A demanda judicial civil

AutorRafael Calmon
Páginas135-176
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A DEMANDA JUDICIAL CIVIL
O vocábulo “demanda” é ambíguo. A depender do contexto em que se insira, pode
se referir a uma série de manifestações. Na linguagem comum, as mais diversas solici-
tações, pedidos, exigências e desejos costumam ser externados por meio de demandas.
Na linguagem técnica empregada pelo Código de Processo Civil,1 a cena meio que se
repete. O legislador ora o utiliza para se referir a pedido (art. 540), ora à mera exigência
(art. 627, §3º), ora a processo judicial (art. 641, §2º), e ora no sentido mais próximo ao
que será empregado neste livro (art. 976).
Na linguagem científ‌ica, contudo, mais precisamente na utilizada pela literatura
jurídica processual civil, o termo possui acepção muito mais restrita. De acordo com José
Carlos Barbosa Moreira,2 “chama-se demanda ao ato pelo qual alguém pede ao Estado a
prestação de atividade jurisdicional”. De igual opinião é Cândido Rangel Dinamarco,3
para quem “demanda é um ato e não se confunde com ação, que é um direito, ou poder”.
Para ele, não seria correto “dizer que se propõe uma ação, mas uma demanda: é esta que
se considera proposta, ou seja, posta diante do juiz à espera de satisfação”.
Em geral, essa é a linha de pensamento adotada pela literatura jurídica brasileira.4
Noção parecida sobre o mesmo fenômeno pode ser encontrada no direito es-
trangeiro. Giuseppe Chiovenda5 conceitua demanda como o “acto mediante el que
se ejercita el derecho de acción, se manif‌iesta el deseo de que la ley sea actuada”. Por
sua vez, Carlo Carli6 a def‌ine como o “acto procesal que contiene uma declaración de
voluntad del justiciable dirigida al órgano jurisdicional para la apertura de la instancia”.
Já na visão de Devis Echandia7 seria o “acto de declaración de voluntad, introductivo y
de postulación, que sirve de instrumento para ele ejercicio de la acción y la af‌irmación
1. No entendimento de Paulo de Barros Carvalho, “a linguagem do legislador é uma linguagem técnica, o que sig-
nif‌ica dizer que se assenta no discurso natural, mas aproveita em quantidade considerável palavras e expressões
de cunho determinado, pertinentes ao domínio das comunicações científ‌icas.” (Curso de Direito Tributário. 24.
ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 33).
2. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática do procedimento. 24.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 9,
3. DINAMARCO, Cândido Rangel Instituições de direito processual civil. v. I. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores,
2002, p. 301.
4. OLIVEIRA, Vallisney de Souza. Nulidade da sentença e o princípio da congruência. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009,
p. 7; MACHADO, Marcelo Pacheco. A correlação no processo civil: relações entre demanda e tutela jurisdicional.
Salvador: Juspodivm, 2015, p. 20.
5. CHIOVENDA, Giuseppe. Principios de Derecho Procesal Civil. T. I. Trad. da terceira edição italiana pelo Professor
José Casais Y Santaló. Madri: Editorial Reus (S.A.), 1922, p. 71.
6. CARLI, Carlo. La demanda civil: la demanda, excepciones, contestación, reconvención. La Plata: Editorial Aretua,
1973, p. 71
7. DEVIS ECHANDÍA, Hernando. Nociones generales del derecho procesal civil. Madrid: Aguilar, 1966, p. 481.
PEDIDOS IMPLÍCITOS • RAFAEL CALMON
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de la pretensión, con el f‌in de obtener la aplicación de la voluntad concreta de la ley,
por una sentencia favorable y mediante un juicio en un caso determinado”, ao passo
que, para Fairen Guillen8 demanda representaria o “acto procesal consistente em uma
declaración petitória de voluntad, por médio de la cual se ejercita el derecho de acción
ante los tribunales, pudiendo también, mediante ella, prepararse o interponerse la
pretensión procesal”.
Contudo, este trabalho adota, respeitosamente, conceito um pouco diferente, por
entender que as def‌inições acima acabariam identif‌icando as f‌iguras da demanda e do
pedido. Por aqui, entende-se que demanda não conf‌igura propriamente um ato. De-
manda é, sim, a situação jurídica instaurada a partir da prática de um ato, denominado
pedido. Ela aparece, portanto, como uma consequência, um efeito da prática desse ato.
Demanda, assim, é algo que se instaura, que se propõe por intermédio de ato
postulativo.
Como a jurisdição não atua, em regra, sem provocação (CPC, art. 2º), a principal
função da demanda é submeter à apreciação do juízo um ou uma série de fatos suposta-
mente relacionados a uma ou a uma série de relações jurídicas que, na ótica do deman-
dante, atrairiam a incidência de uma ou de uma série de consequências jurídicas hábeis
a satisfazer uma ou uma série de aspirações.
Por isso, é situação jurídica que supõe ação humana específ‌ica.
