Desconstruindo a falácia da Reforma Trabalhista de 2017: análise crítica dos argumentos retóricos do jurídico, do social e do econômico
Autor | Raimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha |
Páginas | 111-119 |
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Ver Nota1
O substitutivo apresentado pelo Relator Deputado Rogério Marinho para a Reforma Trabalhista (Projeto de Lei n. 6.787, de 2016) vislumbra implementar mudanças significativas nos marcos regulatórios do mercado de trabalho brasileiro. A proposta substituída, originária do Poder Executivo e encaminhada ao Congresso Nacional pelas mãos do Presidente Michel Temer, porém, não havia ousado tanto. Criada a Comissão mediante Ato da Presidência da Câmara dos Deputados em 3 de fevereiro de 2017, com base no inciso II, do artigo 34, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, acaba por ser constituída e instalada em 09 de fevereiro de 2017. A tramitação se pretende célere, inclusive diante de percalços políticos e jurídico-penais enfrentados pelos políticos no Congresso Nacional e pelos integrantes do Poder Executivo, inclusive Presidente da República.
Há um consenso, de toda sorte (ou azar), entre críticos e defensores, no sentido de que retrata o encontro do oportunismo do momento com compromissos assumidos de diversa natureza para que se procedesse ao impeachment da Presidenta Dilma Rousseff e a ascensão de um governo interino fragilizado pelos embates e crises de governabilidade, sobretudo, mas não somente, em tempos de Lava Jato.
A mudança se situa muito além do que se pretende fazer crer, ou ser; ou seja, não se reduz a mera reforma, pois (i) não traduz qualquer melhoria nas condições da venda da força de trabalho no mercado; (ii) e rompe com os princípios jurídico laborais, inclusive com o princípio reitor. Aponta, por conseguinte, para uma alteração impactante e paradigmática do Direito do Trabalho e seu sistema normativo.
O projeto, por seu Relatório, outra vez mais, como sói acontecer a cada proposta de alteração da legislação trabalhista, repete na ânsia de ocultação dos interesses por mecanismos de retórica linguística, argumentos deduzidos e fundamentos apresentados reiteradamente a cada nova medida legislativa no curso da vida da Consolidação das Leis do Trabalho. Assevera que objetiva (i) alterar a Consolidação das Leis do Trabalho – Decreto-lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943; (ii) alterar a Lei n. 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que trata do trabalho temporário e (iii) dispor sobre eleições dos representantes dos trabalhadores no local de trabalho, regulamentando o artigo 11, da Constituição da República.
O Direito do Trabalho já havia perdido seu protagonismo para mudanças propostas como pautas na Constituição da República de 1988 embora, atualmente, ainda se apresente como importante reduto de resistência e luta ante o desmantelamento dos direitos conquistados.
Para inscrever uma contraposição crítica na história, sempre significada a posteriori pelos vencedores, pretende-se explicitar os argumentos e analisar as justificativas constantes do Projeto2 de contrarreforma para construir e revelar uma posição de resistência, demonstrando a retórica e a falácia. Para tanto, tomam-se os indicativos do Relatório no sentido de que se pretende (i) “aprimorar as relações de trabalho no Brasil, por meio da valorização da negociação coletiva entre trabalhadores e empregadores”; (ii) “atualizar os mecanismos de combate à informalidade da mão-de-obra no país”; (iii) “regulamentar o art. 11 da Constituição Federal, que assegura a eleição de representante dos trabalhadores na empresa, para promover-lhes o entendimento direto com os empregadores” e (iv) “atualizar a Lei n. 6.019, de 1974, que trata do trabalho temporário” (Relatório, 2017, p. 1).
O jurídico, o social e o econômico da dita “Reforma Trabalhista” são recortes de análise, enquanto desveladores de argumentos retóricos que sustentam a necessidade e os ganhos de se proceder a uma “reforma”; apostam em aspectos histórico-temporais, sociais, econômicos, politico-filosóficos, instrumentais e argumentos de autoridade-legitimação.
Dentre os argumentos (Relatório, 2017) histórico-temporais apresentados no projeto retorna o sempre presente indicativo cronológico da Consolidação como marca de uma temporalidade supostamente imobilizada no Brasil: o “Brasil de 1943 não é o Brasil de 2017” (Relatório, 2017, p. 17). Na década de ’40 o Brasil era um país rural, com 60% da população no campo, embora visasse preparar o país para o futuro, iniciando um processo de industrialização, pelo que seu objetivo era “garantir os patamares mínimos de dignidade e respeito ao trabalhador” (Relatório, 2017, p. 17). Ocorre que, mesmo após reformada, a Consolidação das Leis do Trabalho continuará a ser o Decreto de 1943 e, assim, aquilo que se pre-
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tende superar não será atingido pela alteração do seu conteúdo. Não teremos uma nova e outra Consolidação, ou um Código do Trabalho de 2017. Merece destaque, de todo modo, o fato de que a redação atual da Consolidação das Leis do Trabalho representa apenas a permanência de 38% do texto original, ou seja, o que resta da CLT original, hoje, são 352 dos 992 artigos. O restante foi continuamente sendo alterado, por 377 medidas, entre leis, decretos-lei, decretos e medidas provisórias, oriundas que do Poder Executivo, quer do Poder Judiciário (Tabela 1).
