O estado e o dever de respeito à vedação do retrocesso social

AutorTatiana Conceição Fiore de Allmeida
Páginas74-80

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1. Introdução

Nos termos do preâmbulo da Constituição Cidadã de 1988, por ter a ampla participação popular durante sua elaboração e a constante busca de efetivação da cidadania, foi instituído um Estado Democrático destinado a assegurar os seguintes valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, nas ordens interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias: a) o exercício dos direitos sociais e individuais; b) a liberdade; c) a segurança; d) o bem-estar; e) o desenvolvimento; f) a igualdade; e g) a justiça.

Sendo democrática a declaração de princípios e defesa dos direitos individuais é possível distinguir entre normas declaratórias, que estabelecem direitos que são bens e vantagens constitucionalmente previstos, e normas assecuratórias, que fixam garantias, isto é, meios ou recursos destinados a assegurar o pleno exercício de direitos fundamentais ameaçados ou a promover sua justa reparação caso já violados.

Os direitos fundamentais nascem com a pessoa humana e a acompanham até o fim de sua existência; a ninguém, nem mesmo o seu titular é facultado despojar-se de tais direitos considerados personalíssimos e indisponíveis, o que daí denota-se que estão associados à dignidade da pessoa humana, e considerá-los em caráter relativo, coloca em risco e na berlinda o principal princípio de um Estado Social e de Direito e o verdadeiro alcance do Princípio do Não Retrocesso trata-se de verdadeira blindagem e proteção a esses; direitos, inteligência do próprio artigo 60, parágrafo 4S, inciso IV, da Constituição estabeleceu que não fosse objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente a abolir direitos e garantias fundamentais.

Importante esclarecer que só um método interpretativo constitucional dos direitos fundamentais em harmonia com os postulados do Estado Social e Democrático de Direito pode iluminar e guiar a reflexão do jurista para a resposta alternativa acima esboçada e tem por si a base de legitimidade haurida na tábua dos princípios gravados na própria Constituição, arts. ls (fundamentos), 3S (objetivos fundamentais) e 170 (ditames da justiça social), e tornam irrecusavelmente inconstitucional toda inteligência restritiva da locução jurídica, "direitos e garantias individuais" das cláusulas pétreas, as quais não podem servir de argumento nem de esteio à exclusão dos direitos sociais.

Devemos destacar que a tese de existência e valoração vinculada à dignidade da pessoa humana do Princípio do Não Retrocesso Social tem sentido contrário ao do preconizado Princípio da Reserva do Possível de nuança desconectada da relevância e fundamentalidade dos direitos sociais, e justificador da omissão estatal no que se refere à efetivação de políticas públicas falsamente justificadas por fatores de ordem económica.

A emprego do princípio da reserva do possível especialmente em países periféricos ou em desenvolvimento acaba por justificar discursos de cunho neoliberal autorizador da ação política que visa ao cumprimento de medidas retrocessivas que afrontam o Estado Social Democrático de Direito muitas vezes sob alegações e falsas premissas de ausência de aportes financeiros, que se revelam de fato por alocação de recursos equivocadas dissociada de políticas públicas destinadas à consecução do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e distantes das reais necessidades dos cidadãos.

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O Estado de Direito contempla em sua essência o Princípio do Não Retrocesso Social, por tornar possível a concretização da segurança jurídica, e a materialização de todas as atividades estatais, quer seja de natureza legislativa, em que a atuação do legislador deve se pautar nos fundamentos e estruturas definidas pela constituinte originário e nos valores da sociedade; seja nas de natureza administrativa na concepção e efetivação de políticas públicas de inclusão e erradicação das mazelas que permeiam a sociedade, e por fim, nas funções do Judiciário, de verdadeiro guardião do Estado de Direito por meio de medidas corretivas às ações que visem macular o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Diante dessa interpretação constitucional, o artigo abordará o Estado e seu dever de respeito ao princípio de Vedação do Retrocesso, preservando a margem de conformação das leis, o que lhe permite, em casos específicos e sensíveis, restringir ou condicionar determinado padrão normativo já consolidado, desde que não se retroceda a um patamar inferior ao do "nível mínimo" de proteção constitucionalmente requerida e não se ofenda o Princípio da Proibição da Proteção Insuficiente.

2. Hermenêutica jurídica contemporânea do estado democrático de direito

A reviravolta pela qual passa o constitucionalismo brasileiro não é um fenómeno isolado, mas decorre de um novo paradigma jurídico, o pós-positivismo, cuja compreensão exige uma breve digressão histórica sobre a ciência do direito. Em radical contraponto ao jusnaturalismo, surgiu, ao final do século XVIII, o movimento da codificação do direito e, com ele, ascendeu-se ao positivismo jurídico.

Hans Kelsen, seu maior expoente, buscou conferir cientificidade ao direito, tentou aproximá-lo das ciências naturais e, desvinculando o direito da moral, proclamou a validade estritamente formal das regras jurídicas. Por conseguinte, o papel das Constituições restringia-se a organizar o Estado, a conferir direitos individuais e a estabelecer o procedimento de formulação das regras infraconstitucionais, servindo, pois, de norma fundamental de validade destas.

Ocorre que tal fetichismo pela lei, absolutamente desvinculado do conteúdo ético das normas jurídicas, entrou em decadência em meados do século XX, quando se percebeu que ele era capaz de legitimar práticas francamente degradantes da dignidade da pessoa humana, como o nazifascismo. Daí surgiu a necessidade de se reaproximarem direito e ética.

Inicialmente, o positivismo crítico instituiu princípios gerais de direito, nitidamente ligados ao ideal de justiça, como forma de podar os excessos da letra fria da lei, o que chamamos de vinculação da própria validade das normas jurídicas ao conteúdo axiológico das mesmas e à sua conformação cornos princípios materiais da Constituição, que traduzem os valores supremos de determinada sociedade. É esse cenário que se tem denominado pós-positivismo.

Outro fator que concorreu para a reformulação da hermenêutica jurídica foi a constatação da baixa densidade normativa dos princípios constitucionais, as normas...

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