Direito e tecnologia

AutorJames Magno A. Farias
Páginas83-137
Direito, Tecnologia e Justiça Digital
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CAPÍTULO 2
DIREITO E TECNOLOGIA
2.1. O advento do Direito Digital e da Justiça Digital no século XXI
O amplo uso pelos sistemas de Justiça da computação, de meios informáticos,
de eletrônica, da internet e da inteligência articial levou ao surgimento de um
novo ramo jurídico, o Direito Digital. Este não surgiu isolado dos outros ramos
jurídicos; ao contrário, o Direito Digital está aliado sistemicamente aos demais,
a m de que possa cumprir uma de suas funções básicas na sociedade, que é a
proteção dos direitos fundamentais individuais e coletivos, e atualmente, também,
inserido nos múltiplos contextos da sociedade digital.
Porém, muito antes do advento do computador, vieram a máquina de escre-
ver, a ata manuscrita em papel, e, antes dela, o papiro e a tradição oral. Ao longo da
história, os encarregados da resolução dos conitos de interesses intersubjetivos
receberam várias denominações e atribuições distintas. Por exemplo, no antigo
Egito, quatro mil anos atrás, já havia o Magiaí, que, segundo Hugo Nigro Mazilli,
era um misto de julgador e acusador, era “a língua e os olhos do faraó, que cas-
tigava os rebeldes, reprimia os violentos, perseguia os mentirosos e protegia os
cidadãos pacícos”(307). Nessa época, o Direito valia-se das tradições orais para a
solução dos conitos de interesses. A documentação escrita começou no ano 2.500
a.C., no Egito, por meio do papiro (308). Os romanos levaram o papiro para a Europa,
espalhando-o pelos seus antigos domínios. O papel foi inventado na China, no
ano 105, por Kai Lun(309), e, ao ser levado mundo afora, assumiu gradativamente
a função de documentação manuscrita também dos processos. No século XV,
Johannes Gutenberg(310) criou a prensa metálica, o que revolucionou a forma de
armazenar conhecimento. O construto de Gutenberg imprimiu a primeira Bíblia
e, depois, os livros, os jornais, as leis e as decisões das autoridades passaram a ser
(307) MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução ao Ministério Público. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 59.
(308) BING. Disponível em: g.com/q=papiro&form=ANNTH1&reg=q>. Acesso em:
18.08.2019.
(309) RESTAURA. Disponível em: www.restaurabr.org.siterestaurabr/volumesarc/arc02pd-
f/07preservacaodeacervos.pdf>. Acesso em: 18.08.2019.
(310) EBIOGRAFIA. Disponível em: <https://www.ebiograa.com/johannes_gutenberg/>. Acesso em:
18.08.2019.
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James Magno A. Farias
impressas, o que lhes deu maior amplitude e permitiu às populações da época
tomarem conhecimento de sua existência.
Os magistrados continuaram a registrar seus julgamentos em solenes atas
manuscritas durante muito tempo, de modo que a forma como atuava um juiz
italiano de 1900 não era muito diferente de um pretor romano do ano 100, pois
ainda estava cercado de tradições orais e formalismos judiciários. Entretanto, um
magistrado italiano em Bolonha, em 1950, já redigia suas sentenças em máquinas
de escrever mecânicas. Na década de 1980, mundo afora, os juízes passaram a
utilizar máquinas elétricas; na década de 1990, as sentenças dos magistrados
migraram para as máquinas eletrônicas e, desde o início do século atual, as atas
de audiências já são digitadas em computadores, utilizando os programas de
edição de texto, o que, com a ligação externa à internet, permitiu que os autos
dos processos judiciais pudessem ser digitalmente armazenados em bancos de
dados reticulares.
Luís Filipe Pires de Sousa armou que o uso crescente das novas tecnologias
informáticas trouxe à Justiça o “ocaso da civilização de papel”, em uma feliz
construção conceitual sobre a crescente documentação eletrônica nos processos
judiciais(311). Antoine Garapon e Jean Lassègue ponderaram que “essa revolução
digital na Justiça, ao mesmo tempo que amedronta alguns, entusiasma tantos
outros”(312). Rudy Hirschheim e Michael Newman armaram que a resistência
ao uso de novas tecnologias tem sido bastante comum na história humana(313).
A aceitação à tecnologia nem sempre foi pacíca, anal, no século passado, em
muitas cidades do mundo, houve campanhas contra a chegada da energia elé-
trica, do telefone ou dos carros a motor, todos considerados perigosas invenções
demoníacas e contrárias à ordem natural do mundo. Inevitável não se lembrar,
novamente, do modo de atuação dos ludistas, que, à época da Primeira Revolução
Industrial, invadiam e destruíam o maquinário das fábricas, na pueril crença de
que assim preservariam seus empregos ameaçados pela novidade crescente da
automação fabril(314).