Por conseguinte, o que se reformará não é a “CLT de 43”, mas o que restou dela. A Consolidação das Leis do Trabalho, no curso da sua trajetória, veio sendo modificada no seu conteúdo em quase todos os anos, salvo em 1948, 1959 e 2004 (Tabela 2); ela não permaneceu imune às influências políticas. A CLT de hoje é o resultado de constantes adaptações sociais, econômicas e jurídicas, para o bem ou para o mal.
Ressalta-se, além disso, que ao tempo do início de sua vigência politicamente vivíamos a ditadura do Estado Novo. Porém, a Consolidação das Leis do Trabalho atualmente vigente é o resultado da atuação de quase todos os Presidentes da República (Tabela 3) que assumiram o poder no Brasil, isto é, os eleitos democraticamente, ditadores civis ou militares, os que assumiram interinamente ou por sucessão (Tabela 4). Não é possível, desta forma, atribuir ao seu conteúdo a expressão de uma ideologia específica.
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As modificações procedidas tanto alteraram o teor de seus dispositivos, com nova redação, como acrescentaram artigos e parágrafos, ou revogaram dispositivos, ou ainda foram medidas legislativas que acarretaram a extensão de sua aplicação ou determinaram a não incidência de seus dispositivos (Tabela 5).
Diz-se no Relatório que a legislação trabalhista materializada na CLT teria sido “outorgada” e inspirada no “fascismo de Mussolini”. Primeiramente é necessário pontuar que ela é uma “consolidação”, pelo que conteúdo de 1943 foi a síntese das leis então vigentes, articuladas, organizadas, complementadas (VIANA, 2013, p. 76) e seguiu incorporando mudanças em
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épocas e datas diversas. E, embora a “outorga” esteja vinculada ao mito getulista, vinculado ao fato de ter sido “outorgada” por uma ditadura civil não impediu que vários regimes, inclusive democráticos durante o tempo de sua vigência, pudessem incorporar nela vários dispositivos; como ressaltado, o que foi alterado da versão original é da ordem de 62% dos seus artigos. Não se pode, tampouco, descurar do fato de que as regras jurídicas são textos gráficos autônomos em relação aos seus autores, aqui considerados consolidadores e legisladores, pelo que no processo hermenêutico de construção de sentidos atribuídos pelo intérprete, as normas podem ser (re)significadas. Não há uma “essência” a-temporal e a-histórica apreendida por um intérprete neutro ideologicamente.
O argumento de que a CLT fora inspirada na Carta del Lavoro, de Benito Mussolini é absolutamente falsa e, na retórica empreendida e disseminada, se constitui em depreciação do seu conteúdo. A inaceitabilidade de tal atribuição resulta, de um lado, da própria análise comparativa dos conteúdos de ambas e, de outro lado, como reforço, o testemunho de um dos consolidadores, Ministro Arnaldo Süssekind que expressamente refutou tal assertiva em entrevista (GOMES; PESSANHA; MOREL, 2004, p. 78); in verbis:
A alegação de que a CLT é uma cópia da Carta del Lavoro, repetida por 99% de pessoas que nunca leram esse documento de Mussolini, é absolutamente falsa. Desde logo convém lembrar que a CLT tem 922 artigos; e a referida Carta, apenas 30. Desses, somente 11 diziam respeito aos direitos e à magistratura do trabalho. Quase todos repetiam princípios e normas historicamente consagrados, tipo: o trabalho noturno deve ter remuneração superior ao diurno; o empregado tem direito ao repouso semanal, em regra coincidente com o domingo;
As fontes de inspiração Consolidação das Leis do Trabalho foram outras (GOMES; PESSANHA; MOREL, 2004, p. 77):
Inspiramo-nos nas teses do I Congresso de Direito Social, a que já me referi, nos pareceres de Oliveira Viana e Oscar Saraiva, aprovados pelo Ministro do Trabalho, criando uma jurisprudência administrativa naquelas avocatórias, na encíclica Rerum Novarum e nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho. Essas foram as nossas três grandes fontes materiais [...]
Ademais, a legislação trabalhista “sofreu desgastes com o passar dos anos; mostrando-se desatualizada em vários aspectos” (Relatório, 2017, p. 18) e, desta forma, aduz-se no Relatório que “Apesar desses exemplos, existem pessoas que insistem em dizer que a legislação não precisa de atualizações”.
Ora, não se há de negar a necessidade de algumas alterações para superar o déficit democrático nos contratos de trabalho. Neste trilhar, alguns dos dispositivos que deveriam ser extirpados, por incompatíveis com um espaço jurídico democrático e colidentes com a...
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