Embora a linguagem comum – e, por vezes, até mesmo a linguagem técnica empre-
gada pelo legislador –, possa levar a certos mal-entendidos, não há como se confundir
demanda judicial com ação, nem esta com processo judicial, e, nenhuma das f‌iguras
anteriores com procedimento. Em linguagem jurídica, demanda é, como visto, uma
situação jurídica resultante da prática de um ato específ‌ico pelo interessado (ato pos-
tulativo), que rompe a inércia jurisdicional, solicitando ao Estado a prestação de tutela
jurídica. Por sua vez, ação é o direito/garantia, estabelecido pela Constituição Federal
(CR, art. 5º, incs. XXXIV, “a” e XXXV), de se provocar o Poder Judiciário, de participar
ativamente na formação do convencimento do julgador e dele obter um pronunciamento
a respeito de qualquer postulação, ainda que não haja titularidade do direito persegui-
do em juízo.9 Processo judicial é o método colocado à disposição de quem pretende
exercer o direito de ação, ao passo que procedimento é o elemento visível do processo,
representado pela sequência de atos por meio dos quais ele é instaurado e desenvolvido
no plano concreto.10
Em resumo, poderia ser dito que é por intermédio do procedimento que se de-
senvolvem os atos do processo, o qual, por sua vez, é o instrumento através do qual se
promove a demanda assegurada pelo direito de ação.
8. FAIREN GUILLEN, Víctor. Estudios de Derecho Procesal. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado 1955, p.
447.
9. GRECO, Leonardo. Instituições de processo civil. v. I. E-book tirado a partir da 5. ed. impressa. São Paulo: Saraiva,
2015, sem paginação.
10. Em sentido próximo ao do texto: PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporâneo:
teoria geral do processo. E-book tirado a partir da 7. ed. impressa. São Paulo: Saraiva, 2017, sem paginação.
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Malgrado se reconheça que a ambiguidade desses conceitos os torne sujeito a
críticas e a entrelaçamentos, é sob essas acepções que serão empregados nesta inves-
tigação.11
Via de regra, a demanda é instaurada por uma petição, materializada por meio
físico ou eletrônico, que deve preencher determinados requisitos e ser instruída com
os documentos que a lei considerar indispensáveis ao caso (CPC, arts. 319 e 320).
Todavia, como os atos e termos processuais só dependem de forma determinada
quando o ordenamento expressamente exigir (CPC, art. 188), ela não se concretiza
somente por meio da linguagem escrita ou falada (verbal),12 tampouco por conduta
exclusivamente praticada pelo sujeito que primeiramente provocar a atuação do
Judiciário. Outras formas de expressão da ação humana podem instaurá-la. A lingua-
gem gestual, expressada por meio de comportamentos pessoais e atitudes corporais
praticadas pelo demandante ou pela parte demandada, são bons exemplos disso. Basta
que sejam praticados em contexto comunicacional que leve a essa inferência, como
tantas vezes dito neste livro.
Portanto, a demanda judicial civil pode resultar da prática do ato postulativo ex-
presso, tácito, presumido ou implícito, independentemente da circunstância de qualquer
deles estar acoplado à petição inicial da ação e da reconvenção, muito embora não se
negue que essas peças representem seus principais veículos transmissores.
Justamente pelo fato de atrair a incidência de normas provenientes da Ciência do
Direito Processual e projetar efeitos sobre um processo a ser instaurado ou já em cur-
so, o seu estudo é fortemente inf‌luenciado por aportes provenientes da teoria geral do
Direito e da incidência da norma jurídica, sendo justamente por isso que este livro se
encarregou de abordá-los oportunamente.
Se no aspecto formal a demanda não exige lá tantas solenidades, no aspecto estru-
tural, sempre será, obrigatoriamente, composta de três elementos, que representam seu
conteúdo e que serão analisados, de forma um pouco mais detalhada, no tópico seguinte.
4.1 OS ELEMENTOS DA DEMANDA
Os elementos da demanda são: as partes, a causa de pedir e o pedido.13
Simples passar de olhos sobre essa tríade revela que existem dois itens de natureza
objetiva (causa de pedir e pedido) e um de ordem subjetiva (partes). Enxergando-os
mais de perto, percebe-se quão íntima e inafastável é sua correspondência com aqueles
elementos que compõem as relações jurídicas de direito material que subjazem ao lití-
gio. Nesse contexto, as partes corresponderiam aos sujeitos ativo e passivo; a causa de
11. A equivocidade dos vocábulos demanda, ação, processo e procedimento é reconhecida pela literatura e empregada
em sentidos distintos pela legislação, como a mais superf‌icial análise dos textos dos artigos 320, 323, 327 e 518
do Código de Processo Civil permite aferir.
12. A Lei n. 9.099/95 admite sua promoção de forma oral (art. 14).
13. Na literatura jurídica nacional e estrangeira consultada, não foi possível detectar discordância a respeito dessa
concepção, que, de resto, deita raízes no Direito Romano.

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