Introdução e aspectos evolutivos

AutorIvani Contini Bramante
Páginas9-19

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Proibição do retrocesso social

1. Origens no direito alemão

A origem do princípio do não retrocesso social é atribuída à doutrina alemã, pelas Nichtumkehrbarkeitstheorie1 ou Soziales Ru¨ckschrittsverbot2.

Segundo Sarlet, a génese filosófica que embasa a proibição do retrocesso é atribuída a Martin Wolff que, ao analisar o artigo 1'53 da Constituição de Weimar, defendia que o conceito de propriedade abrange todos os direitos subjetivospatrimoniais e resulta no conceito funcionalista da propriedade. Assim, a garantia do direito de propriedade não se encerra nos direitos reais, mas se lhes atribui função conservadora de direitos, de modo a assegurar à pessoa segurança jurídica quanto aos direitos patrimoniais reconhecidos pelo ordenamento jurídico e gerar confiança quanto ao conteúdo dos direitos. 3

Em suma, seguindo o pensamento de Wolff, uma vez concedido determinado direito à pessoa, há sua incorporação ao património jurídico de modo que não há mais possibilidade de se o retirar.

Ressalte-se que embora não tenha Wolff formulado a teorização da teoria do retrocesso, deixou as bases doutrinárias que levaram à sua construção.

Ernst-Wolfgang Bockenfdrde defendia, na década de 80, que estabelecida uma situação fático-jurídica os direitos fundamentais podem estabelecer limites às decisões políticas, financeiras e de planejamento do Estado quanto a sua transformação ou supressão4.

Do mesmo modo, Konrad Hesse defende a concretização de direitos pela sua inserção constitucional gera uma limitação ao poder estatal de modo a preservá-los, ante a incorporação ao património jurídico das pessoas.

Neste sentido, Lenio Luiz Streck afirma que

Paul Múller e Konrad Hesse defendem a tese de que, depois de atingido um grau de concretiza-qão fática dos direitos contidos na Constituiqão, por meio de medidas legislativas pelas quais são asseguradas prestaqões materiais aos cidadãos, não podem mais ser estas suprimidas ou reduzidas, ocasionando o retrocesso na área social atingida, seja na área da educaqão, saúde, previdência ou direitos trabalhistas (sociais e individuais). São as chamadas "cláusulas de proibiqão de evolu-qão reacionária ou de proibiqão de retrocesso social", é dizer, consagradas legalmente prestaqões de assistência social, o legislador não pode mais eliminá-las retornando sobre seus passos5.

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Tal tem sido o entendimento do Tribunal Constitucional Alemão, como cita Sarlet

O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, em recente julgado, reiterou o seu já consagrado entendimento sufragando a ideia de que a seguranqa jurídica constitui um dos elementos nucleares do princípio do Estado de Direito, no sentido de que o particular encontra-se protegido contra leis retroativas que afetem os seus direitos adquiridos, evitando assim que venha a ter frustrada a sua confianqa na ordem jurídica, já que seguranqa jurídica significa, em primeira linha, proteqão de confianqa, que, por sua vez, possui hierarquia constitucional.6

1.1. Proibição do retrocesso social na França - effet cliquet

A expressão effet cliquet é utilizada pelos alpinistas e traduz o movimento que apenas permite a ele subir e, por isso, é utilizada para definir a proibição do retrocesso na França.

O Conselho Constitucional Francês aplica a teoria inclusive em relação aos direitos de liberdade não sendo possível a revogação ou alteração de uma lei que tutele liberdades individuais, sem a substituição por outra equivalente.