No contexto do Direito Digital, a adoção de meios eletrônicos pelos sistemas
de justiça criou os conceitos de Justiça Digital ou de e-Justiça, a Justiça eletrônica.
A expressão e-Justiça é utilizada por diversos autores europeus, tais como Fe-
derico Bueno de Mata, Araguena Fanego e Gascón Inchausti(315). A Comissão
(311) SOUSA, Luís Filipe Pires de. O valor probatório do documento eletrónico no processo civil. Coimbra:
Almedina, 2017, p. 27.
(312) GARAPON, Antoine; LASSEGUE, Jean. Justice digitale: revolution graphique et rupture anthro-
pologique. Paris: PUF. 2018, p. 23. Kindle.
(313) HIRSCHHEIM, Rudy; NEWMAN, Michael. Information Systems and User Resistance: eory
and Practice. Washington, e Computer Journal: 1988. p. 6.
(314) TOFFLER, Alvin. A terceira onda. Rio de Janeiro: Record, 1995. p. 157.
(315) FONTESTAD PORTALÉS, Leticia; CARO CATALÁN, José. La globalización del Derecho Procesal.
Valencia: Tirant lo Blanch, 2020, p. 219.
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Europeia(316) e o ECLI – European Case Law Identier (Identicador Europeu
de Jurisprudência), coordenado pelo Conselho Superior da Magistratura de
Portugal e conanciado pela União Europeia por meio do Programa para a
Justiça 2014-2020, também utilizam a expressão e-Justice(317). No Brasil, o Con-
selho Nacional de Justiça adotou a expressão Justiça Digital no relatório anual
“Justiça em números”, em 2015(318). Os juristas franceses Antoine Garapon e
Jean Lassègue utilizaram a expressão Justice digitale(319). O britânico Richard
Susskind criou os conceitos de tribunais on-line (on-line courts), que se valem da
internet para funcionar, e de “tribunais estendidos”, em referência às possibili-
dades cada vez maiores da utilização de programas e aplicativos digitais para
aumentar a eciência e funcionalidade dos tribunais, muito além dos espaços
físicos dos fóruns(320).
A eletrônica, geralmente, é relacionada ao uso de aparelhos e dispositivos
que dependem de eletricidade para funcionar. O termo eletrônico deriva de
“elétron” a subpartícula atômica descoberta em 1895 por Jean Perrin. Elétrons,
nêutrons e prótons são as três subpartículas que compõem um átomo(321).
Ou seja, eletrônico é o meio para o armazenamento e para a transmissão, e digi-
tal é a forma do conteúdo dos diversos arquivos. Em ilustração, um toca discos
de vinil é um aparelho eletrônico, mas não é digital; porém, um CD player é um
aparelho eletrônico e digital. A eletrônica é um antigo produto oriundo da Se-
gunda Revolução Industrial, inicialmente estudada como eletrônica analógica.
Por isso, a eletrônica pode ser considerada o estudo do processamento de sinais
provindos da corrente elétrica. Em resumo, o mundo digital não existiria sem a
eletrônica, pois a evolução eletrônica permitiu os avanços da nanotecnologia e a
miniaturização de computadores e smartphones.
Ainda nessa diferenciação entre eletrônico e digital, no Brasil, a Lei n. 11.419/2006,
no art. 1º, § 2º, previu: considera-se meio eletrônico qualquer forma de armazena-
mento ou tráfego de documentos e arquivos digitais transmissão eletrônica, toda
forma de comunicação a distância com a utilização de redes de comunicação, prefe-
rencialmente a rede mundial de computadores. Desse modo, e-Justiça, Justiça Ele-
trônica e Justiça Digital podem ser compreendidas em perfeita sinonímia, e as
sim
(316) HOPIN. Disponível em: ts/for-a-people-centred-e-justice>. Acesso em:
10.03.2021.
(317) CSM. Disponível em: <https://jurisprudencia.csm.org.pt/>. Acesso em: 10.03.2021.
(318) CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números. Relatório 2015, ano base 2014. Brasília:
CNJ, 2019. p. 77.
(319) GARAPON, Antoine; LASSEGUE, Jean. Justice digitale: revolution graphique et rupture anthro-
pologique. Paris: PUF, 2018, p. 21. Kindle.
(320) SUSSKIND, Richard. Online Courts and the future of Justice. Oxford: OUP Oxford, 2019. p .218.
Kindle.
(321) ELETROJUN. Disponível em: <https://eletronjun.com.br/2020/11/14/o-que-e-a-eletronica/>.
Acesso em 24.11.2019.

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