Notas sobre a promessa de doação

AutorMaria Celina Bodin de Moraes
Ocupação do AutorProfessora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ
Páginas267-288
Notas sobre a promessa de doação*
Io ho quel che ho donato.
G. D’Annunzio
1. Introdução. 2. O valor atual do animus donandi. 3.
A causa do contrato de doação. 4. Promessa de doação
no âmbito de separação judicial. 5. Promessa de doação
pura: exigibilidade? 6. Conclusão.
1. Introdução
A doação, contrato previsto nos arts. 538 e seguintes do Código
Civil, representa em termos absolutos um dos negócios jurídicos
mais freqüentemente realizados; todavia, enseja ainda controvér-
sias jurídicas árduas, que continuam a desafiar a doutrina e a juris-
prudência nos ordenamentos de tradição romano-germânica.1
* Publicado na RTDC — Revista Trimestral de Direito Civil, v. 24, Rio de Janei-
ro, out.-dez. 2005, p. 3-22.
1 Sobre as dificuldades que envolvem o contrato de doação, ver a sagaz observa-
ção de Biondo BIONDI: “Praticamente todos compreendem que coisa significa dar ou
receber uma doação, enquanto juristas e legisladores permanecem perplexos. Esta
incerteza ocorre em todos os institutos jurídicos, quando as relações humanas en-
tram na órbita do Direito para tornarem-se relações jurídicas, já que a intuição co-
mum deve se traduzir em uma formulação precisa, mas talvez em nenhum outro ins-
tituto se note tanta incerteza e tanta discrepância entre a simplicidade da noção prá-
tica e a difícil formulação jurídica.” (Le donazioni. In: Trattato di diritto civile ita-
liano: diretto da F. Vassali. Torino: Utet, 1961, p. 84-85). Para que se dê o devido
valor à afirmação, cabe mencionar que a doutrina italiana se inclui entre as que mais
se destacaram, tanto em qualidade como em quantidade, no estudo da doação.
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Um desses problemas diz respeito à possibilidade de sua pro-
messa. Será admissível a promessa de doação? A maior parte dos
juristas brasileiros respondia negativamente à questão, com funda-
mento na elaboração sintetizada por Agostinho Alvim, para quem
“a persistência do animus donandi é dogma fundamental em maté-
ria de doação”, entendendo-se, em conseqüência, impossível que
se “obrigue” alguém a doar.2 Segundo este raciocínio, o requisito da
vontade livre, no âmbito do contrato de doação, alcança uma cono-
tação tão fundamental que a ausência de sua manifestação, no mo-
mento da contratação definitiva, impede a configuração jurídica do
preliminar.
O problema, contudo, merece ser reexaminado. Os nossos são
tempos em que a autonomia da vontade e a concepção liberalista
cederam a posição de centralidade no direito civil, dando lugar a
princípios tais como a boa-fé, a confiança e a solidariedade, quer em
virtude da aplicação direta da Constituição às relações intersubjeti-
vas,3 quer pela renovação da disciplina codicista. Será preciso verifi-
car, então, se, à luz dos novos paradigmas, a promessa de doar deve
continuar a ser inadmitida, por configurar verdadeira e injustificável
“doação coativa”,4 ou se, neste novo sistema, será razoável aceitá-la.
Cumpre lembrar que, mesmo no âmbito do direito civil ante-
rior, parte da doutrina, embora minoritária, defendia a possibilida-
de jurídica da promessa. Assim, Pontes de Miranda sustentava que
“se houve pacto de donando, e não doação, e o outorgante não doa,
isto é, não conclui o contrato de doação, tem o outorgado a preten-
são ao cumprimento”,5 salientando caber ação de indenização pelo
descumprimento do contrato preliminar. Também favorável ao
preliminar de doação manifestava-se, de maneira ainda mais incisi-
va, Washington de Barros Monteiro, para quem tal promessa “não
contraria qualquer princípio de ordem pública e dispositivo algum
a proíbe”.6
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2 Agostinho ALVIM. Da doação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 42.
3 Para a proposta de leitura civil-constitucional dos institutos jurídicos civilis-
tas, ver, por todos, Pietro PERLINGIERI. Perfis do direito civil, cit., 1999, passim.
4 A expressão é de Caio Mário da SILVA PEREIRA. Instituições de direito civil,
v. III. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 257.
5 Tratado de direito privado, t. XLVI. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, p.
261.
6 Curso de direito civil, v. 5. 2. parte. 34. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2003,
p. 137.

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