Neste sentido, Joèl Andriantsimbazovina afirma que:

Le Conseil constitutionnel considere le législateur ne saurait modifier ou abroger des dispo-sitions législatives touchant une liberte comme Ia liberte de communication qu'« en vue d'en rendre 1'exercice plus effectif » (16). II ne s'agit pas à proprement parler d'une obligation positive mais c'est une forme d'action positive en faveur d'une protection de Ia liberte. Ce souci de faire prévaloir certaines libertes se traduit aussi dans Ia création de Ia catégorie des objectifs de valeur constitutionnelle sans que celle-ci ne crée une véritable obligation à Ia charge du législateur. Significative à cet égard est Ia consécration comme objectif de valeur constitutionnelle de « Ia possibilite pour toute personne de disposer d'un logement décent.7

1.2. Evolução em Portugal e no Brasil

Em Portugal, o maior defensor da proibição do retrocesso social é o consagrado constitucionalista Joaquim José Gomes Canotilho que ensina:

O princípio da proibiqão do retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (lei de seguranqa social", lei do subsídio de desemprego", lei do serviqo de saúde") deve considerar-se constitucional-mente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas que, sem a criaqão de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática de uma anulaqão", revogaqão", ou aniquilaqão" pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformaqão do legislador e inerente autorreversibilidade tem como o núcleo essencial já realizado8

Assim, pode-se dizer que a proibição do retrocesso consiste na vedação de medidas que gerem a retro-ação dos direitos incorporados ao património jurídico da pessoa.

Tal teoria não apenas limita a atividade do legislador e do administrador, mas também do juiz, como intérprete e aplicador da norma e cuja atividade deve reforçar e garantir a máxima efetividade da Constituição.

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No Direito Constitucional brasileiro cita-se não apena a previsão implícita da proibição do retrocesso, mas sua positivação, de modo claro e expresso, no caputáo artigo 7S, ao afirmar que são direitos dos trabalhadores, "...além de outros que visem à melhoria de sua condição social'.

Conclui-se, assim, com a clara e precisa lição de Luísa Cristina Pinto e Netto, que:

A Nichtumkehrbarkeitstheorie ou teoria da irreversibiãdade, desenvolvidapor KonradHesse, partiria da afirmação de que não se pode induzir o conteúdo substantivo da vinculação social do Estado diretamente da Constituição, mas uma veproduidas as regulações, uma ve reaã%ada a conformação legal ou regulamentar deste princípio, as medidas regressivas afetadoras destas regulações seriam inconstitucionais, ou seja, haveria uma irreversibiãdade das conquistas sociais alcançadas.9

O Supremo Tribunal Federal, em diversos julgados, determinou sua aplicação, como, por exemplo, no voto da MM. Ministra Cármen Lúcia no julgamento da ADI 4543-MC/DF:

Es se princípio da proibição de retrocesso político há de ser aplicado tal como se dá quanto aos direitos sociais, vale disçer, nas palavras de Canotilho 'uma ve% obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. ...o princípio em análise limite a reversibiãdade dos direitos adquiridos em clara violação do princípio daproteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito económico, social e cultural, e do núcleo essencial da existònáa mínima inerente ao repeitopela dignidade da pessoa humana' (CANOTILHO, J.J. Gomes — Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 3° Ed.,p. 326).

Do mesmo modo, o MM. Ministro Celso Mello decidiu que:

O Princípio da Proibição do Retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação soáalem que ele vive. —A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v. g.) tradu%, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma ve? atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitosprestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar— mediante supressão total ou parcial— os direitos sociais já concretizados.10

Obviamente, a proibição do retrocesso social constitui decorrência lógica do Princípio da Segurança Jurídica das relações.

Esse tema se refere à sucessão de leis no tempo e à necessidade de assegurar o valor da segurança jurídica, especialmente no que concerne à estabilidade dos direitos subjetivos.

A segurança jurídica consiste no "conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos à luz da liberdade reconhecida."11

Caso a lei revogada tenha produzido efeitos, diz-se que criou uma situação jurídica subjetiva e, segundo José Afonso da Silva:

poderá ser um simples interesse, um interesse legítimo, a expectativa de direito, um direito condicionado, ou seja, é um direito exigível na via jurisdicional. Recebe, assim, proteção direta, pelo que seu titular fica dotado do poder de exigir uma prestação positiva ou negativa.12

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Assim, a proibição do retrocesso, nada mais é, do que corolário da segurança jurídico, sendo que em caso de sua violação, estar-se-á a vulnerar o caputáo artigo 5S da CF/88.

1.3. Efeitos e limites

Em suma, a vedação de retrocesso, corolário do Princípio da Segurança Jurídica, estabelece uma garantia quanto à incorporação de...

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