Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas381-421
Risco, solidariedade e
responsabilidade objetiva*
1. A invenção da responsabilidade sem culpa. 2. Primei-
ras interpretações doutrinárias acerca da cláusula ge-
ral. 3. As causas justificativas da responsabilidade ob-
jetiva. 4. O sistema dualista da responsabilidade civil.
5. Múltiplos fundamentos ético-jurídicos da responsabi-
lidade objetiva e seu fundamento constitucional. 6. A
imputação objetiva de responsabilidade e os seus proble-
mas. 7. Aplicação da cláusula geral aos danos causados
por automóveis? 8. Conclusão.
1. A invenção da responsabilidade sem culpa
Sob a inspiração genérica de princípio elaborado no direito ro-
mano, consolidado pelo direito canônico e com base na influência
direta do Código Napoleão,1 o Código Civil brasileiro de 1916
* Publicado em Revista dos Tribunais, cit., n. 854, p. 11-37 e também em G.
TEPEDINO e L.E. FACHIN (Coords.).O Direito e o Tempo: embates jurídicos e
utopias contemporâneas. Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lira. Rio
de Janeiro: Renovar, 2008, p. 847-881.
1 Art. 1.382: “Tout fait quelconque de l’homme qui cause à autrui un dommage
oblige celui par la faute duquel il est arrivé à le réparer”, a partir de enunciado
atribuído precursoramente a Grotius e, posteriormente, a Domat, através de cuja
obra chegou ao Code Civil.
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fundou o seu sistema de responsabilidade civil na prática de um ato
ilícito, isto é, numa cláusula geral cujo elemento nuclear se confi-
gurava na noção de culpa lato sensu.2 Para que surgisse o dever de
indenizar fazia-se imprescindível que houvesse culpa por parte do
agente causador do prejuízo e que a vítima lograsse demonstrar tal
comportamento. O princípio era tido então como axiomático, isto
é, moralmente universal, pois deduzido de uma razão ético-jurídica
válida atemporalmente, correspondente à idéia de punição por um
ilícito cometido.
No entanto, ainda na Europa do século XIX, o dano causado
por alguns tipos de acidentes deixou de ser aferido pela medida da
culpabilidade. Em 1838, com base na responsabilidade sem culpa,
editou-se a lei prussiana sobre acidentes ferroviários; em 1861, foi
promulgada a Lei das Minas, e, posteriormente, a partir de 1884,
no que seria a primeira lei específica de acidentes de trabalho, o
governo de Bismarck determinou que o empreendedor passasse a
suportar, através de um seguro social, a reparação do dano causado
por ocasião do trabalho, respondendo assim pelos riscos inerentes
ao exercício de sua atividade.
A razão de justiça subjacente a tais leis era antiga e se baseava
em princípio elaborado no jusnaturalismo casuísta romano. De
fato, já Paulo expressara no Digesto (D. 50, 17, 10): “Secundum
naturam est, commoda cuiusque rei unum sequi, quem sequentur
incommoda”, no que foi seguido, no direito canônico, por Dino, no
Liber Sextus (5, 13, 55): “Qui sentit onus, sentire debet commo-
dum, et contra” . Tal princípio vem expressar a idéia segundo a qual
quem obtém as vantagens de uma determinada situação deve assu-
mir seus inconvenientes, sendo freqüentemente citado na seguinte
formulação: ubi emolumentum, ibi onus.
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2 “Art. 159. Aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência, ou im-
prudência, violar direito ou causar prejuízo a outrem fica obrigado a reparar o
dano”. Ressalte-se, porém, que o Código Civil de 1916 admitira hipóteses de
responsabilidade sem culpa, como, por exemplo, a responsabilidade em estado
de necessidade (art. 160 c/c arts. 1.519 e 1.520). A respeito, indaga Clovis
BEVILAQUA: “Qual é a ideia dominante nessa construção jurídica?”. E responde:
“É que todo dano deve ser reparado, independentemente de culpa ou dolo”
(Comentários ao Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, v. 1, 7. ed. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1944, p. 454).
Em 1896, a Corte de Cassação francesa, na chamada decisão
“Teffaine”,3 ao determinar a reparação pelo patrão dos prejuízos
causados a um empregado pela explosão de uma caldeira, introdu-
ziu a noção de risco no direito francês. A jurisprudência criou neste
acórdão a regra da responsabilidade civil pelo fato das coisas, fun-
dando-a no art. 1.384, alínea 1, e na idéia de que o proprietário
deve assumir o risco pelo acidente decorrente do trabalho. O legis-
lador não ficou insensível à elaboração jurisprudencial, e em segui-
da uma lei especial interveio para regular tais casos. Assim, em
1898, promulgou-se a lei francesa sobre acidentes de trabalho, es-
tabelecendo-se a responsabilidade do patrão, independentemente
de culpa, com fundamento no risco profissional.4
Raymond Saleilles, em famoso comentário à decisão Teffaine,
fazia notar então que em determinados casos, como nos acidentes
de trabalho, exigir da vítima a prova da culpa equivalia a não ressar-
cir o dano, pela própria impossibilidade de se demonstrar uma
qualquer individualização de culpa. Louis Josserand, a partir da
mesma decisão, consignava a criação de um princípio geral de res-
ponsabilidade pelo fato da coisa, uma responsabilização quase “au-
tomática”, postulando o surgimento da responsabilidade civil não
somente em decorrência de fatos culposos, “faits fautifs”, mas fun-
dando-a em todo e qualquer fato a que uma pessoa desse origem,
isto é, nos “faits tout court”.5
No Brasil, diante do expressivo e constante aumento da utiliza-
ção dos transportes ferroviários e do correspondente incremento
no número de acidentes, deparou-se o legislador com a necessida-
de de regulamentar a responsabilidade do transportador ferroviá-
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3 Arrêt Veuve Teffaine: Cass. civ., 16 juin 1896, D. 1897, 1, 433, com nota de
Saleilles.
4 No mesmo período foram promulgadas as leis acidentárias inglesa (1897) e
italiana (1898).
5 Louis JOSSERAND. La responsabilité du fait des choses inanimées, cit. Ver
também do autor: Évolutions e actualités, cit., p. 45. A responsabilidade pelo
fato da coisa (animada ou inanimada) na França é considerada objetiva e se
funda, desde a sentença Teffaine, no art. 1.384 do Code Civil, que estabelece:
“On est responsable non seulement du dommage que l’on cause de son propre fait,
mais encore du dommage qui résulte du fait des personnes ou des choses que l’on
a sous sa garde”.

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