999], p. 218-219.
4 Pierre BOURDIEU, o.l.u.c.
Universalização e casuística; regra de lei e precedente; ciência
e experiência: assim podem ser resumidamente contrapostos os
sistemas jurídicos da common law e da tradição romano-germânica
— hoje também chamada de “civil law”, de “droit civil” ou mais
simplesmente de “sistema civilista”. Todavia, não obstante perma-
neçam estruturais as diferenças entre as duas mais importantes
famílias jurídicas, é inegável a aproximação entre elas, e do nosso
ponto de vista a transposição de institutos e procedimentos típicos
do direito norte-americano é vivamente sentida, não mais somente
no âmbito do direito constitucional, mas também no que se designa
tradicionalmente por direito privado.
Um desses institutos tem tido a mais ampla repercussão em
nosso país, gerando porém grande perplexidade: a atribuição de
um caráter punitivo — punitive damages5 — à reparação do dano
extrapatrimonial. Esta concepção, embora proveniente da equity
anglo-saxônica, só foi assumida completamente, como veremos,
pelo sistema jurídico norte-americano, e agora se encontra, de cer-
to modo, assimilada pela jurisprudência e pela doutrina brasileira,
querendo ganhar consistência legislativa.
De fato, a tese da função punitiva da reparação do dano extra-
patrimonial conta atualmente no Brasil com ilustres e ardorosos
defensores, tanto na doutrina6 como na jurisprudência.7 Não são
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5 Para uma definição, ver W. PROSSER, J. WADE e V. SCHWARTZ, segundo os
quais: “Punitive damages, sometimes called exemplary or vindictive damages, or
‘smart money’, consists of an additional sum, over and above the compensation of
the plaintiff for the harm that he has suffered, which are awarded to him for the
purpose of punishing the defendant, of admonishing him not to do it again, and of
deterring others from following his example” (Torts: Cases and Materials. 7. ed.
New York: Foundation Press, 1982, p. 560).
6 Favoráveis à tese do caráter punitivo, em maior ou menor grau, posicionam-
se, na doutrina brasileira, os manualistas Caio Mário da SILVA PEREIRA, Silvio
RODRIGUES e Maria Helena DINIZ. No mesmo sentido, manifestaram-se, entre
outros, Arthur Oscar de Oliveira DEDA, Carlos Alberto BITTAR, Sergio CAVALIE-
RI FILHO, José Carlos MOREIRA ALVES, Paulo da Costa LEITE, Luiz Roldão de
FREITAS GOMES, Araken de ASSIS, Teresa ANCONA LOPEZ, Sergio SEVERO, Car-
los Edison do Rêgo MONTEIRO FILHO, Renan Miguel SAAD, Américo Luís Mar-
tins da SILVA, Clayton REIS e Antonio JUNQUEIRA DE AZEVEDO. Contrários ao
caráter punitivo estão José AGUIAR DIAS, PONTES DE MIRANDA, Wilson MELO
DA SILVA, Orlando GOMES.
7 A tese tem-se mostrado vitoriosa na jurisprudência, e a tendência atual é no
sentido de aumentar o valor das indenizações a esse título. Ver, por último, TJRJ,
8ª C.C., Ap. Cív. 9825/98, Rel. Des. A. Vieira Macabu, Revista Consultor Jurí-

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